quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Aquando das doze badaladas


O próprio facto de sermos prova tudo” – Fernando Pessoa

Aquando da euforia nostálgica das doze badaladas, dos apertos e abraços produzidos no momento e mais palavras turvas de engano e esquecimento, retenham esta frase, comam-na nos desejos das passas, enrolem-na à cabeça e morram por ela se for preciso. Parece ser o único facto que nos resta, uma determinação irredutível sobre os fundamentos da existência que atesta a nossa condição em qualquer parte do mundo, perante qualquer juiz de ocasião. Quero dizer que li Fernando Pessoa quando tinha 19 anos, sem nada perceber de Fernando Pessoa, sem nada perceber de literatura ou mesmo de finanças e com uma biblioteca pessoal quase reduzida exclusivamente aos seus livros. Li Fernando Pessoa num tempo único, de uma só vez, sem pausas, por vezes à pressa, nos autocarros, nos comboios, esquecido dentro do próprio carro abafado por sentimentos que se consumiam em catadupa como chamas de fósforos. Li-o obsessivamente enquanto me descobria aos tropeções por versos e prosas flamejantes que me trespassavam sem aviso, arrastando-me depois para um território usurpado no hábito de ser, antecipando uma razão maior que iria inquietar-me para sempre com a essência das coisas. Não, não sou crítico de Fernando Pessoa, talvez queira continuar a perceber coisa nenhuma sobre Fernando Pessoa, como disse, li todos os seus livros quanto tinha 19 anos, à mesa, pelos cantos, ora como um adolescente irrequieto no seu próprio corpo, ora prostrado no silêncio antigo e pesado da noite, em que os olhos vermelhos ardentes chegaram a encovar-se de lágrimas como um velho ancorado no seu passado. Não, não sou especialista em Fernando Pessoa, se querem saber, nunca mais regressei à sua obra, ali ficou alinhada numa prateleira da memória a que ainda não consegui aceder com receio de estragar a inquietação dos 19 anos de idade, de não resistir à tentação de a julgar no presente, armado em leitor experiente, já sem aquelas ferramentas indispensáveis à compreensão do mundo, como a ingenuidade, a inocência, a destreza mental e capacidade de espanto para entrar no reino das crianças, a fluidez patética do espírito imberbe, ou a noção clara de que “O próprio facto de sermos prova tudo” Ali ficou, intacta, para brincar mais tarde quando tiver outro tino. Por agora chega, páginas e páginas desmontadas a custo, com violência, palavras espalhadas pelo chão, frases inteiras transportadas à socapa para a rua, para casa dos amigos, sentimentos esquecidos no tampo da cadeira para recuperar depois já em desespero quando queria mostrar a razão de ser. Por agora chega, fica para mais tarde quando souber o que custa a vida, quando der valor às coisas. Talvez seja por isso que nunca regressei à sua obra, não sei o que custa a vida e o valor das coisas é relativo, continuo a ser uma criança inquieta com medo de estragar o brinquedo que os pais me deram, neste caso, que o poeta me deu.

P.A.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Fim do ano


Há muito que não escrevo, a vontade atrasa-se por entre contemplações inúteis, suspende-se internamente a marcar o tempo sem pressas, serena, por vezes imperturbável, sem palavras, acomodada na razão que exige a espera antes de actuar. A vontade também pode ser ilimitada na espera, deambular pela calma do corpo até ao fim do pontão, despejada de sentido, a passar em revista a parada de acontecimentos consumados, sem pedir justificação ou prestar contas a quem quer que seja, amorfa, de sobrolho descaído, trilhando os mesmos caminhos sem graça, a cumprir para sempre as marcas do destino. Não é um fim de ano sem vontade, é antes a vontade que o fim de ano assim seja, na preferência da compreensão das coisas que se sustentam a si próprias, dos outros que morrem pela distância do sentir, sem dor, sem pesar, pregados num céu caduco e vedado ao sentimento. É um ano que finda pela elipse de todas as coisas, supostas num rumo inquestionável, há muito pensado e planeado, para cumprir um fim necessário e adequado à nossa estada. Não escrevo, a vontade arrefece no conhecimento do mundo, dá voltas ao adro da igreja e recorda a existência tardia contra a pedra fria, calcada no tempo acertado do espírito, definida como o sentinela recortado e enviesado no muro conhecido. É uma vontade residual, suficiente apenas para acabar o ano e seguir as determinações de um grande plano autoritário, parando aqui e acolá para restabelecer o corpo disciplinado, verificar a distância percorrida e esperar por novas ordens que preencham as cavidades do entendimento. Não escrevo e, por largas horas, deixo de falar, reservo-me num silêncio obediente e atento perante a maquinação do mundo, engrenado no desfile escravizado de rostos uniformes e pálidos do dever. Por vezes encosto-me à ombreira da porta como um chinês condenado à entrada da loja, rodeado de plásticos e arames, de rosto programado e mãos esticadas de pato lacado, sem recurso a outra decisão. Acho mesmo que acabaremos este ano todos como chineses condenados em lojas de plásticos e arames, rodeados de brinquedos gastos e amontoados em prateleiras, à espera de pilhas para recomeçarmos a zumbir em círculos.

