quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Escrevo o tempo




Escrevo para ti, 
despendo todo o tempo a escrever palavras 
e sentimentos infindáveis 
numa floresta distante 
a anunciar uma presença 
colhida de parecenças 
e sabor tépido 
Inebriante 

Escrevo para ti, 
Escrevo sobre o tempo dos que ficam, dos que partem, 
dos que adoecem, dos que morrem, 
Tudo num só tempo que ascende 
no teu corpo indefeso constante 
e aroma ileso 
dilacerante 

Escrevo para ti 
Sobre o tempo suspenso do invisível evidente, 
O fio que encarna o riso do apelo impreciso 
E pequeno choro aleatório, 
Escrevo como um estranho 
Sobre o batimento obrigatório 
Que para ti me desloca sem fim 

Escrevo de ti 
o tempo entre dois rostos que partilham a certeza 
de se conhecerem no silêncio, 
a beleza da alma reservada, 
a verdade inacabada
quando de ti unicamente 
consigo escrever 
a admiração de não dizer. 


P.A.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Sonho







A sombra cega-me teu olhar
Nela contido,
Contigo a noite guarda segredos
Do corpo despido.
O teu corpo é alma cega
De um sonho quente,
Entre fumos e noite calma.
Fecho-me no túmulo de fogo oculto,
E a lua de amor velado
É a noite do grande vulto
Que se perde no teu sonho libertado.


P.A.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Sem nome




Quero dizer-te o avesso das palavras
porque assim coincide o mundo
nas ilações nocturnas.

O que me alegra e entristece,
exaspera ou consola, 
é a linguagem do corpo
que se move com excepção,
a estranha comunicação
que se distancia do discurso
para se infiltrar na alma
que não se encontra. 

Não posso escapar-lhes é certo,
mas certo é que elas, as palavras,
escapam ao mais ínfimo filamento carnal 
para acabar em silêncio. 

O que quero dizer-te são coisas sem nome,
puras nas palavras que não escutei.
Hoje uma árvore que assim não se chama,
amanhã um beijo inocente e insignificante,
sem o invólucro do intelecto, porque não leio em ti
senão a bravura e consagração
da presença captada no começo
dos nomes que não demos. 

Quero dizer-te o que existe
sem palavras certas,
a liberdade desacertada do espírito 
num corpo vendado à dependência dos nomes,
o que se toca e chama no clamor
permanente das formas.

Não posso escapar-lhes é certo,
mas certo é que elas, as palavras,
me negam para sempre
a plenitude das causas.


P.A.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Regresso






Regresso a um tempo cessante
que se colhe de parecenças, 
um sabor tépido inebriante
move-se pelas coisas extensas
que se anunciam a par de viver
a verdade de estar admirado 
quando admirar é não dizer.

Regresso a um espaço ileso
que ascende ao momento constante,
aroma incidente e indefeso
que arde no presente dilacerante
em que se solta o eixo consciente
e uma vontade suspensa
do invisível tão evidente
Quando admirar é a verdade imensa

Regresso no fio que encarna
o riso de um apelo impreciso
e pequeno choro aleatório,
sinto o momento obrigatório
como um estranho caminhando 
em outro lugar, procurando
o batimento que em mim
se desloca por fim
a mitigar o presente
quando a admiração não mente. 


P.A.


sábado, 29 de outubro de 2016

"A mística do instante"




Depois de ler as primeiras páginas do livro "A mística do instante", de José Tolentino Mendonça, vi-me obrigado, desde logo, a celebrar a lucidez e profundidade da sua escrita, emanada de uma experiência humana integral de corpo e espírito, unidos numa presença permanente e fecunda com todos os momentos que nos são dados a viver, e dos quais não existe escapatória se quisermos caminhar com significado ao longo das etapas concretas e autênticas que nos ensinam "...em cada fragmento o infinito, a ouvir o marulhar da eternidade em cada som, a tocar o impalpável com os gestos mais simples, a saborear o esplêndido banquete daquilo que é frugal e escasso, inebriar-nos com o odor da flor sempre nova do instante".


