quinta-feira, 5 de junho de 2008

Questão do sentido (Parte II)


“A pergunta permanece; e qualquer resposta que converta o indivíduo numa função do processo histórico-sociológico, assinalando-lhe só uma tarefa de serviço no progresso da humanidade, levanta-se no fundo (tendo origem na essência humana) uma rebelião da existência individual pessoal”

Emerich Coreth “O que é o Homem?”


O entardecer um dia sepulta-nos numa disputa de contracções contempladas na vertigem da morte. Repente que subleva o sentido das palavras numa imagem estropiada de todos os rumos imperfeitos. Somos chamados pelo fim dos outros a aprofundar o lugar da nossa existência, paradigma de uma presença interrogada, intuição sobre os fundamentos do ser para além da história dos homens, a morte como construção interior dum sentido sempre começado. Vivemos esquecidos num tempo eterno até sentirmos por momentos a ordem das coisas ser ultrapassada na consciência, que nos suspende numa agonia irrefutável, num apelo interdito entre a presença e a não presença, entre o ser e o não ser, fronteira que abandonamos pelo esquecimento conveniente, reconfigurado na ilusão dos dias e necessidade de continuarmos a ventilar o ar pesado que se abate pela espera incontornável do fim, para prosseguirmos no paradoxo entre a presença e a sua impossibilidade no tempo. A morte é uma ultrapassagem, antevisão fundamental que se retrai pela explosão do tempo consciente. Se por um lado todos os caminhos estão iluminados na sua validade e valoração perante o fim, são eles inconciliáveis com a sua interrupção eterna, que se abate pelo desfasamento da medida contínua das acções quotidianas, numa ameaçada racional e intrusa no curso individual e intransmissível. A morte é o destino de todos os homens, mas o destino dos homens não se reduz ao seu processo histórico e social, à sua função útil e finalidade colectiva, à maquinação dos desejos e quantificação dos gestos. Homem social e homem individual confrontam-se no avanço quotidiano repercutido no empenho e abandono vividos num processo de descontinuidade sentimental. Empenho e abandono são a síntese do processo existencial no tempo formador que impõe a realização alternada do “ser para morte”. Morrer no curso da existência é a garantia da finalidade humana, cumprida pelo aprofundamento da essência particular. Não é uma função biológica ou social, é uma pausa reflexiva que revela a unicidade individual e incomunicável, é uma morte relativa e provisória perante o final de uma etapa que sabemos acontecer um dia, e diante o qual resistimos intermitentes, dando conta do absurdo confronto entre a historicidade do ser e a sua superação pelo fim. Sem a morte as vivências percorreriam provavelmente um espaço vazio e infinito na falta de atrito temporal imposto por esse mesmo fim formador. Morremos essencialmente para continuarmos a pertencer às coisas na sua novidade. Morremos temporariamente no curso da existência como condição de revelação da essência impressa num código para além da história factual. É um lugar inefável onde se alcança a realidade inominada em sentido regressivo, que apaga os vícios da espécie e reinicia o fecundo e ingénuo desconhecimento.

P.A.