P.A.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Presença (Parte II)


A presença é o concreto da existência, acolhimento das impressões gerais pela síntese vivida no corpo. Nada se pode dizer da existência sem uma presença corporizada e consciente, impulsionada por fluxos eléctricos segundo uma disponibilidade voluntária, actuando na razão directa entre o aqui e agora e a carga de possibilidades abrangentes. Estar presente é uma condição dada pela consciência, sendo esta o esforço de actualização e adequação do mundo pelas repartições da memória, que se requer incessante entre os picos de corrente, intencional ou não, sujeita a leis opacas e reservada à sua própria dinâmica necessária. A presença deduz-se pelo exercício consciente, capaz de se acercar do corpo por uma fissura iluminada da matéria, criando uma noção nuclear intransmissível, radicada na liberdade das suas próprias leis. É uma dependência da nossa liberdade, para onde convergem determinações possíveis, uma angústia da nossa posição intervalar entre o possível da existência e a cena verdadeira a que assistimos. A presença é o mais puro nível da existência, é quando dela damos conta por oposição ao outro, ao exterior, que percebemos a nossa condição única e livre, como um ponto vital no enredo universal, que embora por este determinada, assegura-nos o cumprimento da existência própria. É uma disponibilidade que paira pela evidência calma do ensejo, um regresso primário aos escombros do corpo esfriado e distendido na própria razão. Não se trata de qualquer noção egocêntrica reproduzida por sentimentos de exclusividade. Trata-se de beliscar a própria pele, tocar os músculos, ou acompanhar a acção ventiladora que mantém o corpo alinhado com a desordem infinita, entregue ao momento por um estilhaço consciente. Trata-se de um silêncio afeiçoado que sopra por um tempo único e pessoal que, pelo fuso consciente, começa e encerra a versão autêntica do corpo presente. Não se trata de um pensamento mas, como diria António Damásio, de um marcador somático, pelo qual, conscientemente, sentimos a sucessão de experiências que orientarão o processo de decisão. Acompanha-nos naturalmente em todas as vivências por um sentimento de fundo avaliador que, quando elevado à máxima finura, converge para o pulsar derradeiro da presença, pregada no caudal de acontecimentos, sempre a lembrar algo que insiste na sua existência singular e propositada, destacando a intimidade incomunicável da sua essência que se cumpre por uma origem quase inocente. E se esta noção radicar na condição de existirmos, então poderemos valorar o outro com maior respeito pela diferença, restaurando a confiança na capacidade de amar, tantas vezes remetida para atributos divinos, mas que, embora encerrada na limitação humana, ajudar-nos-á no cumprimento da obscura missão do ser.
P.A.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Ponto da situação


Está na altura de fazer o ponto de situação da minha vida, sobretudo quando enfrento diariamente o peso da estrada infundada de alegre novidade, dos lugares erguidos de fachada sobre a consciência aturdida, entre a casa e os serviços, no desconhecimento fingido das coisas implantadas.

