domingo, 30 de dezembro de 2012

Unidade




Abrem-se janelas para janelas abertas,
Numa unidade de ventos sem retrocesso
Que um dia me abalam pela morte,
Entre almas despidas sem recorte
No possível abismo sem acesso.
Cheguei tarde para a vida
Mesmo depois do futuro
Que é uma sigla conhecida
E indecifrável atrás de um muro.
O agora é uma lembrança incerta
Sobre um passado perecível,
O muro da memória coberta
Onde se ouvem risos do impossível.
Fecho os olhos e consinto
Esta dor plantada no entardecer
E indecisão do vento,
Fecho os olhos e mergulho
No teu corpo sem memória
E madrugada, o sentimento
De uma vida acabada.

P.A.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Infame







Acabei agora de treinar,
Quando treino é para matar.
Pode entrar, também tem direito,
Não fique aí à porta
Tipo boneco sem jeito.
Não é polícia? É pena,
Mais um que ficava a conhecer.
A polícia dá-me sempre
Bons conselhos e ensina-me
O bom caminho, ó te portas
Bem ou levas no focinho.
Assim como a minha mãe
De quem eu cuido
E mostro-lhe a pistola,
Mas ela caga-me na tola.
Ganho à semana
E é quando há,
Tudo sem papeis,
Boca a boca e voz rouca.
Um dia tudo aconteceu,
Ó grossa! Ó naco!
Eu enchi o saco.
A mulher pediu-me
Para tratar do assunto
Não prevendo um defunto.
O sacana mandou-me
Para o hospital,
Eu mandei-o para o cemitério
Porque não me levou a sério.
Conheço-o de infância
Era bom tipo
Mas eu não me fico.
Lembro-me das vezes
Que fui a sua casa
Comer milho cosido,
E se não fosse o álcool
Aquilo não tinha acontecido…



P.A.

sábado, 24 de novembro de 2012

Bateram à porta






Mãe, bateram à porta,
É o começo ou um entrave,
Alguém que ainda não sabe
Que a minha vida está morta

Podes deixar entrar,
Ficarei entre o silêncio
Da mesa e roupa por dobrar,
Tu terás com certeza
Alguém com quem falar

No fim não te rales
Com lágrimas inúteis,
Bem sabes quantos males
Ocupam os dias fúteis

Mãe, podes fechar a porta,
A conversa não tem sentido,
Sabes que aquilo que me importa
É a dor de não ter vivido…


P.A.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Assim mesmo





És tão real e inteira que
A tua presença coexiste
No inicio de todas as coisas,
E também no fim que é o mesmo
Fundamento existente,
Sempre latente, assistindo
Discretamente à criação,
Que por qualquer razão
És tu própria…


P.A.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Sobre quem passa





 
Brisa de cheiros e sabores
É a memória de quem passa
E não procura outra coisa
Além do vazio de uma praça

A inspiração cansa-se no excesso
Dos prazeres imponderáveis
Dissimulados no tempo breve
E pressentimento que trespassa

A sedução indelével
De quem não passou
Mas ficou no vazio
E certeza da praça


P.A.

sábado, 17 de novembro de 2012

Não existe




O amor não existe como o pensamos
Nem como o sentimos quando pensamos
Que é amor
Só existe como uma ausência presente
Que se une por fora e por dentro
Sem começo ou ligação

O amor não existe como o conhecemos
Nem como o exageramos quando pensamos
Que é amor
Só existe como mágoas pisadas, ilusões resistentes,
Frases mudas que se entrelaçam na condição
Aparente e adiada de tudo

O amor não existe como se ama
Nem como o encontramos quando pensamos
Que é amor
É uma intenção que se move parada
Como a fadiga das ondas que nascem
Do mar consolado para morrerem
No início de outras, movimento
perpétuo que se precipita e desvanece
Na espuma de prazer

O amor que escrevi não existe
Mas persiste dos dois lados da porta
Suspensa, como a falta de palavras
Que ocupa o seu espaço
Reservado a ser.


P.A.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Eternidade III




É do espectáculo da vida que emana a luz que nos conduzirá ao eterno repouso...


P.A.


