sexta-feira, 31 de julho de 2009

Terrorismo global, o vazio de coisa nenhuma


O terrorismo global protagonizado pela Al-Qaeda, sofreu e tem vindo a sofrer algumas derrotas significativas com o enfraquecimento de pontos nevrálgicos da sua rede, através da captura ou morte de alguns dos seus líderes. O seu modus operandi tende para uma formatação cada vez menos dependente de uma cadeia de comando hierárquica. Embora funcionando num sistema de células, estas adquirem um envolvimento de grande amplitude e dispersão. Como nos refere António de Sousa Lara[1] “O sistema actual configura um terrorismo de segunda geração, no qual dificilmente vislumbramos uma permanência da lógica hierárquica tradicional. Pelo contrário, as células terroristas são agora suficientemente autocéfalas, estão apenas unidas, numa primeira fase de formação doutrinária e táctica, para depois se isolarem no contexto de uma inserção social participante, dentro da vida habitual de uma determinada comunidade, devendo gerar a sua própria autonomia de complemento de formação táctica, logística e de desempenho geral, uma vez que a definição da sua estratégia é de tal maneira pública que está permanentemente disponível na Internet ou nos noticiários da própria televisão”. Neste sentido o autor acrescenta que muito mais dificilmente se identificará, por exemplo, uma estrutura global da Al-Qaeda, “pela simples razão de que não existe uma sociedade sistémica, administrativa, hierárquica, burocrática, logística, em tal organização terrorista, mas sobretudo, uma “estrutura” segmentada, um ambiente (como nos sistemas operativos dos computadores)…”Trata-se, por isso, em boa parte de uma nova formatação da actuação terrorista e se já era difícil, ao identificar uma célula, reconstituir a hierarquia clandestina tradicional, por maioria de razão, é hoje particularmente mais gravoso e difícil, a partir de um núcleo terrorista actuante, identificar as suas ligações e os seus apoios, uma vez que todo o processo evoluiu para um sistema de natureza dispersiva”[2]

Esta nova formatação remetem-nos para um conjunto de acções que se podem inserir num tipo de violência estrutural, ao contrário da violência directa[3]. Esta, segundo o modo como classicamente é entendida, é desencadeada por actores identificáveis que infligem directamente danos a outros, incluindo-se neste tipo a guerra, a tortura, o crime, ou as acções terroristas. A violência estrutural, decorre de causas inseridas na própria estrutura social, onde é muitas vezes difícil de identificar um autor ou mesmo o início do processo. Dentro deste tipo de violência podem apontar-se, como condições potenciais da sua concretização, a privação de bens elementares de sobrevivência, ou, em outra instância, por exemplo, a privação do direito à educação. A repressão, como perda de várias liberdades, em particular a liberdade de escolha, é também apontada como um subtipo de violência estrutural. A alienação é enumerada como a terceira categoria de violência estrutural, ou seja, a privação de necessidades não materiais que podem conduzir à perda de identidade, forma de violência que está a expandir-se nas sociedades contemporâneas, tanto nas ocidentais como em outras, embora por causas diferentes. “Enquanto forma de violência, a violência estrutural, nas suas diversas modalidades, nomeadamente na de alienação, explica, muitas vezes o surgimento da violência directa, mais especificamente de algumas formas de terrorismo”[4]

Trata-se assim de um campo fértil para a disseminação da propaganda que legitima alguns terrorismos e o recrutamento de apoiantes. As elites e os governos, em relação ao terrorismo, tendem a subestimar a violência estrutural e a centralizar a sua actuação numa resposta ao nível da violência directa. A tentativa sistemática de dar ao terrorismo, em algumas das sua vertentes, respostas exclusivamente militares, numa óptica de que a violência apenas se combate com a violência, já provou não ter resolvido o problema, embora o tenha atenuado em algumas das sua vertentes. Mais difícil, contudo, será atenua-lo actualmente por essa via quando o fenómeno do terrorismo tem um impacto à escala global, e cujas causas são multidimensionais.

