domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Oriente nada de novo


A propósito da actual crise no Egipto impõe-se questionarmo-nos sobre que alicerces se edificará a nova ordem político-social. E porquê? Porque estamos perante uma sociedade que é também massivamente representadora de um vasto universo religioso. O precursor dos actuais movimentos islamistas (incluindo movimentos radicais e activistas) surgiu no Egipto, nos anos 30, por parte de um professor primário, Hassan al-Banna. Surgiu num contexto de crise nacional dado a subjugação da monarquia egípcia ao poder colonial Inglês. O movimento fundado por al-Banna, a “Irmandade Muçulmana” baseava-se num programa de reformas sociais, económicas e políticas. Os poderes coloniais eram acusados de serem os responsáveis pelo declínio do País. Nos anos 40, os elementos deste movimento já haviam criado células secretas e tinham infiltrado diversas instituições públicas (1)


Numa primeira abordagem aos conceitos de instabilidade versus estabilidade cultural e identificativa aplicados às sociedades ocidentais e Islamismo, poderíamos enquadrar o dinamismo e a crise de valores do ocidente no primeiro conceito, a hierarquia e o absolutismo político-religioso do Islamismo, no segundo conceito. Contudo, sabemos que a história do Islão mostra a irrupção periódica de manifestações de ressurgimento religioso como resposta a situações de crise interna. No decurso dos séculos XVIII e XIX, com particular realce para o reinado Persa de Nasir al-Din, o clero shiita era tido como protector do povo, sendo que os sucessivos governos eram vistos como corruptos e ímpios. A corrupção e a ineficácia de Nasir al-Din aliadas à sua política permissiva de abrir a Pérsia à exploração económica estrangeira, nomeadamente, o direito exclusivo atribuído à Companhia Inglesa de produzir, vender e exportar o tabaco, provocaram ondas de agitação social que se transformariam em revoltas abertas. Estas revoltas, organizadas e lideradas pelos ulama ( lideres religiosos ) incitaram a população a juntar-se-lhes com o propósito de verem preservada a dignidade do Islão face à crescente influência estrangeira.(2)

Igualmente, durante o século XIX, a sociedade perso-iraniana foi fortemente pressionada por duas potências europeias, a Russia e a Grã-Bretanha. A expansão económica e mercantil destas potências e a sua fácil penetração pelo domínio militar da região, geradora de apetências, como o petróleo, terá sido possível por: o enfraquecimento do poder central, através da perca de soberania na organização estratégica e militar na defesa do território, decomposição da sociedade Persa num mosaico de estados autónomos, com destaque para as minorias étnicas e religiosas, o crescente poder dos ulama, assente na teoria de que o governo deveria ser preconizado pelos lideres religiosos.(3)


As raízes da crise no mundo muçulmano, situam-se assim no século XIX, com a colonização dos Estados muçulmanos, e na penetração económica e política pelas potências coloniais ocidentais. A instabilidade cultural das sociedades muçulmanas poderá, para além disso, reflectir a crise existente entre um sistema não apenas espritual-religioso, mas também ideológico, que permitiu o deslocamento do campo teológico para o sócio-político. Este, contudo, não tem conseguido impor-se na coerência, consistência e dominância de actuação, tal como o código de crenças e leis de inspiração divina sharia, que serviu o mundo muçulmano desde o século VII. Essa tentativa de providenciar uma ideologia funcional que justifique o esforço de construção do Estado-nação, de desenvolvimento económico e participação social, tem falhado. Depois do domínio colonial às mãos dos Europeus, o mundo muçulmano assistiu à sucessão de uma panóplia de regimes e ideologias que se mostraram inaptos, corruptos e repressivos.

As sociedades islâmicas, quer por motivos externos, quer internos, têm sido afectadas por crises que reflectem, por um lado, a falta de soberania de estado, pela incapacidade de resistir ao longo do tempo ao domínio das potências coloniais. Por outro, a incapacidade desse mesmo Estado se assumir numa estrutura governativa coerente, capaz de integrar o poder religioso, na definição do seu papel conciliador da sociedade. Estes factores, fornecem assim, um campo favorável à emergências dos movimentos fundamentalistas religiosos, como alternativa de viabilidade unificadora da Umma ( comunidade dos crentes em Alá ), à incoerência e instabilidade política. O processo de separação versus conciliação das vertentes política e religiosa tem sido um factor de instabilidade que reflecte a possível transição das sociedades muçulmanas, face a um mundo ocidental que, desde o período colonial, representa para aquelas um mundo ameaçador, dominador e manipulador, nutrindo, em simultâneo, sentimentos de receio e subjugação, mas também de inveja e atracção.

“É igualmente verdade que as correntes reformistas tentaram adaptar os princípios islâmicos tradicionais ao mundo moderno, e neste esforço, enfatizaram os elementos participativos e potencialmente democráticos do Islão. Salientaram os conceitos de shura (consulta, o equivalente funcional da regra de debate parlamentar), ijma (consenso da comunidade) e ijtihad (reinterpretação de certas áreas das leis islâmicas de forma a apoiar noções de democracia parlamentar, eleições representativas e reforma religiosa). Contudo, sem conseguirem adoptar o liberalismo enquanto indiferença face à religião. A mudança é mais significativa no domínio da organização política do que no campo dos valores sociais e religiosos” (4)

Teremos assim uma verdadeira mudança politico-social ou, com o actual ressurgimento da “Irmandade Muçulmana”, e de acordo com o passado, uma tentativa de substituir uma autocracia por uma teocracia?
P.A.


(1) Pinto, Mª. Do Céu de Pinho Ferreira, “Infiéis na Terra do Islão”: Os Estados Unidos, o Médio Oriente e o Islão, Fundação Calouste Gulbenkian p. 30

(2) Costa, Hélder Santos "Da Pérsia Moderna ao Irão de Palhavi", ISCSP p. 71-73


(3) Pinto, Mª Do Céu Pinho Ferreira, "Infieis na Terra do Islão" : Os Estados Unidos, o Médio Oriente e o Islão, Fundação Calouste Gulbenkian p. 39-40


(4) Ibid p. 95-97