domingo, 23 de dezembro de 2007

Insisto no Natal


Gosto do Natal, acotovelar-me nas lojas apinhadas de gente, esgueirar-se cheio de sacos por entre a multidão e perder-me em obsessões consumistas que compensam a insuficiência de ser. Percorrer Centros Comerciais recriados de repente para captar o lucro selectivo, diversos alvos consoante o gosto, a moda, a diferença, o dinheiro, o status, a ocasião, o capricho que se enraíza na individualidade dos corpos até ao encanto produzido sem alma. Gosto do paradoxo do Natal, o espírito de família a sobreviver contra as paredes do individualismo crescente, o afecto e amor filantrópicos a fragmentarem-se em casulos de amizade protegida que se sedimentam plenos de direito. Gosto do Natal “Outdoor”, calcorrear montras e cafés entre semblantes atirados à luz artificial que se esgota ao cair do dia, sentir a presença inflamada do Inverno e aquecer o rosto contra o espaço frio e infinito, observar os mendigos que habitam as ruas na necessidade de haver pessoas sós. Gosto do Natal que todos os anos se intromete no curso natural das mentes ocupadas e as põe a conviver nas margens que sobram da vida, em conversas precipitadas nos limites do saber comum. Gosto do Natal que todos os anos parece concedido por uma antiga recompensa de um dia termos reconhecido a nossa origem transcendente, para agora o desembrulhar-mos à pressa no intervalo entre a realidade e o esforço no caminho de Deus. Gosto do Natal que se subentende nos gestos de amizade e solidariedade que insistimos em mostrar do que resta de bondade e bom senso, de intimidade contada por palavras gastas na preferência da nossa compreensão, do longo caminho há muito escolhido e que por alguma razão se mantém no mapa da mente. Gosto do Natal que recupera a infância dos adultos e dos velhos que são crianças, todos condensados numa história comum que ao contá-la apenas pomos o ar da nossa graça. Enfim, gosto do Natal porque insisto em nascer na novidade das coisas e repetir-lhes a origem do seu propósito, por estranho que ele seja, como acabar o dia cheio de sacos de inutilidades, mas eu vazio de surpresa.

P.A.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Outro Tempo


Não consigo dormir. Trago o peso do mundo que agita os conteúdos vazios da mente até que estes fervilhem numa disponibilidade instantânea perante ilações nocturnas.
O silêncio caiu propositado, necessário e incógnito, invólucro do fim do dia, retomada da génese remota e fria num sopro de éter. Miram-me os objectos inumeráveis que suspendem a acção como paisagens percebidas no interior do quarto e que por mistério permanecem. A realidade das coisas aguça-me a consciência, a perspectiva dos quadros desloca-me as ideias numa película dobrada pelo tempo que recordo sem começo, a noite trespassa-me na grande paciência do mundo.

Não posso dormir para assistir ao encarquilhar vivo das sensações, ao movimento suposto das luzes da cidade numa procissão cansada de interrogações, para assistir a uma presença meio iluminada de certezas que depressa se perdem na exposição aberta dos céus. O relógio marca duas horas, duas horas intervalares do sonho antecipado, um tempo que contém a eternidade de não ser tempo, ninguém o explica pela consciência do não tempo, e, por isso, sem a fatalidade de o explicarmos no tempo, para todos os efeitos um absurdo simultâneo. Lá fora o cão ladra no equívoco da noite, tudo se dá num só tempo numa ligação perseguida de dois vultos, o primeiro antecipa o segundo que foi primeiro. O cão ladra e a consciência molda-se ao ondular dum fluido mais consciente. A minha consciência é tudo menos a minha consciência, um fluido geral noutro mais geral e progressivamente mais consciente, por isso, mais afastado da consciência de mim. Nexos inconstantes do passado que vão chegando aos poucos, sentam-se, levantam-se, deambulam pelas divisões da memória à procura do seu espaço, ora ficam mais tempo, ora se despedem cansados na promessa de voltarem, ora ainda, suspendem a acção numa fotografia que tenta conhecer melhor a sua direcção antes que se precipitem no calor de conversas enviesadas. Amálgama num desfile quebrado de figuras onde aparecem por instantes os pais, avós, irmãos, amigos, namoradas, namorados das namoradas, outras figuras mais estranhas que completam as telas e resumem o motivo pelos cantos, não menos importantes, porque nos deixam para sempre a pensar qual seria realmente a sua importância.

É neste espaço e neste tempo que recordo o não espaço e o não tempo, consumados à distância de os viver sem as imposições do passado, que naquela altura tanto nos atrapalham enquanto arrumamos ideias, afectos, opiniões, e que só agora posso espalhá-los em interpretações tardias que devagar concluem o que antes vivemos em momentos sumidos de verdade. É neste espaço arrefecido que a consciência resvala no arrebatamento do tempo, incursão sumária que corre pelo geral do passado, enquanto eu, alheado de mim, suponho a cidade lá fora onde tudo se dá num só tempo numa ligação perseguida de dois vultos, enquanto eu, alheado de mim, dou-me a existir no passado com o cão que ladra numa presença repercutida e íntima.

P.A.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Perdição


A ponte estende-se diurna
numa imagem conhecida
da margem ressentida
que a memória tráz taciturna.

Há os habitantes dessa fuligem
parda entre paredes
que o dia por vezes
crava em perdição e vertigem.

Centelhas de cigarros no escuro
a assinalar o entrave
da vida no fumo suave
que sobe disperso junto ao muro.

São os habitantes sob a avenida
que a morte não enche
mas a outros preenche
no medo da madrugada sentida.

Prostrados às portas da expectativa
como a razão amarga
que o álcool retarda
no esforço da memória repetida.


