quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Questão do Sentido


“A morte é uma possibilidade ontológica que a própria presença sempre tem de assumir. Com a morte a própria presença é impendente em seu poder ser mais próprio. Nessa possibilidade, o que está em jogo para a presença é pura e simplesmente seu ser-no-mundo. Sua morte é a possibilidade de poder não mais estar presente. Se, enquanto essa possibilidade, a presença é para si mesma, impendente, é porque depende plenamente de seu poder-ser mais próprio. Sendo impendente para si, nela se desfazem todas as remissões para outra presença.”

Martin Heidegger – “Ser e Tempo

Levantei-me de súbito, estarrecido, aplacado pela morte que um dia interromperá para sempre o diálogo surdo e mudo com o mundo. O fim que justifica uma última visita aos pais e amigos que decorreu tantas vezes adiada de sentido. Seguiram-se alguns passos acidentados com as mãos na cabeça até que a porta do quarto embateu com estrondo no embargo frio da consciência. É o ser para a morte que de súbito desenterra algures momentos de prazer e felicidade actualizados num holograma de sentimentos inquietos, a intentar contra a continuidade do desejo como a lembrar o outro lado do possível, a estremecer a realidade adquirida pela conveniência humana. Voltei à cama, conformado no silêncio da evidência, iludido na tentativa de aceitá-la numa breve visita aos pais e amigos. O entardecer que um dia sepultará o peso morto que é o elo de ligação entre o mundo e o fundamento íntimo que se cumpre pela essência individual, que encerra em si própria um fim não anunciado, como condição necessária de maturação e restabelecimento. Último marco onde jazem estátuas minadas de consentimento incrustado, razão que desentranha todo o sentido das experiências agora desfasadas numa imagem amarga e obliterada. Um dia em que seremos chamados a aprofundar os encargos do nosso fundamento, ao cavar lento da essência que se esgotou pela insistência de viver, invertendo o corpo na terra como uma semente franzina que se fecha para nova etapa.

P.A.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Estrada de Sintra


Ouvem-se risos no começo como se partisse um grande espelho com que o nosso espírito parece crescer. A tarde padece, desapareceu já numa palestra consentida ao fundo da rua. As casas ocultam-se propositadas em sombras penitentes, resíduos de uma visão indefinida que parece ser a mais fecunda do dia. Os objectos emergem lentos no escuro e retomam a sua origem numa realidade suspensa a rasar o inconsciente. Desço a estrada de Sintra. O dia adensa-se numa abstracção que logo transborda do corpo em murmúrios crepusculares. Hoje foi tudo monstruosamente denso, uma densidade que agora a tarde resume num absurdo cansaço. A cidade de onde regresso está despegada no tempo à espera de concertar o uso, cerca-se de expectativa ansiosa e desgarrada que expulsa gente pelas praças e avenidas de cor, ou mais recatadamente, denota um certo acatar das suas pracetas, uma paz sem começo, um cair não provocado das paredes nuas, o sono diurno das pombas sem compromisso, o dia que passa inteiro num recanto como um cão submisso. O nevoeiro aglutina a estrada de Sintra enquanto as árvores franzidas tendem para um fim carregado de velhice. As luzes dos faróis descobrem um gato morto. Passei ao lado. Afasto-me no silêncio da negação. Não quero mas ressuscita na mente absorvida pela recusa do fim, a intentar contra as promessas de eternidade que fabrico para me aguentar na fronteira entre o nada e a certeza. Merda para o gato. Ressuscitará em todos que por ele passarem e tiverem medo de haver fim. Nunca mais chego e o gato continua na fronteira entre a berma da negação e o asfalto da evidência, o medo e a viagem interrompida, a fuga ou a maturação do fim como razão para seguir ou estancar-me num corpo arrefecido de enganos mas ciente da condição de existir, como a tentar desbravar nexos na fronteira do passado e futuro, que são presente e se inflamam na essência de ser. Merda para o gato, não queria pensar estas coisas. Onde me leva a estrada de Sintra?

P.A.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Penso em ti


Amanhã existirei para as coisas numa espera prolongada. Penso em ti. Tudo irá acontecer numa lentidão de pormenores, a estação, os comboios, a demora amorfa retribuída na forma trémula das carruagens que surgem pelo aviso metálico. Estarei à tua espera, os cadernos serão os mesmos, os livros emprestados de um colega de curso que te conhece de soslaio quando por vezes acertamos ideias no corredor da Universidade. Centraremos em ambos a vida que começa na estação como todas as vidas. Escrevo porque penso em ti e escrevo para me lembrar dos comboios que surgirão pelos nervos da espera, as pessoas que sem rosto enchem a existência obrigatória, os deveres que nunca me afectam, e que talvez por isso me pesem mais do que se na verdade me comprometessem directamente. A espera indirecta das coisas resvala na mente até à ausência de estar, parte imprecisa como um cão pela noite para voltar à interrogação do corpo com olhar reflexivo que me faz pensar em ti no começo do dia. Quantas razões me separam de ti? Da viagem breve até Cruz da Pedra? Quantas razões me separam das primeiras afectações do dia após o sono rasgado no colchão? Dos primeiros clarões de luz furtiva que parecem atrair-me para fora da matéria? Não penses o que escrevo, amanhã será a estação e nada mais, estarás lá, serás o eixo real entre o resto suposto, a presença segura entre os apitos escoados dos comboios, os passos certos no patamar que finda, o conforto de estações percorridas entre o prazer e o possível. Estarás lá, uma dádiva intemporal como a nossa lembrança risonha, um presente cujo invólucro se rasga na alegria e inocência do instante assinalado, e eu amorfo subsistindo no clamor dos espaços infinitos como o papel de presente amarfanhado. Partirei depois descansado na esperança da tua eternidade, no prazer esgotado da tua grandeza aglutinante e simples.

P.A.