sábado, 11 de fevereiro de 2012

Tempos paralelos



Os pombos estáticos na ombreira da janela, o sol a insistir por entre as árvores do jardim, desocupado e entristecido, juntando ao fundo do canteiro pedaços soltos de memória, encurtados pelo tempo não tão distante quanto se afigura. O caminho da rede até ao Liceu, mais estreito e sombrio, porque a idade foi-lhe tirando a fantasia e clareza emocionais, à medida que o mundo amadurece e retira aos lugares o seu encanto. Mas, como tantas vezes acontece, por mais que a evolução se apodere dos espaços, transformando-os pelo tempo intruso e descaracterizado, estes resistem pela sua história e significado, porque a maioria de nós vive em lugares, onde pertencemos pela interacção construtiva de afectos, sentimentos, valores e sacrifícios.

Passeio pelas ruas da cidade, a renovação urbana intensifica-se, os novos e grandes edifícios apertam no meio os mais pequenos e antigos, com fachadas em esforço ou já em ruínas, a resistirem em grande tensão ou, simplesmente, a entregarem-se às ultimas preces dos pombos. Alguns parques e jardins desapareceram, outros foram encurtados, comprimidos, optimizados no seu uso. Outros ainda foram saneados e enviados para os grandes espaços limítrofes da cidade, amplos pavimentos que se projectam no vazio sem retorno, esgrimidos numa arquitectura global e disponível para os grandes fluxos de ideias e pessoas, sem reservas ou preconceitos, perdidos no encontro e desencontro de olhares.

A cidade é agora um espaço multicultural, por vezes engolido e mal digerido, em que as pessoas não se conhecem, não se falam, muito menos se amam. Um espaço de tensões entre passado e presente, entre a história das ruas e bairros vividos num tempo local, e a azáfama difusa e barulhenta que se expande pela diversidade das cores, cheiros e sabores, num tempo global e inconsequente. Prossigo até ao largo em frente ao liceu, um lugar amplo de terra batida e ervas avulso, ocupado na minha adolescência com jogos de futebol intermináveis, até que o crepúsculo se cansasse de fixar a bola e pudéssemos todos regressar a casa pejados de pó e suor. Eram experiências viradas para fora de casa, ao contrário de hoje, em que as experiências se recolhem para dentro de casa numa inactividade muda e introspectiva. Isto para dizer que, o largo em frente ao liceu é um lugar com significado para mim, que se mantém protegido dos grandes empreendimentos urbanísticos, agora ainda mais protegido porque ninguém cai na loucura de construir seja o que for. É um lugar que ficou na eterna companhia dos toques de bola, regressando, por vezes, aos primeiros passeios de bicicleta em círculos sob o olhar preocupado do meu avô, perdendo-se depois nos livros debaixo do braço com gracejos e piropos imberbes, evocando ainda brincadeiras descuidadas com paus e latas, pneus velhos e poças de água, arranhões e nódoas negras sem se pensar em mais nada.

O lugar em frente ao liceu é agora também um lugar em confronto com a modernidade, com o estacionamento desordenado de automóveis inclinados a invadirem os morros, com postes eléctricos, semáforos, passadeiras, rotundas, empedrados, cancelas, pavilhões rectilíneos, alunos vigiados, professores cansados, seguranças pálidos, pais presentes, avós presentes, todos presentes, todos chamados, todos no processo de conhecimento porque funcionamos em rede e não há escapatória. Como nos diz Manuel Castells, o poder das nossas sociedades está organizado em espaços de fluxos e a sua lógica altera o significado dos lugares, comprime-os pelo excesso de informação imediata, em tempo real, sem principio nem fim, eternamente presente. O significado é cada vez mais separado do conhecimento, uma esquizofrenia das lógicas espaciais. A tendência predominante é para um horizonte de espaços de fluxos sem história, em rede, visando impor a sua lógica pelos lugares segmentados e espalhados, perdidos numa singularidade de pessoas concretas em tempo próprio. Universos paralelos cujos tempos não conseguem encontrar-se porque são trabalhados em diferentes dimensões de um hiperespaço social. Um tempo global e comprimido ao limite atemporal, a par do tempo sequenciado e vivido dos lugares concretos, cuja história se conta por significados pessoais e locais.


P.A.