A identidade deficitária desenvolve-se em diferentes planos, seja religioso, político, social, económico ou cultural. A ideologia ou crença religiosa como factor justificativo do terrorismo global não parece ser suficiente, sabendo para além disso, ou pelo menos intuindo, que o processo de socialização nas sociedades islâmicas é orientado pela moral da culpa e do castigo. Segundo os estádios de desenvolvimento moral mencionados por Kohlberg, as sociedades islâmicas poderão situar-se num estádio pré-convencional, em que as normas e valores permanecem como realidades exteriores aos próprios indivíduos, criando nos sujeitos como que uma espécie de efeito de automatismo e predestinação, pelo que, dificilmente são vividas e integradas em princípios éticos universais, tal como o direito à liberdade de expressão, direito à justiça proporcional ou, em último caso, direito à vida. Este modelo potencia posições radicais e fundamentalistas, que não obstante serem geralmente diluídas na convivência pacífica dos crentes, tornam-se uma ameaça latente.

Se é verdade que um terrorista não é vulgarmente considerado um psicopata, comporta-se como tal. A perigosidade do fundamentalismo religioso, em particular do terrorismo islâmico, remete-nos para causas criminógenas relacionadas com uma patologia anti-social de tipo psicopata, tipificadora da personalidade dos agentes. Miguel Sanches de Baêna, ao definir diferentes classes de terroristas, considerando a sua posição e influência no seio das organizações, dá particular destaque à classe V, constituída por amadores, civis e sem experiência, como uma das classes mais perigosas e de difícil detecção. A sua faixa etária é abrangente, de ambos os sexos, de nível educacional baixo, estrato social correspondente a uma população urbana ou rural pobre, nascidos no meio do crime ou da cultura do combate
[5]. Isto remete-nos para populações, que dado as infra-estruturas sociais e económicas em que vivem, aliadas a um referencial moral, educativo e afectivo pobres, tornam-se permeáveis à influência e aliciamento de grupos terroristas, traduzindo o seu fácil recrutamento, um meio alternativo de vida para indivíduos que procuram um sentido de pertença não conseguido em estruturas convencionais. Os acontecimentos nos arredores de Paris, em 2006, reflectem um modelo de violência gratuita sem causas aparentemente determinadas, senão a procura e apropriação do mundo pela destruição. O atentado de 11 de Março em Madrid, embora tipificando um acto terrorista indiscriminado, apresenta contornos que o ligam a agentes anteriormente relacionados com o delito comum.

O terrorismo Global, para além do absolutismo divino, visão maniqueísta, expansão pela jihâd ou fé actuante, crise identificativa de um modelo fechado que se forma contra os outros, interage com uma patologia anti-social ou psicopática, que pode reunir energias nas populações desenraizadas dos aglomerados urbanos e desnutridos de quase tudo, ligadas a meios marginais e delinquentes como consequência lógica, cuja violência surge como um modo de apropriação do mundo que de outra maneira não é conseguido. Na personalidade anti-social, a passagem ao acto é um hábito que toma o lugar da reflexão, da emoção e dos projectos. Forma-se numa moralidade simplista destituída de emoções ou sentimentos, é uma ética solitária, que não pede nem dá, é pragmática e encurtada pela impulsividade do acto. O mundo é entendido como uma resistência permanente, o qual, numa relação meramente instrumental, pode ser violentamente fundado no seu nada. Parece ser neste espírito de missão, sem comando, de ímpeto espontâneo e voluntarista, que se configura a ameaça do terrorismo global. A jihâd, como esforço ou luta no caminho de Deus, pode identificar-se como um movimento permanente contra o sistema global estabelecido, persistente nas suas acções, anárquico nos meios, incapazes nos seus objectivos últimos, fundados num idealismo inacessível e utópico.

P.A.



[1] Lara, António de Sousa, “O Terrorismo e a Ideologia do Ocidente”, Almedina, Fev.2007, pág. 44-45
[2] Ibid. Pág. 45
[3] Simões, Maria João, citando Cassese e Galtung in “Terrorismo(s) e usos das tecnologias da informação e da Comunicação” Cap. XI da obra “Terrorismo”, Coord Adriano Moreira, pág. 509
[4] Ibid pág. 510
[5] Baêna, Miguel Sanches, “Nos Bastidores do Terrorismo”, “As Teias do Terror” “Novas ameaças globais”, 2006 pág. 131-132