Eternidade II




É no silêncio dos gestos e dos olhares que se revela a profundidade das intenções, dos desejos, dos sonhos, dos compromissos…



P.A.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Eternidade





Gosto de ti como o cerne das coisas,
Ao rubro, a arderem de verdade
Como os olhos que cegam de amor e vontade,
Num corpo gladiado se sentidos e prazeres,
Expelido pelo suspiro derradeiro que é a eternidade.
Gosto de ti e nem sei como, quanto e onde.
Como uma esperança permanente sobre aquilo
Que o corpo toca e transforma para além de tudo,
Uma força convicta de que não dependes de nada
Para que se cumpra o destino selado no teu peito,
Que tudo guarda sem prender.
Gosto de ti na imperfeição do tempo e desilusão dos dias,
Porque assim se justifica a intenção de ser,
De percorrer um caminho,
De escolher um lugar,
De alguém encontrar.

P.A.

domingo, 7 de outubro de 2012

Enquanto criança





Enquanto criança o tempo era maravilhosamente lento, amplo, imprudente, esquecido no leito da casa encantada, à espera de nada que não fosse encher os olhos de empenho em cada sonho novo. À espera de nada que não fosse um grande canto invisivelmente espalhado pelo ar sem preço, uma tela infindável de horas pintadas ao sabor do riso que é a raiz da inocência. Enquanto criança o tempo se desmontava ao acaso junto ao armário de brinquedos, inspirado por ideias que corriam paradas como nuvens embaladas, à espera de nada que não fosse a graça dos dias e noites a consolar remoinhos sãos, pensamentos irreais, água e terra entre mãos. Enquanto criança puras as horas se mantinham como simples matéria contemplada, um ânimo sem fim entre não e sim até ao prazer esgotado. Guardavam devaneios nos cofres do olhar, embalados pelo desaconchego permanente dos sonhos à solta nos finos cabelos, à espera de nada que não fosse o brilho renovado das estrelas, a gargalhada de luz incandescente, a possibilidade de interrogar a vida num único momento. Enquanto criança o tempo alimentava rasgos de alegria como o sol a meio do dia, de mais alto, a explodir de loucura e consolo, colhia nos braços todos os acontecimentos e sensações como se da última vez se tratasse. Nunca se sabe quando é a última vez que o corpo se ocupa dos encargos do seu fundamento, deixando de perseguir os desígnios finitos que o lançaram ao mundo. Hoje arrependo-me de descurar a possibilidade de ser criança e viver num tempo único pela última vez. Envergonho-me de adiar o fogo múltiplo que invoca a sucessão dos dias num jogo de luz e emoção. Castigo-me por encerrar as horas sem alento no medo que antecipa a morte inesperada.


P.A.

domingo, 26 de agosto de 2012

Quanto Tempo?





Tempo. Tens tempo? Quanto tempo te resta? Quantas horas faltam para o ponteiro do manómetro chegar ao zero? Quantos dias ainda te sobram para respirar o mundo, a espiral dos ventos, o fumo irreflectido que se atravessa na estrada? Pesa-te o instante acabado de tudo o que não serás, a ânsia plantada sem enredo, longe do possível, por portas abertas sem recorte. Um dia poderá já ser tarde amigo, quando a vida se fechar em copas perante a possibilidade de recriação. Um dia poderá já não acontecer, quando o corpo se imobilizar numa esquina da avenida. Um dia poderá já ser a vontade a partir entre lamúrias e sedimentos acumulados. Um dia poderá já ser a solidão incapaz de alavancar o espírito, ou a recusa crónica em aceitar a mudança como condição de sobrevivência. Um dia uma folha em branco sempre por preencher pelo receio prudente e vazio. Uma lápide gravada com os anos esquecidos no tempo imprevisto. É por isso que existes mas não só por isso. O teu olhar recorda-me um futuro incompleto tornado presente, numa sucessão invertida de sentimentos que é a lógica dos afectos, o campo ilimitado de forças que rege os traços da tua face, a esperança exacta e não outra, o amor imprudente e capaz, a morte serena e refeita.


