sábado, 25 de agosto de 2007

Ser e Ter




A globalização surge-me como um processo de encontros e desencontros de poder, que nas suas diversas manifestações sociais, sejam económicas, políticas ou teológicas, esbarram
muitas vezes naquilo que um povo tem de mais essencial, visão do mundo e cultura edificada.

A globalização implica uma ameaça mas também uma oportunidade, se a primeira é real, a segunda só no futuro, por ventura, será conhecida na sua plenitude.

O terrorismo é um fenómeno global e reincidente que advém da ameaça sobre os fundamentos civilizacionais, num espaço e tempo actualizados. Mas serão os actos terroristas a verdadeira ameaça da globalização?

Mais doa que uma ameaça real, são uma ameaça sentida. Paralisam-nos pelo impacto indirecto da brutalidade sem rosto. Contudo, será outra a ameaça, mais global e corrosiva, que julgo invadir-nos os fundamentos do ser e alheá-lo da sua natureza.

Os povos mais desenvolvidos do ponto de vista tecnológico terão criado a sociedade do ter. Somos ou tornámo-nos por aquilo que temos. Alheámo-nos do nosso viver para vivermos naquilo que os outros nos vêem viver pelo ter, em ensaios mais ou menos
cinéfilos e quotidianos.

Os bens materiais circundam-nos facilmente provocando necessidades artificiais que prolongam a nossa insuficiência. Pouco ou nada conhecemos deles senão a sua presença confortável e retribuída que utilizamos decifrada num prazer escoado e mediático.

Habitamos matérias-primas de todos os cantos do mundo, trabalhadas à medida do nosso conforto e compensação. Alheámo-nos da sua origem e das vidas gastas em tempo manufacturado ou programado em máquinas estranhas que só por acaso vemos. O ser não é estável, já não permanece edificado sobre o Bem e o Belo Platónicos, mas antes, aliena-se na distância de não pensar o ter, apropriando-o de modo volátil e sem sentido.

Poderemos perguntar; onde está a ameaça? Será possivelmente uma ameaça ao significado e sentido último da relação com o mundo. Uma ameaça que nos deixa prostrados de copo na mão sob um olhar indiferente. Uma ameaça que ressoa
no afastamento da nossa própria natureza e das coisas. Uma ameaça que impõe que se desmonte e actualize o ter na sua razão de ser.

P.A.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

"Shahid" - O mártir


O martírio expresso como acto terrorista religioso de matriz islâmica, afronta a compreensão do mundo ocidental sobre as causas e objectivos que aquele dissimula ou projecta. Tanto a compreensão nuclear, na relação directa de adequação do sujeito ao objecto, como a compreensão alargada, recorrente do historial de vivências e conhecimentos acumulados, actualizada pelos mecanismos da memória, se mostram insuficientes para integrarem tal acto.

A crença em Alá, Deus de cuja ideia absoluta por parte dos crentes, não permite interferências humanas para além da expansão da própria ideia, materializa uma visão maniqueísta do mundo, um mundo mau e um mundo bom, da luz e das trevas, do conhecimento e da ignorância, mas também da fé actuante e da fé inerte. A fé actuante, através da Jihâd, impõe-se pela natureza absolutista de Deus e pela sua natureza unificadora da comunidade de crentes e irmãos, assim como dos não crentes ou “infiéis”. Não sendo o martírio, como acto terrorista, exclusivo da religião islâmica, a fé actuante que o inspira, desenvolve-se numa “acção total”, que implica, entre outras coisas, a luta contra os inimigos que obstruem o caminho do Islão. Parece assim diferir da fé cristã que, salvaguardando os casos de fundamentalismo activista, é geralmente relegada para uma devoção pacífica na relação com Deus

Contudo, nem a grande maioria dos crentes no Islão são mártires, nem àqueles que o são parece ser razão suficiente e justificativa, a ideia de uma fé actuante, sendo que, a sua consciência moral e normativa deverá potenciar e levar a cabo tal acto. O estado de desenvolvimento da consciência moral e normativa do mártir, não deverá passar, no que diria Kohlberg, do estado pré-convencional, ou, segundo Piaget, da moral heterónima. Excluindo o facto da anomalia psíquica grave e a sua possível correlação com alguns mártires, para os sujeitos que se situam em tal estádio, as normas e expectativas sociais permanecem exteriores a si próprios, reduzindo-se a um conjunto de regras e valores externos a que se obedece para evitar o castigo ou para satisfazer desejos e interesse concretos, os invés de serem integrados em conformidade com princípios éticos universais, tais como o direita à vida. As sociedades muçulmanas educam pela moral da culpa e do castigo. Em relação ao mártir, a culpa é sempre dos outros, dos não crentes, os quais devem ser castigados. Resta assim a coragem distorcida de fazer explodir o corpo no desvalor pela própria vida e vida dos inocentes.

P.A.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

PERSPECTIVA


Esta realidade em quadros tortos
por ruas e esquinas sempre vistas,
é o embalo dos sentidos mortos
no mármore das representações revistas.