Já sei que as histórias dos utentes não me surpreenderão, serão redundantes e incontornáveis por natureza como a vida de cão num beco. Pego no processo e cumprimento-o à entrada do gabinete depois de me ter esperado impaciente e perdido no canto da sala. Algumas palavras no gelo do primeiro contacto até se estabelecer um tipo de relação interpessoal, como nós gostamos de dizer, enquanto a meio da conversa os olhos se levantam e vem o primeiro sorriso que descarna a custo o reverso do ser, como se arredasse-mos ligeiramente a tampa da fossa para uma narrativa que se atropela na lógica de todos nós;

Quando era pequeno o meu pai deixava-me no bidé até ficar roxo, mais tarde fui para casa da minha mãe pensava eu que ia melhorar a vida, oh, levava porrada por tudo e por nada, por comer sem faca, por comer com faca, por me levantar, por me sentar, por deixar um par de calças fora do sítio, quem é que bate num filho até este cair sem se mexer por causa de um par de calças fora do sítio? A minha mãe fartava-se de me bater, possa, até à minha irmã, uma vez pus-me entre ela e a minha irmã, senão matava-a com uma vassoura de bicos, apanhava-a na cabeça e pronto. A minha mãe era assim, batia com tudo, até com o cinto, mas com a parte da fivela, uma vez deu-me com o cinto na cabeça que o bico da fivela ficou espetado, ela não se lembra de nada, se eu lhe disser o que ela me fez diz que não se lembra. Eu não esqueço, não posso esquecer, tenho aqui as marcas na cabeça, quando me olho ao espelho não posso esquecer, são marcas que nunca esquecemos. Agora não, se fosse agora, coitadinha, nunca bati na minha mãe, uma vez mandei-a para o caralho, vai para o caralho (dá erro não sei porquê) e fui-me embora. Agora já não é assim com o meu irmão, também tem lá o pai, é diferente. Gostava era da minha avozinha que nunca me bateu, o meu avô também era lixado, o velho também batia bem, mas eu gostava de ir lá para casa deles na Cruz Quebrada, tipo uma quinta, onde andava a cavar e a tratar dos animais, é por isso que sou assim largo, sempre fui, fartava-me de trabalhar. Mas o velho era lixado, eu também fazia muita merda, matava-lhe as galinhas ao pontapé, sei lá. Na família os homens sempre bateram nas mulheres, nunca bati numa mulher, temos para aí o triplo da força ó caraças, se querem bater que batam em homens. Já o meu tio no outro dia disse-lhe, é pá, se queres bater bate em homens, bate-me a mim, vamos para ali e bates-me a mim, ele não gostou, mas eu sou assim, chego e digo logo o que penso, não estou com rodeios, e depois sou impulsivo, umas vezes estou bem outras vezes enervo-me e têm que levar comigo. Não quero saber deles, o meu pai está para Lisboa, também batia na minha mãe quando bebia, ainda bebe, anda com uma pior que ele. Fui ter com ele no outro dia porque me devia dinheiro. Há muita gente que me deve dinheiro, devia-me uns 500 euros, deu-me 400 e eu, oh pá, deixa lá o resto. Sempre arranjei dinheiro, era puto aparecia em casa com o dinheiro e o meu pai avisava-me que um dia ia ter problemas, a gente pensa que não mas os velhos já sabem mais, ele também se fartou de fazer merda. Deixa-o estar para lá, tenho que pagar tudo o que tenho, nunca ninguém me deu nada é por isso que sempre fui um puto desenrascado, andava sozinho e arranjava dinheiro, nunca fiz mal a ninguém, era fácil para mim arranjar dinheiro, mesmo com as gajas elas não me davam o que queriam, elas davam-me aquilo que eu queria que elas me dessem, já o meu pai dizia, ladrão que é ladrão anda sozinho. Eu não era como os outros meia dúzia de trocos, eu mamava pensões inteiras. É assim, tenho 24 anos mas já vivi 100 anos, tenho que me afastar desta zona, não posso sair de casa, cruzo-me com este com aquele, não consigo evitar, você não sabe mas nós topamo-nos à distância, não é preciso falarmos. Gosto de droga, no outro fim-de-semana estoirei 200 euros em cocaína, foi até não haver mais, também não me custou a ganhar. Agora quero descansar, ficar no meu canto, tenho aí uma namorada mas nada de confusões, ela no seu canto e eu no meu, quando começa blá, blá, blá, desligo-lhe o telefone. Já vivi com uma namorada, ciumenta, fogo, também, Brasileira o que se estava à espera, eu saia de casa e não lhe dizia nada, voltava de madrugada. O problema é que gosto mesmo de droga, mas nada de ter mau aspecto e andar por ai a esconder-me atrás dos carros, gosto de andar decente. Vou para todo o lado, Cacém, Odivelas, Lisboa, trabalho em ar condicionado com um amigo, sempre acelerado, pego num mapa e sei logo onde estão os canos, as entradas e saídas, e nunca fiz nenhum curso, não sou parvo, até era bom aluno mas queria era passear e ir para a praia. Agora não tenho ido trabalhar, sinto uma dor no peito por aqui acima, não me apetece fazer nada, o patrão até é um gajo porreiro, se fosse outro bem podia fazer-se de cabra e mandar-me embora…