P.A.

sábado, 7 de julho de 2012

Entre outros




Agora encontrei-me ao fim da tarde, acompanho-me com admiração e minuciosos passos, sem me interrogar sobre as ideias sempre presentes como os outros. Limito-me a ser num momento único, depois desapareço de mim a achar que quando voltar a encontrar-me serei o mesmo, a possibilidade de não vir a sê-lo consola-me, logo, enquanto sou consola-me a ideia de não saber o que serei, entre os outros.


P.A.

sábado, 23 de junho de 2012

Ponto de encontro




Os pássaros soprados pelo vento esquivam-se repentinamente como pedaços de papel, conhecedores do espaço até à cúpula do céu, onde os vejo desaparecer em pontos trémulos que se apagarão de interesse. O meu pai sentado no terraço de mãos entrelaçadas, lábios serenamente descaídos sem dizerem nada e a conterem tudo o que os olhos já viram. A memória dele é também a minha, até onde me é possível recordá-la. Ele está vivo, poderia estar morto, ausente, hospitalizado. Mas não, está vivo felizmente, sentado, sereno, a recordar com vitalidade tudo o que os olhos já viram e armazenaram em ficheiros prontos a serem activados. Falo dele e falo de mim, há um ponto em que nos encontramos, mais tarde ou mais cedo. Prefiro que esse ponto surja enquanto ele estiver vivo para faze-lo coincidir no concreto dos seus lábios serenamente descaídos e olhar revisto. Não se pode acabar sem o mínimo de consenso. A memória dele é também a minha, ocupei-a sem limites nos intervalos do escritório, da máquina de escrever, das noites fora de casa, das zangas com a minha mãe, das conversas entre amigos, quase sempre lentas e sem graça. Pai, a evolução das coisas trouxe um ponto de encontro, não por acaso, mas porque a repetição dos dias foi filtrando o essencial da vida, entre pássaros soprados pelo vento sem direcção até à cúpula do céu, de onde ninguém sai sem um ponto de encontro.


P.A.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Pausa






Teu, só teu, o mapa do corpo, centrado em ti, no presente, presente branco filtrado pela respiração pausada, virada para dentro. O resto afasta-nos do interior, a vida efervescente assemelha-se a uma terra de ninguém que neutraliza o regresso constante ao pulsar único de nós. Pára, restabelece o contacto contigo, a solidão reflexiva é o alimento para harmonizar as funções internas do corpo, é a pausa inerte entre inspiração e expiração, auscultação das sendas do corpo tornada consciente. Teu, só teu, o mapa do corpo, retomar o fluxo energético como um grande sentimento de compaixão que se apropria suavemente das coisas. Já não é o silêncio, é uma potencia existencial que valida o caos organizado, sustentável leveza do ser expiado na pele como um pré-aviso vital, anúncio que salva o erro desgovernado da vida, e nos devolve à essência de se estar a viver em simultâneo com a natureza dos sentidos. Uma serra e um lago a nascerem na base do olhar, o céu a esvair-se no silêncio audível, a terra áspera a moer-se no paladar, o ar a elevar-se na gratidão do tacto, o resto de tudo a presentear-se pelo recato do cheiro, só teu, contigo, comigo.


P.A.

terça-feira, 1 de maio de 2012

"Cidade dos mortos"





Vivem cerca de um milhão de pessoas no cemitério do Cairo. A procura de melhores condições de vida na cidade empurrou-as para uma espécie de condomínio privado, como alternativa ao caos e à falta de espaço. Ali vivem numa comunhão terrena, vivos e mortos, onde os mortos adquirem vida e os vivos planeiam e integram a morte, serenamente, sem angústias, num plano único que é aquele que foi concebido pelo Deus misericordioso. A necrópole filmada por Sérgio Tréfaut, mostra-nos a coexistência das duas dimensões humanas, sem medos e atropelos, numa organização que se encerra a si própria como uma necessidade inquestionável. A actividade das escolas, oficinas e padarias do cemitério, desenrola-se numa linha atemporal, plena de significado, perante um fim presente e assumidamente prolongado. Os vivos cuidam dos mortos, protegem as suas casas tumulares, os mortos cuidam dos vivos, concedendo-lhes uma morada eterna.


