sábado, 17 de setembro de 2011

Ser gato






Deixem-me sem ruído
Que o andar lento
Passe por trás esquecido
Do meu ser atento


Atento na plenitude
E serenidade desta luz
Pardo gesto de virtude
Que esta leveza seduz


Estará descontraída
Ou minha alma túrgida?
Se é sonho não sei
Pelo sono a soltei.


Irá leve como um sopro
Minha alma em outro?
Talvez viagem no expresso
Alma outra sem regresso.


Minha alma tem esta forma
Sem forma que a torna
Num ser feliz de bom trato
Porque eu quero ser gato

P.A.

Visão




A rua é abstracta
Numa imagem surgida
De solidão que empata
Uma visão despida.

O caminho é recriado
No pensamento visto
Por muros esgotado
Onde só insisto.

Última data de uma só vida
Gravada em cifras tumulares,
Começo de uma visão perdida
De corpo e espírito similares.

P.A.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tenho que voltar



“A praia das maçãs de novo, a casa dos meus pais de novo. Todos os anos prometo a mim mesmo
- Foi o último e ignoro, sinceramente, o que me faz voltar. Saudades de quê?...

…O que me fará voltar? Julgo que volto pelos meus irmãos. Por um certo melro no pinhal. Pelo cheiro das ondas. Pela tal criatura de que sou filho ou neto e a quem, esse sim, devo o que sou. Para que o ar da praia lhe dê boas cores…

…Agora, que o meu pai já não está, vejo-o a ler sob uma copa. Vejo a minha mãe a ler. Oiço o melro. Ainda se tira a mesa de pingue-pongue da garagem. O Pedro acende um charuto. Os olhos azuis do Miguel, os mais azuis de todos nós. As nuvens de Sintra. Eu a pedalar na tomadia, É curioso: custa-me ir embora. …”

António Lobo Antunes



Digo que é o último ano,
Mas o cheiro do mar cheio de infinito,
O espectro das casas de uma beleza abandonada,
recordam-me prazeres prolongados e eu tenho que voltar…

Digo que já não gosto,
Mas a alegria outrora semeada
Sobre desencantos adiados,
As arribas projectadas numa visão indefinida de névoas,
Rasgam o impossível do amor e eu tenho que voltar…

Digo que será noutro local,
Mas o equivoco dos tons da terra,
O contraste de rostos e convicções,
A intenção das ondas criadas à margem de qualquer saber comum,
Assinalam-me o enclave dos dias e eu tenho que voltar…

Digo que vou partir,
Mas os muros e bancos de pedra construídos na memória sepulcral,
O horizonte que arrefece pelo entardecer do corpo alheio,
Recuperam-me da incerteza das marés
E eu tenho que ficar…

P.A.