Celebremos o momento em que os sentidos de amortizam numa síntese aberta e relaxante, quase anestesiante, deixando de filtrar os fenómenos como rotinas dadas e necessárias, para quebrarem a película real e participarem na essência particular das coisas. E a essência deverá ser algo que nos abraça e acolhe num estado corporal vibrante e enternecedor da vida. É o que sinto, e o que sinto encarna a minha história e o pulsar espontâneo de mim com o outro, que se afigura compensador, fascinante e até impossível. A "Mística do instante" retoma a simplicidade que rege o nosso caminho originário, a sua subsistência, aproveitamento e entrega perante a energia que nos circunda. Será sempre uma contemplação inconformista que se processa em pequenas esperanças de efeito imediato e renovado. Implica o desejo de aventura do inexplicável, do indizível, tal como a experiência do amor que coexiste num espaço e tempo fora do ritmo comum. É o caminho interior percorrido pela união entre céu e terra, sinalizado intensamente pelos sentidos, enriquecido pela vontade de segregar novos ciclos vitais, a cada dia, todos os dias que a eternidade se cumpre a cada instante, em que nos consumimos com prazer e dor como um puro charuto. 


A presença é o concreto da existência e o instante a janela de oportunidade de que dispomos para viver, sentir, reflectir e amar. E é por esta flutuação existencial que se dá o encontro com o divino como experiência de fundo que toca o interior vazio de nós, na relação com o finito e seu significado único e efectivo. O instante não é um tempo neutro e rotineiro, mas um sabor prolongado pela respiração inefável que incorpora a fusão plena dos sentidos com a consciência de se estar a viver aquele momento na impossibilidade de outro. É na síntese momentânea de todos os elementos combinados por colisões atómicas intervalares, na mistura de acaso e necessidade, liberdade e determinação, que nos tornamos aprendizes de uma ordem transcendente. É pelo instante vivido na sua plenitude que nos apercebemos que somos nós próprios uma espécie de polegar de Deus, que um dia nos embutirá na pele do universo.    


P.A.



terça-feira, 18 de outubro de 2016

Vermelho





És semente vermelha no amor
e não paras perante a cor,
avanças no rubor do desejo
incandescente de um só beijo
até ao romper do sonho
ofegante e medonho
que estremece delirante
no teu corpo inconstante,
depois gigante vermelha
fruto de uma centelha
que volta à raiz da cor,
essência do teu amor...


P.A.

sábado, 8 de outubro de 2016

Já fui no futuro






O que farei talvez amanhã

toma forma no presente,
Será uma antiga construção vã
erguida em lugar diferente
que o tempo me fará
parecer igual.

O futuro provável
Já o conheço de páginas
escritas em linhas
circunscritas a um pedaço
de pão duro como
a lembrança de tudo
o que faço.

Certo tenho somente passado 
e fome de encontrar um sentido,
nada serei por isso além do nome
gravado no tempo concedido.


P.A. 















segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Por vezes...



                                                       Foto de: Alexandra Amaral




Por vezes estás só numa floresta
intangível de tons e discórdias,
E é preciso resgatar-te no crepúsculo
Desleal de todas as ameaças,
Por meio do labirinto medonho
De incertezas e contradições,
Cobrir-te de insondáveis carícias
E vivificar o teu sonho
Que ainda vibra nos lábios
Desmaiados, perfeitamente
Delineados no sabor febril
De tantas Histórias.
É preciso trazer-te para este lado
E reduzirmos o infinito
Desconcerto a um abraço inteiro,
Sem receio das palavras
Que foram caindo outrora
Como folhas inesperadas
Entre ramos de insónias 
E agonias roucas.
Por vezes estás só
Entre muitas ideias
Que te aclaram a timidez
E inocência do corpo,
E é preciso descobrir-te
Todos os tesouros recriados
Numa senda de luz constante,
Até encontrar o elmo solitário
Dos afectos em fios púrpura.
Por vezes tornas-te num desejo
Impossível de alcançar
No fim de tantas erupções
De prazer premiado
No anjo do teu recato,
És tudo em concreto
Quando estás só
Em abstracto.