P.A.

terça-feira, 24 de abril de 2012

"Intouchables" - "Amigos improváveis"





Sobre o filme digo o seguinte: Todos diferentes mas todos iguais na cidade incontornável, que é o espelho das relações de poder, afecto e sedução, oriundas de dois mundos, ou de outros mais que esses contêm, o dos guetos e o dos palacetes luxuosos. A descoberta dos dois mundos que se confrontam sem reservas, assumidos numa crueza e fidelidade próprias. Dois mundos onde a coragem e o receio se cruzam para se justificarem, a timidez e a ousadia se escutam e saboreiam pelo riso, o requinte intelectual, adornado e infecundo, e a razão mordaz da sobrevivência, tão real quanto esquecida, passeiam-se pela nudez das ruas de Paris. Dois mundos onde a limitação do corpo nos dá a conhecer a fuga para outros espaços de acção e prazer, e a sua irreverência e robustez se vão amansando numa revelação surpreendente de sentimentos. Todos diferentes e todos iguais quando a autenticidade do ser é a única maneira de sermos com os outros.


P.A.

domingo, 15 de abril de 2012

Rumos do Sol



Será a perfeição uma luz cheia e eterna
De que não se fazem juízos e apreciações
Onde vida e morte se despojam
Que tal força distinta ilumina?
Não sei e a possibilidade
De o não ser
Consola-me…



P.A.

sábado, 7 de abril de 2012

Alvorada





Abrir os olhos numa perfeição eterna
ao começo da luz e amena superfície
que se viverá pelo ondear dos sentidos...


P.A.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Neptuno



Pelas mãos de Neptuno foi encontrado
E com honras de fogo na terra recebido
Chegou numa câmara lapidada repousado
À primeira praia do amor prometido

Rompeu as arestas provisórias e devagar saiu
A cambalear pela embriaguez da memória
Entre mastros e ondas e corações que não viu
Embriagado nesta praia provisória

A fúria de Neptuno dele se esqueceu
As chamas mundanas foram ilusórias
Perdeu tudo o que o mar prometeu
E os destroços de sua câmara
Andam em ondas irrisórias.


P.A.

domingo, 1 de abril de 2012

Que preguiça II...



O sono diurno do mar sem compromisso
o dia passa inteiro como um cão submisso
o sol é antigo e a minha visão fugaz
regresso só às sombras da paz
ataraxia espírito embrionário
adiável na sombra estacionário
sou a verdade por mim celebrada
entre a luz e mar recordo nada
para além da sombra da minha retenção
corpo prostrado sem perturbação


P.A.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Que preguiça...




Tenho-me num barco de rosas,
Em gotas do acaso hoje nado,
felizes gotas de um mar de prosas,
feliz este dia achado.

Que desejo de acabar a escrita
e citar a preguiça invicta...


P.A.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Sem pontos, só vírgulas,