P.A.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Prazer de não Fazer




Volto a debruçar-me sobre a folha em branco porque a vontade de escrever infringe o sossego com as coisas. Há muito que não escrevo, parece que vou adiando uma vontade presente de ler o que escreverei como uma espécie de anúncio virtuoso e precedente. Talvez a vontade seja ilimitada e nos conceda a possibilidade de querermos sem querer, de alimentarmos o seu prospecto só em si actual. É penoso viver no plano da vontade, esperar a obra, percorre-la, conclui-la entre as direcções que irá despertar. Viver no plano da vontade é criar uma segunda obra antes que a actual venha a ser criada. Há quem anseie a vida toda por obrar sem nunca o conseguir, como cães agachados à procura da pedra certa, de olhar submisso e agitado, uma predisposição alicerçada para se ir completando. Mesmo quando a obra surge fica-se na mesma, ninguém sabe como será sentida amanhã, mantém-se a expectativa, agora dos outros, que esperam também a sua própria vontade desvelar-se. A obra existe para esperarmos dela o que quisermos, utilizamo-la num tempo indiscriminado como um lugar sagrado, a visão que dela temos pode ser eterna porque é sempre recriada e insistentemente sua.

O sol vai aquecendo os bancos de jardim no silêncio que vale. É grande a nudez que leva a criar, apagar os blocos de ideias feitas, avisos e considerações, ficando os trapos das impressões em potência, numa vontade uniforme que evolui pelo sangue em sentimentos de fundo compadecidos. Interrompo a escrita mas a vontade não se esgota, vai servindo com prazer de não fazer, é preguiçosa e atenta, tem como tarefa recriar ideias em paralelo com o adquirido. Leio um livro e antes leio-o em mim, nos outros, nas coisas, quando lhe pegar o prazer será a recompensa pela espera alimentada na ideia já feita, sentirei nas suas palavras a pausa que acontece, a descarga contemplativa dos pormenores pensados. Escrevo uma carta e antes escrevo-a pelo prazer esboçado da retenção, escrevê-la-ei amanhã ou depois, enquanto isso vou sustendo a ideia que é sempre uma causa final.
P.A.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Momento


Cheguei ao café defronte encimado de letras, frisos, luzes e vidros, antigos materiais pensados sobre a consternação das pessoas que entram e saem. O balcão perdura agora mais preso ao chão como tudo aquilo que envelhece, envolve ânimos acabados que ajudaram a viver as horas mortas, intrigas e projectos que resvalaram pela rua até ao largo. As coisas morrem. Vivemo-las num entretenimento cego para dar cor à nossa presença, depois absorvemo-las já misturadas com a próxima intenção. A graça das coisas absorve-se pela graça de outras, o que fica são impressões gerais enroladas numa conversa de café, desabafos firmes entre o medo e o consolo. Alguém dizia que o importante é amar, se for preciso arranca-se um braço ou uma perna, mas não se deixe de amar. Não deixe de dar a mão à razão para onde pendemos numa visão divertida em tempo consumado. As coisas morrem pelo amor que as renova e o amor é uma força dissipada que distende o corpo pelo o excesso dos sentidos. Morre quem ama demais.
Talvez não interesse a metafísica nem outras considerações que não encarnem o nexo material. Talvez seja conveniente desconhecer em que espaço e tempo irão os corpos terminar a vida sinuosa, estirados ao vento, a transferiram qualquer essência na obrigação que acumularam. Ou talvez a metafísica também se ame como uma região para onde o amor se reenvia sem tempo nem explicação, uma causa distante e próxima jogada no acaso de coexistirmos.
A metafísica é… já é tarde. Demorei muito naquilo que não consegui pensar. Vou correr até à praia que é a melhor maneira de pensar sobre o que se ama. Não estava só como quando vulgarmente gasto tempo a não pensar naquilo que me preenche parte da vida. Amar. Sinto-me capaz de absorver num instante todas as reflexões supérfluas que se bafejam com paciência, coisas que morrem pelo excesso do mundo, nunca chegam a desaparecer totalmente porque a sua memória transita para outros espaços inconscientes que emergem pelo gozo de dependermos. Amar. A efemeridade das coisas é o cumprimento da eternidade, que é a deslocação do seu estado provisório em momentos revistos pela síntese da ideia que perdura, aquela que será o sangue que circula pela magia dos corpos, mas que no momento não se sabe.

P.A.

domingo, 18 de novembro de 2007

Acaso


Há árvores pelo monte,
Um riacho que não reparo
Entre ervas aqui defronte
Em dia quase claro.

Deixo passar o que vejo
Num som quase presente
E feliz que não desejo
Porque estou indiferente.

As nuvens passam cientes
No acaso de as olharmos
Grandes e contentes,
Seguirmos sem pararmos

O dia cresce indiferente
A uma preocupação ancestral
De natureza inconsciente
Como uma gargalhada imortal

Deixo correr a vida
Como uma esperança
Que não será entendida
Por quem alcança.

P.A.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Memória Presente


Mais um café depois de uma refeição afocinhada no tabuleiro de um qualquer Centro Comercial. Adolescentes precários inventam-se em roupas aplicadas na desordem dos corpos como palhaços tristes, jovens bancários e vendedores apressados, pálidos do dever, vertebrados da ocasião soluçam conversas enviesadas e creditadas formalmente, remetendo os sorrisos para os passos da menina da botica. Mulheres revêem-se lentamente em reflexos de montras numa crença imediata que falta à volúpia excitante de uma saia. Estilhaços de crianças descentradas compulsivamente como cursores à descoberta dos seus heróis.

