segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Momento


Cheguei ao café defronte encimado de letras, frisos, luzes e vidros, antigos materiais pensados sobre a consternação das pessoas que entram e saem. O balcão perdura agora mais preso ao chão como tudo aquilo que envelhece, envolve ânimos acabados que ajudaram a viver as horas mortas, intrigas e projectos que resvalaram pela rua até ao largo. As coisas morrem. Vivemo-las num entretenimento cego para dar cor à nossa presença, depois absorvemo-las já misturadas com a próxima intenção. A graça das coisas absorve-se pela graça de outras, o que fica são impressões gerais enroladas numa conversa de café, desabafos firmes entre o medo e o consolo. Alguém dizia que o importante é amar, se for preciso arranca-se um braço ou uma perna, mas não se deixe de amar. Não deixe de dar a mão à razão para onde pendemos numa visão divertida em tempo consumado. As coisas morrem pelo amor que as renova e o amor é uma força dissipada que distende o corpo pelo o excesso dos sentidos. Morre quem ama demais.
Talvez não interesse a metafísica nem outras considerações que não encarnem o nexo material. Talvez seja conveniente desconhecer em que espaço e tempo irão os corpos terminar a vida sinuosa, estirados ao vento, a transferiram qualquer essência na obrigação que acumularam. Ou talvez a metafísica também se ame como uma região para onde o amor se reenvia sem tempo nem explicação, uma causa distante e próxima jogada no acaso de coexistirmos.
A metafísica é… já é tarde. Demorei muito naquilo que não consegui pensar. Vou correr até à praia que é a melhor maneira de pensar sobre o que se ama. Não estava só como quando vulgarmente gasto tempo a não pensar naquilo que me preenche parte da vida. Amar. Sinto-me capaz de absorver num instante todas as reflexões supérfluas que se bafejam com paciência, coisas que morrem pelo excesso do mundo, nunca chegam a desaparecer totalmente porque a sua memória transita para outros espaços inconscientes que emergem pelo gozo de dependermos. Amar. A efemeridade das coisas é o cumprimento da eternidade, que é a deslocação do seu estado provisório em momentos revistos pela síntese da ideia que perdura, aquela que será o sangue que circula pela magia dos corpos, mas que no momento não se sabe.

P.A.

domingo, 18 de novembro de 2007

Acaso


Há árvores pelo monte,
Um riacho que não reparo
Entre ervas aqui defronte
Em dia quase claro.

Deixo passar o que vejo
Num som quase presente
E feliz que não desejo
Porque estou indiferente.

As nuvens passam cientes
No acaso de as olharmos
Grandes e contentes,
Seguirmos sem pararmos

O dia cresce indiferente
A uma preocupação ancestral
De natureza inconsciente
Como uma gargalhada imortal

Deixo correr a vida
Como uma esperança
Que não será entendida
Por quem alcança.

P.A.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Memória Presente


Mais um café depois de uma refeição afocinhada no tabuleiro de um qualquer Centro Comercial. Adolescentes precários inventam-se em roupas aplicadas na desordem dos corpos como palhaços tristes, jovens bancários e vendedores apressados, pálidos do dever, vertebrados da ocasião soluçam conversas enviesadas e creditadas formalmente, remetendo os sorrisos para os passos da menina da botica. Mulheres revêem-se lentamente em reflexos de montras numa crença imediata que falta à volúpia excitante de uma saia. Estilhaços de crianças descentradas compulsivamente como cursores à descoberta dos seus heróis.

Levantei-me e segui o cenário num andar quase incorpóreo de quem recorda o presente escoado e moribundo. Talvez ir ao cinema ver um daqueles filmes como “Desafio Total”, “Combate Final”ou “Encontro Fatal”, actores espadaúdos, plastificados de músculos, de aspecto cansado de tanto personificarem os nossos desejos e ilusões. Talvez ir buscar-te ao emprego, comprar o jornal, sorver mais um café, aquilo que demais nos faz levantar todas as manhãs e se reparte pelo reconhecimento possível das coisas, emergido de outro espaço e tempo abreviados de explicação. Falaremos pelo caminho ou talvez surjas a propósito de silenciarmos o que temos para dizer, guardado como o último trunfo no final do dia.

Repouso a percepção nas coisas sustentada pela memória a longo prazo sem a qual seria cego de tudo. Vejo recordando o tinir de imagens escolhidas para a ocasião sem esforço. Outras mais difíceis de acesso ao armazém de experiências actualizadas de acordo com o conteúdo percepcionado. Um sonhador em estado de vigília que percorre o fluido de vivências emolduradas no quarto de infância, um estranho que se abate sobre a memória do presente rutilante e inconsequente como um sonho primordial.

Afinal sigo em direcção a Sintra e pelo caminho lançam-se pontes inacabadas entre bairros poeirentos, onde se inventam lojas e cafés à espera de moribundos que caiam como insectos mortos. Recordo o presente, identifico-lhe os contornos e enquadro-o sem querer na memória já futura. Hoje é assim, amanhã talvez seja diferente e surja uma qualquer árvore sem o vício de se chamar árvore, um beijo sem o vício do cumprimento que o banaliza, uma estrada que não seja para seguir. Amanhã talvez siga em direcção a Sintra, pela primeira vez, depois de te ir buscar ao emprego e trazer-te pura nos gestos que nunca vi, apenas a memória do que irá acontecer.

P.A.

domingo, 4 de novembro de 2007

Carrís da Consciência


Passei muitas horas a ouvir o barulho de ferros resignados que oscilam pelos carris fixos ao destino. Amontoados de pessoas sem princípio, sem mistério, sem aparição. Homens e mulheres, crianças pequenas que berram o desconsolo assente, outras que riem o vórtice das cores que as atiram para o jogo dos sentidos, e ainda outras, alheias aos berros que acham não haver semelhança alguma com aqueles que alguma vez possam ter saído das suas bocas, vão contando conversas dos pais distraídos, ou peripécias da solidão surgidas junto do armário de brinquedos. Compreendem o mundo por motivações puras, vêem as coisas sem o vício do seu nome, riem pelo jogo da novidade que é a melhor maneira de aprender a mudança. Mais uma estação. Olha-se para quem entra e distraímos a nudez do destino. Muitos já deixaram o jogo da novidade, cresceram na previsão de um possível descalabro, dum insucesso sentido por todos, ou um amor desviante que nunca lhes pertencerá. Que desilusão me atropela quando sinto que tantas vezes arrasto as situações em vez de as recriar. Alguém disse um dia: Por vezes é preciso fazer merda. Fazer de conta que é assim, tracejar a realidade a fundo pela interioridade ilimitada, sabotar os carris da consciência contra o muro previsto, recriando cada tijolo na insuficiente paciência de encontrar, desarticular as hastes do olhar para além da substância, num realismo infantil construído internamente sem aviso. Hoje habituo-me à surpresa e o hábito surpreende-me. Sinto as coisas pela distância de as compreender e junto-lhes outra causa indizível. Outra estação. As crianças saltam, riem e não esperam. O comboio parou para mim e para elas não. Não prolongam a melancolia de um tempo projectado. Vivem-no inversamente numa novidade súbita. São o exterior vivido das coisas, tocam-lhes e anunciam a sua presença.

P.A.