A noite em claro a pensar, sempre a pensar, sem pontos, só virgulas, os pensamentos a soltarem-se da mente como pedaços de madeira queimada, a esgotarem-me, e eu a não saber mais o que me prende ao mundo, se os pequenos motivos, se as grandes causas, a lógica a ser vencida pela impulsividade das emoções, dos sentimentos, estes mais duradouros, ligeiramente, a fixarem o sofrimento entre neblinas sinuosas, sem pontos, sem pausas, sem apoios ou amarras, fantasmas enjeitados e distorcidos a passearem-se pela química das ideias, imagens reais, virtuais, virtualmente reais, pensar o que sinto, sentir o que penso, o corpo a desmoronar-se notoriamente sobre o sofá, contorcido no sangue coalhado da lógica infame, porque não há lógica entre vultos e sons arrancados pela força da angústia, da raiva, raiva de ninguém, raiva de nada, a incompreensão de tudo, o início sem regras, a origem sem convenções, apenas e tão só uma grande explosão de amor sem limites que não se explica, não se arruma categoricamente, abraça-se incondicionalmente como a inocência dos filhos que não imaginam o resto das relações do mundo, mas sentem-nas, descodificam-nas, guardam-nas, por fim, entre gestos e murmúrios incapazes, a noite em claro, a pensar, sempre a pensar, sem pontos, só vírgulas, os pensamentos a entoarem ambivalências mudas à beira de abismos, tempos passados ao presente projectado, agora percebo a mudança, foi pouca a mudança, se fosse muita não seria mudança, seria o fim, assim são vários os fins convenientes, após solavancos vitais, paragens ocasionais e indeterminadas que acondicionam o corpo em caixas fabricadas no momento até serem reabertas ao som do apito de chamada, agora percebo a mudança, sem pontos, só virgulas, a evolução das ideias que insistem no silêncio da sala, sem se comunicarem, sem se conhecerem, a esboçarem desejos e intenções pelo olhar estendido sobre a mesa, o que se pode esperar da vida? Há um corpo, uma pele, um coração que bombeia o sangue incansavelmente e nos alimenta integralmente em qualquer circunstância, se tudo falhar, podemos sempre contar com o corpo presente, inseparável, atento, nem sempre obediente, é certo, mas que tudo faz para nos manter vivos e equilibrados, que a tudo recorre para nos compensar da escassez de energia e alento espiritual, se tudo falhar há sempre um corpo, sem pontos, só vírgulas, a preencher um espaço único e interior, há a memória das coisas, dos outros, de uma voz, não tanto daquela pessoa, mas da fala, esse acto tão complexo que banalizamos a propósito de nada, a voz que nos disse que foi ao funeral do pai que tinha noventa anos, o vento gelado matou-o, a voz que só podia fazer trabalho comunitário da parte da tarde, de manhã tinha que andar por ai à procura de comida como os cães, agora compreendo, compreendo os dias que passaram tão depressa como o trânsito percepcionado da cama do quarto, a roupa estendida do avesso, o vento sem tréguas, a lâmpada fundida há meses, a pressa de sair de casa, a demora em voltar, folhas de papel espalhadas pelo banco do carro, livros no tablier, cadernos no chão, o universo caseiro a expandir-se para o carro, para outros lugares onde o carro nos leva, sem horas, horas espalhadas pelo tempo sem páginas marcadas, sem pontos, só vírgulas…,


P.A.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Tempos paralelos



Os pombos estáticos na ombreira da janela, o sol a insistir por entre as árvores do jardim, desocupado e entristecido, juntando ao fundo do canteiro pedaços soltos de memória, encurtados pelo tempo não tão distante quanto se afigura. O caminho da rede até ao Liceu, mais estreito e sombrio, porque a idade foi-lhe tirando a fantasia e clareza emocionais, à medida que o mundo amadurece e retira aos lugares o seu encanto. Mas, como tantas vezes acontece, por mais que a evolução se apodere dos espaços, transformando-os pelo tempo intruso e descaracterizado, estes resistem pela sua história e significado, porque a maioria de nós vive em lugares, onde pertencemos pela interacção construtiva de afectos, sentimentos, valores e sacrifícios.

Passeio pelas ruas da cidade, a renovação urbana intensifica-se, os novos e grandes edifícios apertam no meio os mais pequenos e antigos, com fachadas em esforço ou já em ruínas, a resistirem em grande tensão ou, simplesmente, a entregarem-se às ultimas preces dos pombos. Alguns parques e jardins desapareceram, outros foram encurtados, comprimidos, optimizados no seu uso. Outros ainda foram saneados e enviados para os grandes espaços limítrofes da cidade, amplos pavimentos que se projectam no vazio sem retorno, esgrimidos numa arquitectura global e disponível para os grandes fluxos de ideias e pessoas, sem reservas ou preconceitos, perdidos no encontro e desencontro de olhares.

