sábado, 23 de junho de 2012

Ponto de encontro




Os pássaros soprados pelo vento esquivam-se repentinamente como pedaços de papel, conhecedores do espaço até à cúpula do céu, onde os vejo desaparecer em pontos trémulos que se apagarão de interesse. O meu pai sentado no terraço de mãos entrelaçadas, lábios serenamente descaídos sem dizerem nada e a conterem tudo o que os olhos já viram. A memória dele é também a minha, até onde me é possível recordá-la. Ele está vivo, poderia estar morto, ausente, hospitalizado. Mas não, está vivo felizmente, sentado, sereno, a recordar com vitalidade tudo o que os olhos já viram e armazenaram em ficheiros prontos a serem activados. Falo dele e falo de mim, há um ponto em que nos encontramos, mais tarde ou mais cedo. Prefiro que esse ponto surja enquanto ele estiver vivo para faze-lo coincidir no concreto dos seus lábios serenamente descaídos e olhar revisto. Não se pode acabar sem o mínimo de consenso. A memória dele é também a minha, ocupei-a sem limites nos intervalos do escritório, da máquina de escrever, das noites fora de casa, das zangas com a minha mãe, das conversas entre amigos, quase sempre lentas e sem graça. Pai, a evolução das coisas trouxe um ponto de encontro, não por acaso, mas porque a repetição dos dias foi filtrando o essencial da vida, entre pássaros soprados pelo vento sem direcção até à cúpula do céu, de onde ninguém sai sem um ponto de encontro.


P.A.