Levantei-me e segui o cenário num andar quase incorpóreo de quem recorda o presente escoado e moribundo. Talvez ir ao cinema ver um daqueles filmes como “Desafio Total”, “Combate Final”ou “Encontro Fatal”, actores espadaúdos, plastificados de músculos, de aspecto cansado de tanto personificarem os nossos desejos e ilusões. Talvez ir buscar-te ao emprego, comprar o jornal, sorver mais um café, aquilo que demais nos faz levantar todas as manhãs e se reparte pelo reconhecimento possível das coisas, emergido de outro espaço e tempo abreviados de explicação. Falaremos pelo caminho ou talvez surjas a propósito de silenciarmos o que temos para dizer, guardado como o último trunfo no final do dia.

Repouso a percepção nas coisas sustentada pela memória a longo prazo sem a qual seria cego de tudo. Vejo recordando o tinir de imagens escolhidas para a ocasião sem esforço. Outras mais difíceis de acesso ao armazém de experiências actualizadas de acordo com o conteúdo percepcionado. Um sonhador em estado de vigília que percorre o fluido de vivências emolduradas no quarto de infância, um estranho que se abate sobre a memória do presente rutilante e inconsequente como um sonho primordial.

Afinal sigo em direcção a Sintra e pelo caminho lançam-se pontes inacabadas entre bairros poeirentos, onde se inventam lojas e cafés à espera de moribundos que caiam como insectos mortos. Recordo o presente, identifico-lhe os contornos e enquadro-o sem querer na memória já futura. Hoje é assim, amanhã talvez seja diferente e surja uma qualquer árvore sem o vício de se chamar árvore, um beijo sem o vício do cumprimento que o banaliza, uma estrada que não seja para seguir. Amanhã talvez siga em direcção a Sintra, pela primeira vez, depois de te ir buscar ao emprego e trazer-te pura nos gestos que nunca vi, apenas a memória do que irá acontecer.

P.A.

domingo, 4 de novembro de 2007

Carrís da Consciência


Passei muitas horas a ouvir o barulho de ferros resignados que oscilam pelos carris fixos ao destino. Amontoados de pessoas sem princípio, sem mistério, sem aparição. Homens e mulheres, crianças pequenas que berram o desconsolo assente, outras que riem o vórtice das cores que as atiram para o jogo dos sentidos, e ainda outras, alheias aos berros que acham não haver semelhança alguma com aqueles que alguma vez possam ter saído das suas bocas, vão contando conversas dos pais distraídos, ou peripécias da solidão surgidas junto do armário de brinquedos. Compreendem o mundo por motivações puras, vêem as coisas sem o vício do seu nome, riem pelo jogo da novidade que é a melhor maneira de aprender a mudança. Mais uma estação. Olha-se para quem entra e distraímos a nudez do destino. Muitos já deixaram o jogo da novidade, cresceram na previsão de um possível descalabro, dum insucesso sentido por todos, ou um amor desviante que nunca lhes pertencerá. Que desilusão me atropela quando sinto que tantas vezes arrasto as situações em vez de as recriar. Alguém disse um dia: Por vezes é preciso fazer merda. Fazer de conta que é assim, tracejar a realidade a fundo pela interioridade ilimitada, sabotar os carris da consciência contra o muro previsto, recriando cada tijolo na insuficiente paciência de encontrar, desarticular as hastes do olhar para além da substância, num realismo infantil construído internamente sem aviso. Hoje habituo-me à surpresa e o hábito surpreende-me. Sinto as coisas pela distância de as compreender e junto-lhes outra causa indizível. Outra estação. As crianças saltam, riem e não esperam. O comboio parou para mim e para elas não. Não prolongam a melancolia de um tempo projectado. Vivem-no inversamente numa novidade súbita. São o exterior vivido das coisas, tocam-lhes e anunciam a sua presença.

P.A.

domingo, 28 de outubro de 2007

É Domingo


Ao fundo vê-se o obelisco elevado na continuidade assente. A praia promete o desembarque das influências estrangeiras e traça o facto da terra descoberta. Mais para o interior as casas acolhem olhares pictóricos, povoações encarquilhadas de tanto conviver, sentem o mundo no presente perro de trabalho e acreditam no destino.
É Domingo. Dia dos sorrisos espalhados pelo largo da aldeia. Rumores trazidos do empenhamento nos campos, olhares parados no desperdício dos movimentos de quem passa. Fala-se muito alto para não haver dúvidas, ouve-se a presença pela voz e não interessa o que se conta, apenas ecos da nossa própria história. É preciso falar para calar a dúvida do silêncio. As palavras identificam-nos provisoriamente, espalham a nossa posição antes que se instalem interrogações mudas, uma existência pintada pelos outros. Vou até ao café mais próximo e a vida compadece-me na evidência intencional para que pendemos no acerto do passo. A existência é dotada de uma comicidade directiva que chega a ser triste quando nos pomos a sentir com os outros. Uma regressão imposta para darmos mais um passo, voltar atrás para continuarmos, gargalhada de improviso invocando o possível, desvio que depois deixa de o ser, o cão que passa, o velho que ri, andar eu assim pela rua abaixo em movimentos periféricos que se esbatem numa tela já vista. Tudo é comicamente triste. Cómico na autenticidade, triste na antevisão. O já visto que nos leva à morte negada, paradoxo edificado para um fim enviesado e atirado na explosão dos sentidos. Um sorriso que desmascara uma verdade arrancada de surpresa, a certeza de sermos assim sem sermos a nossa própria causa. Cumprimos a nossa essência em gracejos autênticos e tristes, uma certeza que se torna triste porque confinada à própria evidência. Triste na antevisão, triste no que já sabemos ter fim.

P.A.


segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Um dia


Um dia acabei de ler Álvaro de Campos…

Li-o como quem procura uma sombra de árvore e subtrai à vida algumas horas da sua intensa luz regular. As folhas do livro fizeram-me cortes na consciência, as frases foram o álcool sobre as pequenas feridas.

