domingo, 13 de junho de 2010

Marcas revistas


Fui almoçar a casa dos meus pais, agora espaço fugidio de brves considerações e despedidas sobre a guerra dos dias, porque tudo se criou e encaixou pela medida aproximada do desejo. Houve tempo, contudo, para ver a varanda das traseiras ainda grande, virada para quintais esquadrinhados por muros e telhados de zinco. Sempre acreditei que o gato tinha fugido por aquele cenário triste, interrompendo de repente uma felicidade inesquecível, num acto de épica traição. Muito mais tarde, já sem surpresa ou desilusão que me consternassem, soube que o bicho tinha sido despachado sem dó, consta que não havia sofás ou cortinados que não tivessem as marcas do sacana do gato. Não comprendi, tratava-o bem, desde o dia em que o meu pai entrou em casa depois de mais um dia de escritório e largou na carpete aquele elemento familiar, assustado para nós, que depressa viria a estender a sua vitalidade pela relação bicho pessoa, pessoa bicho. Não compreendi, o animal era puro, a bola levava-o a saltar e a escorregar pelos mosaicos da cozinha, tomando poses que eu descobria como forças da natureza.

Depois veio o Liceu, a inconstância, o disparate, senhores do mundo, tempo criativo e disforme a arregaçar-se por um corpo empoleirado. Hoje achei-te desmedidamente bela...tão bela como um tesouro nas águas mais profundas, onde descemos por degraus cintilantes que se estendem no espírito. Alguem disse que não há homem sem passado. Mas alguém acrescentou que também não há homem preso ao passado. Assim seja, o que é certo é que a tua presença revitalizou-me a imagem de uma adolescente de beleza imparável. Aquela que vem do Liceu, lembras-te?, pelo caminho das arcadas, no eco das graçolas cuspidas por uma adolescência desmultiplicada em controversas questões, envoltas por reflexões imprudentes e imaturidades desesperantes, tão importantes para a causa comum, na razão única e justa capaz de mudar o mundo. Na janela a seguir lembro-me de uma velha atrás das cortinas, sobrevivente do sol, da chuva, de gerações. Lembro-me do seu rosto quieto atrasando os acontecimentos no limiar da discórdia. Tu já lá estavas, eu ia estando, os dois cheios de inocência e de sangue perpétuo a navegarmos pelo frenesim das coisas. Já lá estavamos numa vontade natural de amar, na espontaneidade de sermos a derradeira respiração atrás dos olhos risonhos sem paradeiro.

Agora não estás só. Também me sinto só mesmo quando não estou só. A realidade é o que nós fazemos dela. É uma construção interior, por vezes mal amanhada, interposta entre fluxos evolutivos, a essência pessoal e aquilo que nos é dado. É uma construção feita à nossa medida e conveniência, mas sempre adaptada a princípios universais que não escolhemos, inscritos na mais profunda consciência como instintos de sobrevivência e continuidade. Esses princípios podem ser a felicidade, o amor, a vida, a vontade ou o desejo, tão reais quanto inexplicáveis. São, por isso, inscrições da alma que aprofundamos com referência ao que nos é dado pelo mundo exterior. Não te sintas só, mesmo que te sintas só quero que saibas que a solidão é um sentimento provisório de auto-conhecimento que, como muitos outros sentimentos, ajuda-nos a conhecer a nossa essência por contraste com o seu oposto.

P.A.