P.A.

domingo, 28 de setembro de 2008

A inércia


Andam devorados pelo desterro,
Cada pessoa um ermo, um segredo.
Nas enchentes cada um vai mouco,
Igual, erguido como um toco.

Guerreiros saturados de não haver batalhas,
Não há espada que atravesse suas malhas,
Nem ao menos um ataque fingido
Por um só mouro destemido.

Os mesmos guerreiros do passado
Vieram mansos num barco errado,
Suas lanças se quebraram no tempo,
E a glória é agora fingimento.

Comem a erva do fim das vertentes
Ao entardecer sós e indiferentes,
Porque a vida é um espaço convexo
Por onde tristes circulam sem nexo.

Ovelhas de inúmeros pastores,
Débeis caminhadas sem furores,
Do monte sem esperança regressam
Até ao degredo onde a vida cessam.

Venha o confronto com lugares estranhos
E disperse os olhares dos rebanhos,
Que ao longe o olhar cansado purifiquem
E no ermo seus desejos não fiquem.

Venha efémera tempestade sem causas
Que alivie a existência das eternas pausas,
Que alivie a alma da inércia dos corpos
E os embarque em outros portos.

P.A.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Prevenção criminal. Oposição a repressão?



A prevenção criminal pode definir-se como o conjunto de actividades e medidas adoptadas pelas forças e serviços de segurança, assim como por parte da sociedade em geral, com o objectivo de evitar a ocorrência de factos criminosos. As actividades das forças e serviços de segurança são desenvolvidas com recurso a medidas de polícia de natureza preventiva, como a vigilância e fiscalização de actividades, lugares e estabelecimentos que possam favorecer a prática de crimes, para além da vigilância policial de pessoas por período determinado de tempo. As actividades e medidas desenvolvidas por parte da sociedade em geral, implicam a actuação de determinados poderes públicos, com eventual recurso a entidades privadas, assim como todo o controlo informal actuante por parte dos cidadãos no decurso da vida em sociedade.

