sexta-feira, 23 de março de 2012

Que preguiça...




Tenho-me num barco de rosas,
Em gotas do acaso hoje nado,
felizes gotas de um mar de prosas,
feliz este dia achado.

Que desejo de acabar a escrita
e citar a preguiça invicta...


P.A.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Sem pontos, só vírgulas,





A noite em claro a pensar, sempre a pensar, sem pontos, só virgulas, os pensamentos a soltarem-se da mente como pedaços de madeira queimada, a esgotarem-me, e eu a não saber mais o que me prende ao mundo, se os pequenos motivos, se as grandes causas, a lógica a ser vencida pela impulsividade das emoções, dos sentimentos, estes mais duradouros, ligeiramente, a fixarem o sofrimento entre neblinas sinuosas, sem pontos, sem pausas, sem apoios ou amarras, fantasmas enjeitados e distorcidos a passearem-se pela química das ideias, imagens reais, virtuais, virtualmente reais, pensar o que sinto, sentir o que penso, o corpo a desmoronar-se notoriamente sobre o sofá, contorcido no sangue coalhado da lógica infame, porque não há lógica entre vultos e sons arrancados pela força da angústia, da raiva, raiva de ninguém, raiva de nada, a incompreensão de tudo, o início sem regras, a origem sem convenções, apenas e tão só uma grande explosão de amor sem limites que não se explica, não se arruma categoricamente, abraça-se incondicionalmente como a inocência dos filhos que não imaginam o resto das relações do mundo, mas sentem-nas, descodificam-nas, guardam-nas, por fim, entre gestos e murmúrios incapazes, a noite em claro, a pensar, sempre a pensar, sem pontos, só vírgulas, os pensamentos a entoarem ambivalências mudas à beira de abismos, tempos passados ao presente projectado, agora percebo a mudança, foi pouca a mudança, se fosse muita não seria mudança, seria o fim, assim são vários os fins convenientes, após solavancos vitais, paragens ocasionais e indeterminadas que acondicionam o corpo em caixas fabricadas no momento até serem reabertas ao som do apito de chamada, agora percebo a mudança, sem pontos, só virgulas, a evolução das ideias que insistem no silêncio da sala, sem se comunicarem, sem se conhecerem, a esboçarem desejos e intenções pelo olhar estendido sobre a mesa, o que se pode esperar da vida? Há um corpo, uma pele, um coração que bombeia o sangue incansavelmente e nos alimenta integralmente em qualquer circunstância, se tudo falhar, podemos sempre contar com o corpo presente, inseparável, atento, nem sempre obediente, é certo, mas que tudo faz para nos manter vivos e equilibrados, que a tudo recorre para nos compensar da escassez de energia e alento espiritual, se tudo falhar há sempre um corpo, sem pontos, só vírgulas, a preencher um espaço único e interior, há a memória das coisas, dos outros, de uma voz, não tanto daquela pessoa, mas da fala, esse acto tão complexo que banalizamos a propósito de nada, a voz que nos disse que foi ao funeral do pai que tinha noventa anos, o vento gelado matou-o, a voz que só podia fazer trabalho comunitário da parte da tarde, de manhã tinha que andar por ai à procura de comida como os cães, agora compreendo, compreendo os dias que passaram tão depressa como o trânsito percepcionado da cama do quarto, a roupa estendida do avesso, o vento sem tréguas, a lâmpada fundida há meses, a pressa de sair de casa, a demora em voltar, folhas de papel espalhadas pelo banco do carro, livros no tablier, cadernos no chão, o universo caseiro a expandir-se para o carro, para outros lugares onde o carro nos leva, sem horas, horas espalhadas pelo tempo sem páginas marcadas, sem pontos, só vírgulas…,


P.A.