De manhã, o sol plasmado em marquises como contentores de espera.
Como se não chegasse tenho aceso o candeeiro do topo da cama, tornando o quarto numa segunda realidade.

Levanto-me e sigo os passos anestesiados pela mente onde ainda se mexe Álvaro de Campos. Ponho na prateleira o livro meio tombado de vida e levo lentamente as mãos à cabeça grávida de escrita.

Um dia acabei de ler Álvaro de campos…

O homem engrenado no sentido universalizado de todas as coisas que das artérias da alma se estenderam para ligarem os pólos da máquina do mundo.

Um dia acabei de ler Álvaro de Campos…afinal, ele era engenheiro naval!...

P.A.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Fuga


Saí à rua e não vi
Quem esperava ver,
Afinal fingindo parti
Na alegria de não saber.

Desilusão confortada
Por brincar em mim
Uma força encarcerada
Porque eu à rua não vim.

Saí alegre outrora
Com amigos esperados,
Estarão por isso agora
Também na rua fechados?

P.A.

sábado, 13 de outubro de 2007

Espectro


São todos os caminhos a morte espectral, aprofundando os encargos do corpo quando este se vê com tanta razão de existir como as ervas nulas que assediam o desencanto. Qual o mais vivente entre os viventes se a todos o espectro do desencanto aprofunda na existência que se quer ser, na subsistência alheia e incomunicável lançada pela indefinição de causas? Talvez as pequenas flores do monte sofram mais o seu desconhecimento enraizado do que um corpo o seu tédio volúvel contemplado pelo espírito. As flores assediam, o vento indica, a alma murmura. Não temos mais que breves indicações do ser, como colunas de pedra no deserto a assinalar a nossa presença infantil num universo de dados, sinos cujo eco expande a nossa radicação, setas apontadas ao vácuo dos sentidos ou intenções que se esgotam na espera do fruto visível. A morte espectral colhe-nos enquanto erguemos colunas ou tocamos os sinos para que sejamos sempre nova visão divertida de um palco comum. Não há este ou aquele caminho que certo bem ilumina ou certo mal transvia. Há o término de todos os seres dividido em portais que esgotam a singular vontade de ser, o entardecer que curva numa opacidade de vertigens, há enfim, todos os caminhos que se cumprem pelo próprio compromisso que morre.

P.A.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Presença


A mais sublime noção filosófica intuída é simples e desinteressada, não pelo facto de pertencer ao senso comum ou exigir menos atenção à vida, mas porque se descodifica na inocência flutuante de sentirmos o mundo, de irradiarmos o corpo infantilmente para fora dos caprichos intelectuais, vitalizando-o com o sentido que excede da nossa presença. Antes de tudo estamos presentes na ocasião do olhar, do ouvir, do cheirar a civilização escorrida pelas cidades curvadas, do inalar constante da marcha fúnebre em direcção aos vales sem resposta. A presença é um fogo para onde somos integralmente arremessados como vivas imagens do interior das catedrais.
Escrevo na presença de finas partículas que se movem no momento, os dedos das mãos entreabertos ocupam um espaço único e particular, tocando pensativamente o interior vazio. Escrevo na existência efectiva que sobeja num tempo neutro como um lugar morto. Antes de tudo somos um pensamento de fundo ao adejar da luz, uma respiração inefável que se incorpora na óptica do tempo, meia face iluminada no nulo da janela. Antes de tudo somos uma analogia nostálgica do cosmos quando tudo chega a ser nada como sobreviventes equivocados.
Preciso apenas de ver o mar e escrever quando me apetecer, quando o tempo trespassar a vontade e remover o entulho das reminiscências. De ser apenas e recusar-me às vezes. Beber uma cerveja e entrar no restaurante sem dinheiro, conversarmos sobre o que poderíamos ter feito em vez de comermos pela espera de qualquer sabor diferente. É isto a liberdade, o prazer de recusar o tempo opondo um tempo pessoal, mais sensível ao ritmo cardíaco e às marcas primitivas da existência que recrutamos numa salva de risos espremidos de lágrimas. Preciso apenas de sentir o esperado e o inesperado como uma música de jazz cujas cifras melódicas, rigorosamente soltas, conectam-nos à origem do movimento criador dentro de outro movimento alargado.

P.A

domingo, 30 de setembro de 2007

Madrugada


Vassalos da felicidade equestre
Que de noite recuperam imagens
Por que a vontade investe
Em madrugadas de outras margens.

Noite onde a felicidade figura
Em sonhos nobres e equidistantes,
abrindo delével fissura
pela noite dos semblantes.

Semblantes que na margem
Preferida preparam a felicidade,
Entre sonhos de vassalagem,
No sono da equidade.

P.A.

sábado, 29 de setembro de 2007

Criação


Valha-nos qualquer mão benevolente
Como a que no início tragou o mundo
Num equivoco cego de repente
Pondo-nos em cifras de saber rotundo.

Quebrou-se o barro de uma grande peça
E a boca sobra com meia asa segura,
Eclosão que logo a seguir nos resta
a libertar-se na lembrança que perdura.

Valha-nos não só a imagem com olhar de pena
De um Deus fixo sobre a peça abandonada,
como a sentença da obra criada sem tema
e a mão sobre a inquietação trasladada.

Hoje é grande o vácuo da imperfeição
Onde esculpimos a verdade em cada pedaço,
O que era vai sendo o esboço da redenção
Do advento quebrado em novo espaço.