A cidade é agora um espaço multicultural, por vezes engolido e mal digerido, em que as pessoas não se conhecem, não se falam, muito menos se amam. Um espaço de tensões entre passado e presente, entre a história das ruas e bairros vividos num tempo local, e a azáfama difusa e barulhenta que se expande pela diversidade das cores, cheiros e sabores, num tempo global e inconsequente. Prossigo até ao largo em frente ao liceu, um lugar amplo de terra batida e ervas avulso, ocupado na minha adolescência com jogos de futebol intermináveis, até que o crepúsculo se cansasse de fixar a bola e pudéssemos todos regressar a casa pejados de pó e suor. Eram experiências viradas para fora de casa, ao contrário de hoje, em que as experiências se recolhem para dentro de casa numa inactividade muda e introspectiva. Isto para dizer que, o largo em frente ao liceu é um lugar com significado para mim, que se mantém protegido dos grandes empreendimentos urbanísticos, agora ainda mais protegido porque ninguém cai na loucura de construir seja o que for. É um lugar que ficou na eterna companhia dos toques de bola, regressando, por vezes, aos primeiros passeios de bicicleta em círculos sob o olhar preocupado do meu avô, perdendo-se depois nos livros debaixo do braço com gracejos e piropos imberbes, evocando ainda brincadeiras descuidadas com paus e latas, pneus velhos e poças de água, arranhões e nódoas negras sem se pensar em mais nada.

O lugar em frente ao liceu é agora também um lugar em confronto com a modernidade, com o estacionamento desordenado de automóveis inclinados a invadirem os morros, com postes eléctricos, semáforos, passadeiras, rotundas, empedrados, cancelas, pavilhões rectilíneos, alunos vigiados, professores cansados, seguranças pálidos, pais presentes, avós presentes, todos presentes, todos chamados, todos no processo de conhecimento porque funcionamos em rede e não há escapatória. Como nos diz Manuel Castells, o poder das nossas sociedades está organizado em espaços de fluxos e a sua lógica altera o significado dos lugares, comprime-os pelo excesso de informação imediata, em tempo real, sem principio nem fim, eternamente presente. O significado é cada vez mais separado do conhecimento, uma esquizofrenia das lógicas espaciais. A tendência predominante é para um horizonte de espaços de fluxos sem história, em rede, visando impor a sua lógica pelos lugares segmentados e espalhados, perdidos numa singularidade de pessoas concretas em tempo próprio. Universos paralelos cujos tempos não conseguem encontrar-se porque são trabalhados em diferentes dimensões de um hiperespaço social. Um tempo global e comprimido ao limite atemporal, a par do tempo sequenciado e vivido dos lugares concretos, cuja história se conta por significados pessoais e locais.


P.A.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Entre muitos





Um realizador, Jia ZhangKE, dois filmes, “Sill Life" e “24 City”. Dois retratos sobre a China contemporânea e todo o seu peso colectivo. Uma sociedade que se basta a si própria como uma estrutura formada por pessoas dispostas funcionalmente no alinhamento útil do bem comum. A pessoa adquire sentido pleno enquanto elemento social, peça lubrificada da engrenagem conjunta onde se projectam a dignidade e valor existencial. Os sorrisos são tímidos e esporádicos, o riso é quase impensado e, quando ocorre, irrompe como um acto clandestino a denunciar sentimentos desprezíveis que o tempo disciplinado ensinou a controlar, a domesticar, a esquecer.
  Um dos operários, sim, na China só existem operários, é uma mulher de idade indeterminada, que o tempo objectivo anulou os efeitos de circulação difusa dos sentimentos, assim como os anos de vida próprios de um ciclo individual. Conta-nos que ao embarcar na sua aldeia de origem, rumo à fábrica que iria acolhe-la numa dádiva laboral, perdeu o seu filho pequeno. Este não conseguiu embarcar porque deixou de ter contacto com a mãe entre a multidão de operários. Já no barco, a mãe percebeu que o filho havia ficado em terra, tentou alertar a tripulação para o facto, ao mesmo tempo que a distância do cais aumentava a angústia da separação. Da mãe sabemos que trabalhou para sempre na fábrica e que agora, ainda sem forças, nos relata o sofrimento programado de modo tão natural como o ritmo encenado de uma máquina. Do seu filho nada sabemos, imaginamo-lo numa linha de montagem, de rosto fechado como uma peça sobriamente deslocada no seu íntimo. A memória da separação foi adaptada pelo tempo linearmente preenchido na sua sucessão, ocupada utilmente até que o sentido da evocação se tornasse mesquinho e ridículo. Mãe e filho operaram num tempo necessário e colectivo, impondo a normalização no aceleramento de uma aprendizagem rápida e eficaz, aquela em que o significado individual fica submerso e regulado pelas águas do grande rio Yang-Tsé.


P.A.