Não vejo nem ouço a presença real
que se ergue num céu recortado
de varandas, janelas e um beiral,
muda no conhecimento adiantado.

É a visão do beiral habituada,
debaixo para cima do cárcere ao céu,
o embalo duma realidade quadrada
que em mim jaz como eterno réu.

Se eu ao beiral pudesse subir
e pender meus quadros sem parede,
seria a realidade uma coisa a cair,
mais verdadeira que a visão que não teve.

P.A.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

UM GRANDE PORTUGUÊS


Passados 11 anos, não posso deixar de manifestar inquietação a propósito daquilo que considero uma parca e injusta atenção dada à escrita de Virgílio Ferreira, antes e após a sua morte, para além de meros textos estudados fugidiamente durante o ensino secundário. Ao seu desaparecimento físico, não sei se por corolário fatalista dos grandes personagens, se por triste indiferença crítica, seguiu-se uma discrição estranha e amorfa, remetida para os tais textos soltos e perdidos no secundário, sem direito sequer a um debate televisivo, em horário nobre, pelo menos para alentar os espíritos mais adormecidos. Resta-me acreditar que a serenidade do seu desaparecimento físico esteja afinar de acordo com a profundidade da sua obra.
Ler Virgílio Ferreira é fazer uma pausa obrigatória na vida e retomá-la de modo mais essencial. Morreu um homem que escrevia a presença inefável e autêntica das coisas, a orientação profunda dos seres, o sentido último da existência. O homem que escrevia sobre a consciência de fundo e reflexiva que nos acompanha pela brevidade dos sentidos, recriando-a em movimentos primordiais como um sonho restabelecido. Li as suas páginas no limite do sentir um jogo presente e ausente de relações com o mundo, com uma ordem transcendente aflorada por simples gestos retocados e inflamados pelo espírito convergente. As suas páginas trespassam a matéria e revelam-nos uma existência intersticial balanceada no desequilíbrio latente de tudo pertencer a tudo. Desvendam-nos a transcendência como o acto de pensar e sentir, como um começo, um sentido gratuito que se percorre na desatenção dos corpos sem os deixar indiferentes. Libertam-nos dos caprichos pessoais e integram-nos num mundo de possibilidades estéticas, ontológicas e afectivas. Abrem-nos um caminho pelas sendas mais profundas do amor divino e encenado pela interpretação humana.

P.A.

sábado, 18 de agosto de 2007

IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA


Sempre me questionei sobre os mecanismos racionais que suportam os actos de fé, considerando que a noção de Deus e a fé na sua existência é um acto consciente e racional, ao ponto de elevar os homens a atitudes radicais ou mesmo fundamentalistas como sentido último da vida.

A fé a as suas manifestações organizadas em dogmas religiosos é um fenómeno global e intrínseco à própria natureza humana. No caso da religião islâmica, traduzida como a submissão à vontade de Deus, o homem deposita as suas capacidades e competências numa omnisciência divina, que encerra em si própria o ser absoluto.

Tudo aquilo que não emana da perfeição absoluta, para além dos profetas como mensageiros privilegiados das revelações transcendentes, mostra-se imperfeito, precário e sujeito às vicissitudes do tempo, no fundo, mostra-se ameaçador.

Parece-me que a pendência entre imanência ou manifestações terrenas e transcendência ou absoluto longínquo, joga-se num tabuleiro real e global, afecta a compreensão humana e leva a posições radicais.

Neste contexto, se considerarmos que o islamismo pende para a transcendência em desfavor da imanência, que em caso extremo, se traduz na anulação da vontade e autonomia humanas, submetidas à exaltação da vontade e luz divinas, a ameaça alarga-se ao vasto desígnio humano.

Sobre isto penso que ambos os planos do real devem ser vividos na sua globalidade. E porque a ambos pertencemos nos elementos combinados aleatoriamente, por colisões atómicas intervalares numa mistura de acaso e necessidade. Porque as esferas planetárias são coágulos ejectados e arrefecidos no princípio da matéria. Porque temos a capacidade de pensar o nosso isolamento como representantes aprendizes de uma ordem transcendente, que aperfeiçoamos por linguagens criadas ou decifradas no jogo possível do já existente. Porque é grande a nossa presença rotunda encerrada por um Deus gravítico numa orbita perpétua. Porque, quem sabe? Não habitaremos o próprio corpo divino, e a terra seja uma espécie de polegar que um dia nos embutirá na crosta da morte.

Prezamos vulgarmente Deus fora da matéria terrena, em atmosferas concêntricas e perfeitas, alimentado à distância, prostrado numa região muda e moralista. Um Deus de sentido incorpóreo e niilista, sustentado por imperativos necessários de obediência. Radicais e fundamentalistas, enganar-se-ão se não interrogarem a transcendência na sua presença quotidiana e próxima, integrada no caminho de casa para o trabalho, numa ordem viva superior. Enganar-se-ão se pensarem que Deus é incompatível com a tecnocracia e progresso humano, com o peso do espírito condensado aqui e agora.