P.A.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Sociedade de controle


As transformações operadas nas duas últimas décadas, como resultado da aceleração dos fluxos de bens, ideias, serviços e pessoas, criaram novas realidades nacionais e transnacionais, assentes nas migrações e multiculturalismo, no desenvolvimento e globalização das tecnologias de comunicações e informações, no alargamento do comércio e respectivos mercados, e, consequentemente, na dependência e fragilização da soberania dos estados face a um novo espaço de interacção.

As denominadas “redes migratórias” informais surgem como uma realidade crescente, e assumem-se nos trilhos da clandestinidade, oriundas das mais diversas regiões, de modo cada vez mais organizado e estruturado. O fluxo de pessoas é subsequente ao desenvolvimento das tecnologias de comunicações e transportes, à alteração dos mecanismos de oferta e procura no mercado de trabalho face à maior ou menor qualificação dos migrantes.

Parece certo que os Estados se revelam incapazes de conter esses fluxos migratórios informais, num espaço transfronteiriço progressivamente lato e indefinido. Essa incapacidade poderá advir da falta de meios humanos e técnicos, do interesse instalado em determinados grupos ou organizações que protagonizam e incrementam as migrações clandestinas com a obtenção dos respectivos benefícios, e a quem os Estados poderão proteger no benefício político da aquisição de mão de obra não qualificada, para a eventual construção de obras públicas de projecção, ou ainda, da falta de vontade para se enfrentar uma realidade que é excessiva e desregulada desde a sua origem.

O défice de controlo externo dos Estados parece contrastar com a preocupação dos mesmos assegurarem o controlo interno das populações, com base na ameaça das minorias ilegais e desintegradas, para além das restantes minorias qualificadas que se encontrem em situação legal, e de todos nós que circulamos e convivemos em espaços potencialmente propícios ao desencadeamento de acções desviantes, cada vez mais vigiados, controlados, comprimidos na tensão de uma memória sempre futura. Pessoalmente, não tenho sentido uma perca nítida de liberdade ao acordar, mas reconheço que se deve tanto mais a uma fuga consciente e reprimida do que à realidade que me circunda.

O controlo individual justificado pela segurança colectiva é real, muito provavelmente necessário, por vezes legítimo. Contudo, o desejo de previsão do comportamento humano por parte da sociedade de controle, projectado na ameaça do imprevisível sobre a segurança e bem estar social, transporta-nos para um ambiente de tolerância zero, de vigilância total, de compressão de dados informativos que poderão ir até ao mais íntimo filamento carnal.

À semelhança de “Minority Report” de Steven Spielberg”, já somos sujeitos à leitura da íris para efeitos de controlo identificativo. Poderemos nada temer, mas a possibilidade de dissecação e correlação de dados numa grande memória actualizada e monitorizada à distância é, no mínimo, inquietante.

O poder repressivo e coercivo como reacção directa e consequente sobre acções que quebrem o regular funcionamento das normas sociais, deram lugar a um poder preventivo e discricionário, que actua no silêncio e sobriedade do controle permanente, antes da explosão do crime. Nesta óptica, na sociedade de controlo ou normativa, os indivíduos são vigiados e acompanhados desde o início da sua formação, no pulsar constante da sua existência, com o objectivo de prevenir e agir antes do desvio.

Restar-nos-ão, porventura, as intenções e os sentimentos que, tal como os fluxos migratórios informais, têm uma génese excessiva e desregulada, antecedem qualquer linguagem processada por medida, e permitem-nos dissimular a violência dos desejos escondidos. Porque somos pessoas que seguimos o espaço e o tempo com excepção, arrastamos os sentidos pela paisagem imiscuída de opacidade e tons, lascamos o universo à nossa medida, amamos, dependemos, consentimos, exasperamos, delinquímos, desviamo-nos para justificar-mos o acaso que somos, porque seremos sempre uma ameaça.

P.A.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Portal


Esta hora é vestida de intenções,
Da rua reflectida advém um rosto
Pelo mural feito de convicções
Até ao cais de algum barco suposto.

Tudo supõe e relembra no pensar
Qualquer coisa que está por ver,
Um prazer declinável por passar
Sobre uma construção para crer.

Este momento é outro qualquer
Que se enleva no portal já criado,
Que nem um vento presente sequer,
Atenuará o espírito rechaçado.

P.A.

Um só acto


Porque só no engano
Derradeiramente estou
Desce a vida o pano
Ao acto que acabou

Arrancaram cores
Decapitaram luzes
Onde estão os actores?
Que só vejo cruzes.

E o que é a plateia
Onde ninguém veio?
Represento numa teia
Um morto sem roteiro.

P.A.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Pretextos


“É provável que o direito de intervenção humanitária venha a ser mais frequentemente invocado nos anos vindouros – talvez justificadamente, talvez não – agora que o sistema de dissuasão entrou em colapso (permitindo mais liberdade de acção) e que os pretextos da guerra fria perderam a sua eficácia (o que obriga ao surgimento de novos pretextos)”

Chomsky, Noam – “ O Novo Humanismo Militar”, 1999

No contexto da nova ordem mundial, parece-me oportuno transcrever Noam Chomsky sobre a intervenção da Nato na Jugoslávia na sequência da crise do Kosovo. No seguimento desta intervenção adianta o autor o surgimento de uma nova era das questões mundiais, uma era em que os “Estados iluminados” poderão usar a força nos casos em que a “considerem justa”, ignorando as “antigas e restritivas leis” e obedecendo a “modernas noções de Justiça” que modelam à sua própria maneira. “A crise no Kososvo ilustra… a nova disposição da América para fazer o que considera justo – não obstante o direito internacional”

A intervenção militar da NATO liderada pelos E.U.A., sob o pretexto de uma acção humanitária como resposta às atrocidades Sérvias no Kosovo, encontra algo de semelhante na intervenção militar no Iraque, desta vez sob novo pretexto, já completamente desmistificado, a segurança mundial face à ameaça de armas de destruição maciça. Pretexto este que, pontualmente se entrelaçava noutro pretexto, também ele humanitário, a violação dos direitos humanos de Saddam Hussein sobre o seu próprio povo.

