quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Ponto da situação


Está na altura de fazer o ponto de situação da minha vida, sobretudo quando enfrento diariamente o peso da estrada infundada de alegre novidade, dos lugares erguidos de fachada sobre a consciência aturdida, entre a casa e os serviços, no desconhecimento fingido das coisas implantadas.

Já sei que as histórias dos utentes não me surpreenderão, serão redundantes e incontornáveis por natureza como a vida de cão num beco. Pego no processo e cumprimento-o à entrada do gabinete depois de me ter esperado impaciente e perdido no canto da sala. Algumas palavras no gelo do primeiro contacto até se estabelecer um tipo de relação interpessoal, como nós gostamos de dizer, enquanto a meio da conversa os olhos se levantam e vem o primeiro sorriso que descarna a custo o reverso do ser, como se arredasse-mos ligeiramente a tampa da fossa para uma narrativa que se atropela na lógica de todos nós;

Quando era pequeno o meu pai deixava-me no bidé até ficar roxo, mais tarde fui para casa da minha mãe pensava eu que ia melhorar a vida, oh, levava porrada por tudo e por nada, por comer sem faca, por comer com faca, por me levantar, por me sentar, por deixar um par de calças fora do sítio, quem é que bate num filho até este cair sem se mexer por causa de um par de calças fora do sítio? A minha mãe fartava-se de me bater, possa, até à minha irmã, uma vez pus-me entre ela e a minha irmã, senão matava-a com uma vassoura de bicos, apanhava-a na cabeça e pronto. A minha mãe era assim, batia com tudo, até com o cinto, mas com a parte da fivela, uma vez deu-me com o cinto na cabeça que o bico da fivela ficou espetado, ela não se lembra de nada, se eu lhe disser o que ela me fez diz que não se lembra. Eu não esqueço, não posso esquecer, tenho aqui as marcas na cabeça, quando me olho ao espelho não posso esquecer, são marcas que nunca esquecemos. Agora não, se fosse agora, coitadinha, nunca bati na minha mãe, uma vez mandei-a para o caralho, vai para o caralho (dá erro não sei porquê) e fui-me embora. Agora já não é assim com o meu irmão, também tem lá o pai, é diferente. Gostava era da minha avozinha que nunca me bateu, o meu avô também era lixado, o velho também batia bem, mas eu gostava de ir lá para casa deles na Cruz Quebrada, tipo uma quinta, onde andava a cavar e a tratar dos animais, é por isso que sou assim largo, sempre fui, fartava-me de trabalhar. Mas o velho era lixado, eu também fazia muita merda, matava-lhe as galinhas ao pontapé, sei lá. Na família os homens sempre bateram nas mulheres, nunca bati numa mulher, temos para aí o triplo da força ó caraças, se querem bater que batam em homens. Já o meu tio no outro dia disse-lhe, é pá, se queres bater bate em homens, bate-me a mim, vamos para ali e bates-me a mim, ele não gostou, mas eu sou assim, chego e digo logo o que penso, não estou com rodeios, e depois sou impulsivo, umas vezes estou bem outras vezes enervo-me e têm que levar comigo. Não quero saber deles, o meu pai está para Lisboa, também batia na minha mãe quando bebia, ainda bebe, anda com uma pior que ele. Fui ter com ele no outro dia porque me devia dinheiro. Há muita gente que me deve dinheiro, devia-me uns 500 euros, deu-me 400 e eu, oh pá, deixa lá o resto. Sempre arranjei dinheiro, era puto aparecia em casa com o dinheiro e o meu pai avisava-me que um dia ia ter problemas, a gente pensa que não mas os velhos já sabem mais, ele também se fartou de fazer merda. Deixa-o estar para lá, tenho que pagar tudo o que tenho, nunca ninguém me deu nada é por isso que sempre fui um puto desenrascado, andava sozinho e arranjava dinheiro, nunca fiz mal a ninguém, era fácil para mim arranjar dinheiro, mesmo com as gajas elas não me davam o que queriam, elas davam-me aquilo que eu queria que elas me dessem, já o meu pai dizia, ladrão que é ladrão anda sozinho. Eu não era como os outros meia dúzia de trocos, eu mamava pensões inteiras. É assim, tenho 24 anos mas já vivi 100 anos, tenho que me afastar desta zona, não posso sair de casa, cruzo-me com este com aquele, não consigo evitar, você não sabe mas nós topamo-nos à distância, não é preciso falarmos. Gosto de droga, no outro fim-de-semana estoirei 200 euros em cocaína, foi até não haver mais, também não me custou a ganhar. Agora quero descansar, ficar no meu canto, tenho aí uma namorada mas nada de confusões, ela no seu canto e eu no meu, quando começa blá, blá, blá, desligo-lhe o telefone. Já vivi com uma namorada, ciumenta, fogo, também, Brasileira o que se estava à espera, eu saia de casa e não lhe dizia nada, voltava de madrugada. O problema é que gosto mesmo de droga, mas nada de ter mau aspecto e andar por ai a esconder-me atrás dos carros, gosto de andar decente. Vou para todo o lado, Cacém, Odivelas, Lisboa, trabalho em ar condicionado com um amigo, sempre acelerado, pego num mapa e sei logo onde estão os canos, as entradas e saídas, e nunca fiz nenhum curso, não sou parvo, até era bom aluno mas queria era passear e ir para a praia. Agora não tenho ido trabalhar, sinto uma dor no peito por aqui acima, não me apetece fazer nada, o patrão até é um gajo porreiro, se fosse outro bem podia fazer-se de cabra e mandar-me embora…

P.A.