O poder policial, materializado nas diversas actividades administrativas com a finalidade de garantir a ordem e segurança públicas, diferencia-se dos restantes poderes ou serviços da Administração Pública, considerando que o seu objecto de intervenção é garantir a segurança interna dos estados, ao invés, por exemplo, das forças armadas, constituídas por militares que têm por missão assegurar a defesa nacional contra a agressão ou ameaça externas ( cfr. Artigos 272º e 273º da Constituição ).
As empresas e os trabalhadores de segurança privada diferenciam-se naturalmente dos corpos de polícia e dos agentes de autoridade, tratando-se de entidades privadas que empregam trabalhadores que, como quaisquer outros particulares, não dispõem de poderes de autoridade, embora desenvolvam uma actividade que visa defender pessoas e bens determinados, mediante um preço.
Polícia aparece também ligada a um tipo de poder específico, com vista a assegurar a ordem e tranquilidade públicas, assim como o normal exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos, poder esse, que em determinadas circunstâncias, compreende a coação directa, como o emprego da força física sobre os prevaricadores. Numa primeira abordagem, podemos referir-nos à prevenção criminal como o conjunto de medidas para evitar o crime. Quanto à repressão, se atendermos ao seu significado, o mesmo diz-nos o seguinte; acto ou efeito de reprimir; coibição; proibição; ou em termos psicanalíticos, rejeição consciente de uma solicitação psíquica, recalcamento (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora). O acto de reprimir, e utilizando a mesma fonte de significado, para além de suster a acção, coibir, conter, proibir, ocultar, contempla também o acto de violentar e castigar, pressupondo assim uma reacção efectiva que vai para além da simples proibição. Esta distinção permite-nos enquadrar a repressão, como acto de reprimir, numa acção preventiva mas também reactiva. Uma acção reactiva, como o emprego da força, implica uma actuação que surge já após a consumação de determinado crime, ao invés de, e numa fase anterior, conter os agentes criminosos da pratica do mesmo, isto é, uma atitude preventiva. Repressão criminal será então uma medida preventiva que visa conter ou proibir determinado comportamento criminoso. No entanto, o acto de reprimir parece pressupor uma reacção que advém directamente da prática do crime, que posteriormente deverá ser sancionado de acordo com a lei penal vigente. A polícia, é, por excelência, a entidade competente para prevenir a criminalidade e assegurar a ordem e tranquilidade públicas, sendo que, em determinadas circunstâncias, compreende o emprego da força, neste caso da repressão, entendida como reacção criminal, como garante último da defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, entre os quais, o direito à segurança. Por aqui podemos também aferir que, prevenção criminal e repressão, constituem-se como modos de actuação com vista a um único objectivo, assegurar o normal exercício dos direitos fundamentais do cidadão, evitando o crime. Por este motivo, prevenção criminal e repressão não são opostas, poderão surgir em fases diferentes da prevenção, ou complementar-se como acções preventivas conjuntas. Resta-nos perguntar de que modo actuam a prevenção e a repressão? É certo que a polícia requerida no mundo actual não será tanto uma polícia de ordem ou uma polícia repressiva, mas uma polícia de segurança. Poder-se-á falar de uma nova configuração da intervenção policial, incidente no concreto das relações do indivíduo em sociedade, compatível com a necessidade de manutenção da ordem pública, cujo objecto, no entanto, remete-nos prioritariamente para a atenção dada à população concreta, constituída por indivíduos que coexistem por laços de união e de conflito. A noção de segurança está subjacente à noção de ordem, contudo, não se trata já de manter a ordem pela ordem como imperativo último, actuando repressivamente sobre os indivíduos, mas, integrá-la como um corpo de indivíduos que se relacionam em tensão num território concreto.

A prevenção criminal destina-se a evitar a ocorrência do crime e instalar um clima de segurança entre as populações. Envolve, para além das actividades desenvolvidas pela polícia, um conjunto de medidas que, mais ou menos articuladas com esta, são preconizadas pela sociedade em geral, desde o exercício dos poderes públicos locais, como Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia, até às medidas de segurança adoptadas pelo cidadão comum para diminuir o risco de ocorrência de crime.
Quando falamos de crime contra a propriedade ou contra as pessoas, tipificados pelo Código penal como por exemplo o crime de furto, roubo, ou dano, temos de ter em conta que, para a sua ocorrência, devem convergir num dado momento e num dado local os seguintes elementos:

Um criminoso motivado, um alvo vulnerável, e a ausência de medidas de segurança. Segundo a teoria das actividades rotineiras ( Felson e Cohen ), as rotinas diárias dos indivíduos afectam a convergência destes três factores. O crime terá uma elevada probabilidade de acontecer se num determinado espaço e tempo se cruzarem um potencial criminoso, com um potencial alvo que está vulnerável, porque o “guardião” ou protecção adequada estão ausentes. A prevenção criminal actua sobretudo nos dois últimos elementos, ou seja, tanto na tentativa de tornar o alvo menos vulnerável, como na de aumentar as medidas de segurança em relação a determinado espaço, objecto ou situação. Estas por sua vez terão necessariamente efeitos na escolha racional que o potencial criminoso fará sobre os benefícios e riscos da prática do crime. Contudo, actuar directamente sobre os potenciais criminosos exigirá uma vigilância permanente, numa atitude preventiva de “tolerância Zero”, a qual pode tender para medidas de carácter repressivo. Aumentar significativamente o número de polícias é uma medida preventiva, eventualmente eficaz, não deixando a mesma de ser uma medida repressiva, coibindo e contendo determinados comportamentos. Algumas das medidas preventivas que têm por objectivo aumentar as condições de segurança em determinado espaço ou situação, reduzindo a oportunidade de crime, podem ser igualmente consideradas medidas repressivas. Quando se restringe o acesso das pessoas a determinado espaço, se obriga as mesmas a circularem em determinado sentido ou separadamente, ou a passarem por vários pontos de revista de sacos e outros objectos, estamos a falar de medidas de prevenção situacional, certamente necessárias e eficazes, mas que restringem obrigatoriamente certos direitos e liberdades dos cidadãos, coibindo e contendo potenciais comportamentos criminosos. A manipulação do alvo, com vista a dissuadir o potencial criminoso de actuar, pode implicar, quando de pessoas se trata, a modificação no “estilo de vida”, por exemplo, alterando o percurso entre casa e trabalho, não exibir determinados objectos, ou evitar determinados comportamentos. Falamos de medidas preventivas úteis e eficazes na prevenção do crime, mas não estaremos também a falar de medidas repressivas, que afectam e restringem direitos fundamentais dos cidadãos? Repressão surge vulgarmente conotada negativamente em termos sociais, muitas vezes associada a uma reacção policial indiscriminada e violenta sobre os indivíduos. Esta repressão também nos remete para a existência de um Estado de polícia, em que tudo e todos se submetem a um controlo opressivo e asfixiante. Esta repressão não deixa de actuar preventivamente, mas também ela não evitará totalmente a criminalidade, sempre reduz a liberdade das pessoas, e raramente as responsabiliza na relação com o outro. A prevenção criminal é multidisciplinar, actua na redução dos riscos e no aumento do esforço dos potenciais criminosos para agirem, e pode ser conjugada e complementada com medidas de carácter repressivo, porventura mais discricionárias, subtis e silenciosas. Neste contexto, considero oportuno mencionar o Prof. Diogo Freitas do Amaral, a propósito do terrorismo internacional, quando refere; “o problema essencial que o terrorismo internacional de grande envergadura põe ao Direito é o de encontrar um novo equilíbrio entre as necessidades da segurança nacional e as do respeito pelos direitos fundamentais” *
Entre a necessidade da prevenção criminal e os efeitos repressivos e consequente restrição de direitos que dela possam advir, será preciso encontrar um equilíbrio para que os cidadãos se sintam seguros, mas não excessivamente sacrificados na sua liberdade.

P.A.
* Diogo Freitas do Amaral “Do 11 de Setembro à crise do Iraque”, 5ª Edição, Bertrand Editora, Lisboa, 2003, p. 53.

Bibliografia
Raposo, João “Direito Policial I”, Almedina, Maio de 2006
L’Heuillet, Hélène”Alta Polícia Baixa Política” ”Uma visão sobre a Polícia e a relação com o Poder”, Notícias editorial, Set. 2004
Fernandes, Luis Fiães”Abordagens à Prevenção”, Pós Graduação - Informações e Segurança, Informações Policiais e Prevenção da Delinquência
Amaral, Diogo Freitas do”Do 11 de Setembro à Crise do Iraque”, 5ª Edição, Bertrand Editora, 2003

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Quando o Sol Não Nasce


Odeio as manhãs

Volto a adormecer

à procura de um sonho

Volto de manhã

à procura de adormecer

odeio o sonho

Volto a sonhar

à procura da manhã

odeio adormecer


P.A.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Regresso


Mais um Domingo, este de regresso de férias, ao entardecer, a consciência ténue no propósito de arrastar percepções sobre um tempo solto no convívio veraneante, entre amigos prolongados numa esplanada ao sabor tépido do ar que se embevece nos corpos tisnados e abertos ao toque irreal de conversas aleatórias. Um regresso que desbota pelo eixo consciente da vida como um facto residual e prepara a sinuosa diversão dos dias seguintes, recupera o enlace finito do tempo passado e projecta-o no desmando futuro, que o vai apropriando no conhecimento devagar da consciência sucessória. Uma pausa que nunca chega a fixar-se a nós, mas que é a transição necessária a interromper o curso da existência, sustendo a avalanche de imperativos pessoais que se formam a favor e contra, longe e perto dos outros, com ou sem sentido. Um regresso que é uma espécie de morte provisória que actua tanto quanto os ciclos da vida retomados, a conter o fluxo incontornável de presenças no espírito, restabelecendo-o na prostração fecunda das ideias. Um regresso necessário para assegurar o fio que encarna o riso, amar o reverso dos seres que irrompe na obrigação autêntica de se mostrarem, esgrimindo o âmago da natureza rude e compulsiva. Um regresso que é o apelo à possibilidade de nós pela impossibilidade de cumprirmos todas as coisas perante um fim, uma experiência deslocada que agora assenta em sentimentos de fundo, vivência informal que se abastece pela viagem compassada de lugares comuns, acerca-se do batimento ecuménico da vida e restabelece o ritmo cardíaco.