No jogo de pretextos resta-nos saber qual o pretexto que prevalece à nova ordem mundial, liderada por uma só potência que não hesita muito em substituir os palcos diplomáticos pelos cenários de guerra. Se esse pretexto que, em tempo oportuno, deverá ser subjacente a uma avaliação histórica e rigorosa dos factos e uma previsão consciente dos acontecimentos, não emanar das instituições convencionalmente reguladoras, então corremos o risco de, como diz um amigo, “ quem vier a seguir que feche a porta”, ou pelo menos, que ajude o tempo a apagar o erro da memória colectiva.

P.A.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Vazio


Na lua imóvel de saber,
Só, petrifico o olhar,
Fechar os olhos e ver
Em mim vazio de luar.

Prazer de estar cego
Andar sobre o que não ando
Pegar no que não pego
Entre chamas ser lume brando.

Acabar a noite perdido
Em gordas estradas
De velho lobo deprimido
Entre pequenos nadas.

P.A.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Espera


Quedos na tela da manhã
Onde o frio é só o frio
E o movimento coisa vã,
Esperamos como um rio.

Como um rio que passa e espera
Na serenidade de o percorrermos
Pelo pensamento que se altera
Sem contudo o sabermos.

As coisas são só aquilo que são
Quando a vida é rectilínea
E alegre na nossa incompreensão
Como o rio que entretinha.

P.A.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Mistério


Pára em dia de verão e esquecimento
Uma brisa de sudário escarpada,
Rostos que vão lendo o rebento
Do mistério presente da cruz passada.

Toca-nos o mistério enquanto passamos
Num sopro de dedos gratuito,
Intruso das horas em que recordamos
Acções vãs num fundo convicto.

O mistério é esquecimento em dia de verão
Visto na presença que trespassa,
Indecifrável cravado na razão
Como anjo fundido na cena que passa.

P.A.

sábado, 25 de agosto de 2007

Ser e Ter




A globalização surge-me como um processo de encontros e desencontros de poder, que nas suas diversas manifestações sociais, sejam económicas, políticas ou teológicas, esbarram
muitas vezes naquilo que um povo tem de mais essencial, visão do mundo e cultura edificada.

A globalização implica uma ameaça mas também uma oportunidade, se a primeira é real, a segunda só no futuro, por ventura, será conhecida na sua plenitude.

O terrorismo é um fenómeno global e reincidente que advém da ameaça sobre os fundamentos civilizacionais, num espaço e tempo actualizados. Mas serão os actos terroristas a verdadeira ameaça da globalização?

Mais doa que uma ameaça real, são uma ameaça sentida. Paralisam-nos pelo impacto indirecto da brutalidade sem rosto. Contudo, será outra a ameaça, mais global e corrosiva, que julgo invadir-nos os fundamentos do ser e alheá-lo da sua natureza.

Os povos mais desenvolvidos do ponto de vista tecnológico terão criado a sociedade do ter. Somos ou tornámo-nos por aquilo que temos. Alheámo-nos do nosso viver para vivermos naquilo que os outros nos vêem viver pelo ter, em ensaios mais ou menos
cinéfilos e quotidianos.

Os bens materiais circundam-nos facilmente provocando necessidades artificiais que prolongam a nossa insuficiência. Pouco ou nada conhecemos deles senão a sua presença confortável e retribuída que utilizamos decifrada num prazer escoado e mediático.

Habitamos matérias-primas de todos os cantos do mundo, trabalhadas à medida do nosso conforto e compensação. Alheámo-nos da sua origem e das vidas gastas em tempo manufacturado ou programado em máquinas estranhas que só por acaso vemos. O ser não é estável, já não permanece edificado sobre o Bem e o Belo Platónicos, mas antes, aliena-se na distância de não pensar o ter, apropriando-o de modo volátil e sem sentido.

Poderemos perguntar; onde está a ameaça? Será possivelmente uma ameaça ao significado e sentido último da relação com o mundo. Uma ameaça que nos deixa prostrados de copo na mão sob um olhar indiferente. Uma ameaça que ressoa
no afastamento da nossa própria natureza e das coisas. Uma ameaça que impõe que se desmonte e actualize o ter na sua razão de ser.

P.A.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

"Shahid" - O mártir


O martírio expresso como acto terrorista religioso de matriz islâmica, afronta a compreensão do mundo ocidental sobre as causas e objectivos que aquele dissimula ou projecta. Tanto a compreensão nuclear, na relação directa de adequação do sujeito ao objecto, como a compreensão alargada, recorrente do historial de vivências e conhecimentos acumulados, actualizada pelos mecanismos da memória, se mostram insuficientes para integrarem tal acto.