P.A.


domingo, 11 de setembro de 2016

O que sou





Quem quiser saber onde estou
não procure no meio da sala,
sou uma breve lembrança que recuou
perante a inevitabilidade da vida,
deverá por isso procurar noutra ala
um corpo dividido na porta de saída.

Quem quiser saber o que penso
não espere outras explicações
para além do espanto imenso
no silêncio de meras recordações
sobre um tempo raro e desfeito,
desde que a vida começou a contar
e passou a arder-me no peito,
sentindo o que penso sem falar.

Quem quiser saber para onde vou
não me siga por qualquer razão,
toda a minha existência se atrasou
perante a incompreensão do mundo,
será sempre acompanhar-me em vão
e não regressar desse estado profundo. 


P.A.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Metro









Consta que os Moscovitas desde o início se mostraram resistentes à ideia de viajarem debaixo do chão. Talvez por isso, para minimizar essa estranheza, tenham adornado os túneis subterrâneos como os espaços à superfície.


P.A.


quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Contramarcha





Todos, todos sempre a crescer,
Uns mais que outros certamente,
Acumular infinitamente até morrer,
Esquecendo o que é ser e viver.
Economia do dinheiro,
Percentagens, competição,
Dominar o mundo inteiro
Até rebentar o coração…
Torres vertiginosos de poder
E especulação, a vida em contramarcha
Sem recordação, numa corrida de ratos
De Vestidos e fatos,
Sempre rentável
Deveras alienável,
Sempre em frente, em vão,
Coração indiferente a crescer
Infinitamente até deixar
De bater…


P.A.

"A ponte é uma passagem para..."



P.A.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Onde estás ?






Ainda me lembro de todas as pontes
Que me ensinaste a construir,
Peça a peça, sobre água, entre montes,
Até o encanto deixar de fluir.

Ainda me lembro, mãe, do teu grito
A perfurar a raiz do coração,
A romper um corpo interdito,
A manter-me quieto, a dizer não.

Ainda me lembro, mãe, de alguém
A afastar-se numa névoa indolente,
E eu estancado sem saber, de repente,
A ficar sem esperança de ninguém.

Ainda me lembro, pai, da tua visão
Sobrevivente no silêncio da casa,
Da ausência de uma explicação
Para o impiedoso corte de uma asa

Ainda me lembro, pai, de alguém
Que deveria segurar-me a mão,
Não sendo já o grito da minha mãe,
Mas a partida do meu irmão.


P.A.



quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Kremlin II

Kremlin




Toda a cidade de Moscovo converge para o Kremlin onde nasceu o sacrifício de um povo fortificado pelo poder tenaz dos seus chefes, onde se acaba sempre por desembocar numa vontade férrea e superior de completar a vida.




P.A.


quinta-feira, 30 de junho de 2016

Todos os poemas





Todos os poemas são uma fabricação
Lenta de sentimentos que escorre
Por uma folha de papel enrolada,
Uma clareira de sons e palavras
Resgatada numa mescla de corpo
Pausada.
Todos os poemas são uma transgressão
Imprecisa de ideias que resvala
Por sulcos de sangue ao longo da matéria,
Um desequilíbrio de ausência, uma
Necessidade de presença que convergem
Para a morte concisa.
Todos os poemas são a malha invisível
Do tempo, cinzas de luz que se acendem
No momento infinito sem palavras,
Vozes de ninguém que a angústia lavra
Ciente e meticulosa, curvada no silêncio
Da terra e do infinito presente.
Todos os poetas nascem pela impossibilidade
De viver, numa encenação muda de contrários
Como a morte de um tempo intervalar,
Brotam como malabaristas no declive do espaço,
Circulam perdidos num saber rotundo e cada um
Contém na pele um mapa do mundo.
Todos os poetas têm a lucidez de um grito,
Uma raiz profunda, um eterno conflito,
São pedaços de magma original que rasgam
O solo em silêncio na direcção do fim
De um ponto inicial.