P.A.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

INÍCIO


Ao fim da tarde o olhar repousa no brilho ténue da Praia, em tons breves que se misturam no cansaço do dia e se preparam para as últimas anotações. Ainda tem dois anos e meio e brinca com outra criança de cinco anos que captou na altura no meio da praia, num Abril quase deserto e desinteressado. Afasto-me alguns metros para dar espaço e tempo àquele momento, volto-me cadenciadamente para o meio da praia para ir cuidando de uma presença sempre diferente. O olhar repousa na brisa de sons do entardecer e aglutina-se num sentimento soberbo e diverso de vida, que interfere pelo corpo numa corrente de prazer tranquilo. O olhar esgueira-se novamente para o meio da praia onde as crianças tecem movimentos alheios noutro prazer que é o meu, influente e fecundo como as partículas do universo, como os tons do entardecer. A mais velha intervém na areia na dependência da acção e segurança das formas. O meu inicia a cada momento gestos imprecisos de uma grande etapa para mover as pás do moinho, que ora regridem na resistência da areia ora espalham grãos efusivos até atingirem a outra, que de imediato se levanta para berrar de olhos fechados. É preciso tempo filho. Tempo para remover e sentir os grãos de areia escoarem-se entre os dedos ou caírem nas pás do moinho como os primeiros movimentos do universo a repercutirem-se na inocência dos gestos, a formarem a noção de espaço e só depois de tempo, a serem um todo de areia, moinho, dedos, entendimento, água, vento, aqui e além, tons do entardecer.

P.A.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

UM SENTIMENTO


Há momentos em que os sentidos se amortizam numa síntese confusa e relaxante, quase anestesiante, e deixam de filtrar e interpretar os fenómenos como rotinas dadas e necessárias, para quebrarem a película do real e participarem na essência particular das coisas. Difícil é descrever essa essência como algo que me absorve para um estado corporal vibrante mas enternecedor da vida. É o que sinto por ti, que durante todos estes anos acompanhámos e penetrámos a história e o pulsar espontâneo um do outro, como se tudo se afigurasse compensador, fascinante e até impossível. Tenho tendência para complicar os sentimentos e as relações com os outros, acho mesmo que nunca consegui aceitar a simplicidade que rege o nosso caminho originário, no sentido da subsistência, aproveitamento e entrega perante a energia que nos circunda. Amo-te na diferença, quando tu nem sequer pertençes a este estado de agitação contemplativa que acaba sempre por se desfazer em pequenas esperanças de efeito imediato. Mas quando não pertençes parece que te amo ainda mais, porque deixas uma saudade e um desejo de te puxar para a aventura do inexplicável, do indizível, apenas para te mostar que o amor por ti é possível coexistir num espaço e tempo fora do ritmo comum. Pertençes ao meu caminho interior, ajudas a percorrê-lo com o teu andar firme e determinado, sinalizá-lo com o teu olhar intenso, enriquece-lo com o teu amor possuído de desejo e vontade de segregar novos ciclos vitais. Amo-te neste dia e em todos os dias que morremos na esperança de nunca morrermos, em que nos consumimos com prazer e dor como um puro "Robusto".

P.A.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

FUNDO


Para que servem palavras escritas
sem um Deus mudo de sentido,
governando entre linhas interditas
pela hora gasta do poema exigido?

Se há fundo de ser não conhecido
para que vivemos enfeitados,
é um qualquer Deus requerido
na hora que somos chamados.

As palavras ditam-se pela impossibilidade
de as remetermos para outro lugar
que não seja a possível verdade
de não haver lugar para encontrar.

Escrevo na impossibilidade de viver,
no jogo que o possível exaure e abre
como um outro Deus para entreter
e que por gozo ninguém sabe.

P.A.

MORTE DOS TEMPOS


Fui até à floresta dos acasos
sob árvores estacionárias,
pisei de olhos rasos
algumas folhas precárias

Parei, despi meu manto,
elevei no crepúsculo a enxada,
crente cavei meu antro
e pus flores à entrada

Aí depositei meu corpo,
quebrei os últimos ligamentos
da vida de um morto,

esperei por novos rebentos
que da minha alma nascessem,
e apenas sofri a morte dos tempos.

P.A.

domingo, 12 de agosto de 2007

LUGARES


Por vezes não sei o que sobeja dos meus dias, por isso gosto de reter-lhes pedaços de alguns instantes, é a minha maneira de lhes pertencer para sempre.
Suspender aquilo que demais nos faz levantar todas a manhãs e se reparte pelo reconhecimento possível de pessoas e lugares, emergido de outro espaço e tempo abreviados de explicação.
Suster a brevidade dos sentidos durante as pausas que nos permitimos fazer à vida, como o céu que se olha todos os dias mas porque sempre se olha nunca se vê.
Lugares é o tempo diário que decorre de outro tempo mais íntimo, abrangente e primordial como um sonho restabelecido, que desejo fotografar sem o risco de me atrasar para o imediato, mas na convicção de que o aqui e agora se cumpre na eternidade desse tempo, para onde convergem a memória e expectativa.

P.A.