A crença em Alá, Deus de cuja ideia absoluta por parte dos crentes, não permite interferências humanas para além da expansão da própria ideia, materializa uma visão maniqueísta do mundo, um mundo mau e um mundo bom, da luz e das trevas, do conhecimento e da ignorância, mas também da fé actuante e da fé inerte. A fé actuante, através da Jihâd, impõe-se pela natureza absolutista de Deus e pela sua natureza unificadora da comunidade de crentes e irmãos, assim como dos não crentes ou “infiéis”. Não sendo o martírio, como acto terrorista, exclusivo da religião islâmica, a fé actuante que o inspira, desenvolve-se numa “acção total”, que implica, entre outras coisas, a luta contra os inimigos que obstruem o caminho do Islão. Parece assim diferir da fé cristã que, salvaguardando os casos de fundamentalismo activista, é geralmente relegada para uma devoção pacífica na relação com Deus

Contudo, nem a grande maioria dos crentes no Islão são mártires, nem àqueles que o são parece ser razão suficiente e justificativa, a ideia de uma fé actuante, sendo que, a sua consciência moral e normativa deverá potenciar e levar a cabo tal acto. O estado de desenvolvimento da consciência moral e normativa do mártir, não deverá passar, no que diria Kohlberg, do estado pré-convencional, ou, segundo Piaget, da moral heterónima. Excluindo o facto da anomalia psíquica grave e a sua possível correlação com alguns mártires, para os sujeitos que se situam em tal estádio, as normas e expectativas sociais permanecem exteriores a si próprios, reduzindo-se a um conjunto de regras e valores externos a que se obedece para evitar o castigo ou para satisfazer desejos e interesse concretos, os invés de serem integrados em conformidade com princípios éticos universais, tais como o direita à vida. As sociedades muçulmanas educam pela moral da culpa e do castigo. Em relação ao mártir, a culpa é sempre dos outros, dos não crentes, os quais devem ser castigados. Resta assim a coragem distorcida de fazer explodir o corpo no desvalor pela própria vida e vida dos inocentes.

P.A.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

PERSPECTIVA


Esta realidade em quadros tortos
por ruas e esquinas sempre vistas,
é o embalo dos sentidos mortos
no mármore das representações revistas.

Não vejo nem ouço a presença real
que se ergue num céu recortado
de varandas, janelas e um beiral,
muda no conhecimento adiantado.

É a visão do beiral habituada,
debaixo para cima do cárcere ao céu,
o embalo duma realidade quadrada
que em mim jaz como eterno réu.

Se eu ao beiral pudesse subir
e pender meus quadros sem parede,
seria a realidade uma coisa a cair,
mais verdadeira que a visão que não teve.

P.A.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

UM GRANDE PORTUGUÊS


Passados 11 anos, não posso deixar de manifestar inquietação a propósito daquilo que considero uma parca e injusta atenção dada à escrita de Virgílio Ferreira, antes e após a sua morte, para além de meros textos estudados fugidiamente durante o ensino secundário. Ao seu desaparecimento físico, não sei se por corolário fatalista dos grandes personagens, se por triste indiferença crítica, seguiu-se uma discrição estranha e amorfa, remetida para os tais textos soltos e perdidos no secundário, sem direito sequer a um debate televisivo, em horário nobre, pelo menos para alentar os espíritos mais adormecidos. Resta-me acreditar que a serenidade do seu desaparecimento físico esteja afinar de acordo com a profundidade da sua obra.
Ler Virgílio Ferreira é fazer uma pausa obrigatória na vida e retomá-la de modo mais essencial. Morreu um homem que escrevia a presença inefável e autêntica das coisas, a orientação profunda dos seres, o sentido último da existência. O homem que escrevia sobre a consciência de fundo e reflexiva que nos acompanha pela brevidade dos sentidos, recriando-a em movimentos primordiais como um sonho restabelecido. Li as suas páginas no limite do sentir um jogo presente e ausente de relações com o mundo, com uma ordem transcendente aflorada por simples gestos retocados e inflamados pelo espírito convergente. As suas páginas trespassam a matéria e revelam-nos uma existência intersticial balanceada no desequilíbrio latente de tudo pertencer a tudo. Desvendam-nos a transcendência como o acto de pensar e sentir, como um começo, um sentido gratuito que se percorre na desatenção dos corpos sem os deixar indiferentes. Libertam-nos dos caprichos pessoais e integram-nos num mundo de possibilidades estéticas, ontológicas e afectivas. Abrem-nos um caminho pelas sendas mais profundas do amor divino e encenado pela interpretação humana.

P.A.

sábado, 18 de agosto de 2007

IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA


Sempre me questionei sobre os mecanismos racionais que suportam os actos de fé, considerando que a noção de Deus e a fé na sua existência é um acto consciente e racional, ao ponto de elevar os homens a atitudes radicais ou mesmo fundamentalistas como sentido último da vida.

A fé a as suas manifestações organizadas em dogmas religiosos é um fenómeno global e intrínseco à própria natureza humana. No caso da religião islâmica, traduzida como a submissão à vontade de Deus, o homem deposita as suas capacidades e competências numa omnisciência divina, que encerra em si própria o ser absoluto.

Tudo aquilo que não emana da perfeição absoluta, para além dos profetas como mensageiros privilegiados das revelações transcendentes, mostra-se imperfeito, precário e sujeito às vicissitudes do tempo, no fundo, mostra-se ameaçador.

Parece-me que a pendência entre imanência ou manifestações terrenas e transcendência ou absoluto longínquo, joga-se num tabuleiro real e global, afecta a compreensão humana e leva a posições radicais.

Neste contexto, se considerarmos que o islamismo pende para a transcendência em desfavor da imanência, que em caso extremo, se traduz na anulação da vontade e autonomia humanas, submetidas à exaltação da vontade e luz divinas, a ameaça alarga-se ao vasto desígnio humano.

Sobre isto penso que ambos os planos do real devem ser vividos na sua globalidade. E porque a ambos pertencemos nos elementos combinados aleatoriamente, por colisões atómicas intervalares numa mistura de acaso e necessidade. Porque as esferas planetárias são coágulos ejectados e arrefecidos no princípio da matéria. Porque temos a capacidade de pensar o nosso isolamento como representantes aprendizes de uma ordem transcendente, que aperfeiçoamos por linguagens criadas ou decifradas no jogo possível do já existente. Porque é grande a nossa presença rotunda encerrada por um Deus gravítico numa orbita perpétua. Porque, quem sabe? Não habitaremos o próprio corpo divino, e a terra seja uma espécie de polegar que um dia nos embutirá na crosta da morte.