P.A.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Sombras e segredos





A avenida sustém uma presença ausente,
Espólio de sombras e segredos frágeis,
Resíduos depositados em patamares de luz
Deixados vazios pela noite que dormirá,
Sendo que a noite não dorme mas consente,
Não é vista mas é viva de estar e sentir,
Sem morada, no minuto exacto e consciente,
Para além de tudo aquilo para que se nasce,
No declive acidental esvaído lentamente.
Sou sempre eu neste espaço e uma cama ao alto,
Olhos pousados numa folha e um corpo sem saída
Senão a de cumprir uma essência irreversível
Pelo caminho do acaso e imponderável do sujeito.
A mesa junto à janela no outro canto da sala
Marca o momento livre e inalienável do tempo,
Que me acolhe demoradamente na síntese consumada
Desta presença e me deixa sem vontade de escrever.
Faltam-me razões de ser mais para além do aqui e agora
Pregado no corpo actual que arde interiormente
Ao longo das coisas que me rodeiam pacientemente.
Faltam-me motivos para escrever para além da noção
De ser eu uma carga material num instante particular,
Intervindo livremente por dentro do tempo indefinido.
O presente dilata-se em recordações e intenções vãs,
Arrasta-se num fantasma que aguarda enquanto caminha,
Toca todos os instantes com e sem propósito,
Numa interpelação leve da consciência sumária.
Faltam-me desejos de viver para além de sombras e segredos ,
De tudo o que sobeja dos dias e noites inúteis,
Por isso não quero ser nem escrever mais,
Quero repousar na sombra desinteressada
E viver uma vida indesejada…



P.A.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Singularidade Absoluta




Fotografia de:  Rute Talefe


Não imaginava a morte na sua encenação
Muda e sombria,
Com leves murmúrios pela noite intermitente
E silenciosa.
Não vivia cada instante como uma perspectiva
Que se antevia,
Um conforto distante, uma pequena acção engenhosa.


Não conhecia o corpo inteiro na singularidade
Absoluta,
Intimamente imerso na tarefa oculta
E vital,
Preso apenas a uma causa ínfima
E involuta,
Distinta carcaça simplesmente esfumada e frugal.


Não ouvia o silêncio por dentro da porta
Sem motivo aparente,
O voo rasante da alma como o som do violoncelo
Pela tarde morta,
O fim sereno estendido a um desejo insolvente,
Numa quietude expectante,
Perfeito paciente do tempo constante.


Sinto só este composto único de direcções
No grande universo de relações.
Um dever maior, um aproveitamento eficaz
Da missão de paz
Tão clara e suficiente que me é pessoalmente conferida,
A necessidade de estar e uma confrontação
Definida.

Tenho a certeza que o tempo é assim um traço fundo
Pela interioridade,
Uma estrada sem princípio nem fim, uma vida a correr parada
Pela eternidade.



P.A.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Luas






O que se pode perguntar a todas as luas?
Nada porque elas são tudo o que são,
Existências simples e paixões nuas,
E nada se pergunta nesta condição
De ser ao luar, entre janelas e ruas,
Para não desviar a natural intenção.

Como se podem capturar as luas
E a suas paixões? e com elas cada pedra
E cada árvore que assim permanece?
Não sei porque elas são a solidão
De um pequeno pedaço que padece
Entre o céu e o parapeito da ilusão.

Como se pode ser em vez de ir sendo,
Aquecer o rosto contra a noite solene,
Abraçar a fantasia para além da realidade?
Só sei que vou viver esta questão perene
E debruçar-me sobre uma simples vontade
De sonhar em sair à rua onde ainda há luar.



P.A.