Prezamos vulgarmente Deus fora da matéria terrena, em atmosferas concêntricas e perfeitas, alimentado à distância, prostrado numa região muda e moralista. Um Deus de sentido incorpóreo e niilista, sustentado por imperativos necessários de obediência. Radicais e fundamentalistas, enganar-se-ão se não interrogarem a transcendência na sua presença quotidiana e próxima, integrada no caminho de casa para o trabalho, numa ordem viva superior. Enganar-se-ão se pensarem que Deus é incompatível com a tecnocracia e progresso humano, com o peso do espírito condensado aqui e agora.

P.A.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

INÍCIO


Ao fim da tarde o olhar repousa no brilho ténue da Praia, em tons breves que se misturam no cansaço do dia e se preparam para as últimas anotações. Ainda tem dois anos e meio e brinca com outra criança de cinco anos que captou na altura no meio da praia, num Abril quase deserto e desinteressado. Afasto-me alguns metros para dar espaço e tempo àquele momento, volto-me cadenciadamente para o meio da praia para ir cuidando de uma presença sempre diferente. O olhar repousa na brisa de sons do entardecer e aglutina-se num sentimento soberbo e diverso de vida, que interfere pelo corpo numa corrente de prazer tranquilo. O olhar esgueira-se novamente para o meio da praia onde as crianças tecem movimentos alheios noutro prazer que é o meu, influente e fecundo como as partículas do universo, como os tons do entardecer. A mais velha intervém na areia na dependência da acção e segurança das formas. O meu inicia a cada momento gestos imprecisos de uma grande etapa para mover as pás do moinho, que ora regridem na resistência da areia ora espalham grãos efusivos até atingirem a outra, que de imediato se levanta para berrar de olhos fechados. É preciso tempo filho. Tempo para remover e sentir os grãos de areia escoarem-se entre os dedos ou caírem nas pás do moinho como os primeiros movimentos do universo a repercutirem-se na inocência dos gestos, a formarem a noção de espaço e só depois de tempo, a serem um todo de areia, moinho, dedos, entendimento, água, vento, aqui e além, tons do entardecer.

P.A.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

UM SENTIMENTO


Há momentos em que os sentidos se amortizam numa síntese confusa e relaxante, quase anestesiante, e deixam de filtrar e interpretar os fenómenos como rotinas dadas e necessárias, para quebrarem a película do real e participarem na essência particular das coisas. Difícil é descrever essa essência como algo que me absorve para um estado corporal vibrante mas enternecedor da vida. É o que sinto por ti, que durante todos estes anos acompanhámos e penetrámos a história e o pulsar espontâneo um do outro, como se tudo se afigurasse compensador, fascinante e até impossível. Tenho tendência para complicar os sentimentos e as relações com os outros, acho mesmo que nunca consegui aceitar a simplicidade que rege o nosso caminho originário, no sentido da subsistência, aproveitamento e entrega perante a energia que nos circunda. Amo-te na diferença, quando tu nem sequer pertençes a este estado de agitação contemplativa que acaba sempre por se desfazer em pequenas esperanças de efeito imediato. Mas quando não pertençes parece que te amo ainda mais, porque deixas uma saudade e um desejo de te puxar para a aventura do inexplicável, do indizível, apenas para te mostar que o amor por ti é possível coexistir num espaço e tempo fora do ritmo comum. Pertençes ao meu caminho interior, ajudas a percorrê-lo com o teu andar firme e determinado, sinalizá-lo com o teu olhar intenso, enriquece-lo com o teu amor possuído de desejo e vontade de segregar novos ciclos vitais. Amo-te neste dia e em todos os dias que morremos na esperança de nunca morrermos, em que nos consumimos com prazer e dor como um puro "Robusto".

P.A.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

FUNDO


Para que servem palavras escritas
sem um Deus mudo de sentido,
governando entre linhas interditas
pela hora gasta do poema exigido?

Se há fundo de ser não conhecido
para que vivemos enfeitados,
é um qualquer Deus requerido
na hora que somos chamados.

As palavras ditam-se pela impossibilidade
de as remetermos para outro lugar
que não seja a possível verdade
de não haver lugar para encontrar.

Escrevo na impossibilidade de viver,
no jogo que o possível exaure e abre
como um outro Deus para entreter
e que por gozo ninguém sabe.

P.A.

MORTE DOS TEMPOS


Fui até à floresta dos acasos
sob árvores estacionárias,
pisei de olhos rasos
algumas folhas precárias

Parei, despi meu manto,
elevei no crepúsculo a enxada,
crente cavei meu antro
e pus flores à entrada

Aí depositei meu corpo,
quebrei os últimos ligamentos
da vida de um morto,

esperei por novos rebentos
que da minha alma nascessem,
e apenas sofri a morte dos tempos.

P.A.

domingo, 12 de agosto de 2007

LUGARES


Por vezes não sei o que sobeja dos meus dias, por isso gosto de reter-lhes pedaços de alguns instantes, é a minha maneira de lhes pertencer para sempre.
Suspender aquilo que demais nos faz levantar todas a manhãs e se reparte pelo reconhecimento possível de pessoas e lugares, emergido de outro espaço e tempo abreviados de explicação.
Suster a brevidade dos sentidos durante as pausas que nos permitimos fazer à vida, como o céu que se olha todos os dias mas porque sempre se olha nunca se vê.
Lugares é o tempo diário que decorre de outro tempo mais íntimo, abrangente e primordial como um sonho restabelecido, que desejo fotografar sem o risco de me atrasar para o imediato, mas na convicção de que o aqui e agora se cumpre na eternidade desse tempo, para onde convergem a memória e expectativa.

P.A.