P.A.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Férias


Chegaram as férias, e antes que os dias se quebrem interiormente e sustenham a obrigação de responder aos deveres úteis do trabalho, quero agradecer a todos os leitores, curiosos ou viajantes que visitaram este blogue ao longo de um ano de existência, dando sentido e imaginação aos fragmentos do desperdício, cujas palavras e imagens tentam ser a expressão sincera de uma presença partilhada que sobeja da relação com as coisas, como o encargo que desde sempre me faz sentir impossível nesta vida.

Impossível é também este período de suspensão dos encargos do nosso fundamento a que chamamos férias, que desemboca tantas vezes na representação falaciosa do espaço e tempo, sentida como a oportunidade única de inverter a visão repetida a que nos entregamos pela privação dos dias, que insistem em arrastar os desejos pelas paredes do conformismo. A fotografia que ilustra este texto é uma ilusão. É uma imagem fabricada sobre o mar que nunca nos banha, o sol que nunca aquece, as sombras de árvores que nunca arrefecem, bebidas que nunca refrescam, descanso que nunca passa de uma inércia ansiosa, paraíso que se fica pela fotografia gravada na mente sumária, porque as férias são mais uma representação convencional produzida pelo desejo incutido do equilíbrio sem esforço, em que a ideia de suspensão dos dias converge para a fuga do tempo e vazio do espaço. Nada mais ilusório. O estado de equilíbrio sem esforço é subsequente ao trabalho e atingível por este, pela repetição de movimentos, pelo sacrifício, pela necessidade de recriarmos o tempo abstracto opondo o nosso tempo concreto, de reinventarmos a linha do horizonte, de agirmos contra o muro branco. Na verdade, as férias são o período em que a rotina dos dias apenas é substituída por inúmeras actividades que nos conciliam com o ritmo próprio e não com o ritmo fabricado pela ideia de paraíso ou equilíbrio sem esforço, muito menos com o que é imposto pelo relógio laboral. Por isso, é bem provável que a sombra dos coqueiros contra o mar azul encontre cada vez menos correspondência com a vida real, é um entretenimento fugaz que se torna numa espera inquieta até que a mente depressa se encha de intenções sem objecto, abandone o postal ilustrado e percorra novas tarefas que é a melhor forma de se conciliar com a sua Natureza. Boas Férias…

P.A.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Mística dos nossos dias


“Mira Azenha” o café nevoeiro no fecho do dia, espíritos intermitentes comunicam no balastro que cobre a praia no limite do saber. O equívoco da praia que escalda entre os dedos, o cigarro que fumamos à vida numa missão revista. O nevoeiro semeia convicções sobre o fundamento das coisas, convida-nos para o concílio de todos os tempos na alegria de bancos corridos e sorrisos errantes. Tento recuperar o momento como tantos outros momentos que escapam ao real pelo fluxo virtual de acontecimentos, que embora reais, discutem-se na ausência entre distâncias percorridas por impulsos eléctricos, activados por voz e teclados suspensos no emaranhado de cabos sem direcção certa. Tento recuperar o momento no acaso de uma bebida no “Mira Azenha”, um momento que se aproprie do tempo e espaço respectivos, conciliado na sequência de instantes vividos particularmente, materializado num corpo prostrado na cadeira, cotovelos na mesa, olhar desmaiado na certeza das formas desenhadas ao longo da arriba enevoada pela extensa brisa de luz regular. Tempo houve em que a presença no mundo se intuía pela incerteza e desconhecimento dos fenómenos naturais, numa interpretação mágica e mítica, eclodindo numa simbiose total como o olhar infantil. A história terá sido tão só o trabalho de pôr o homem em evidência como um factor capaz de descodificar a natureza, mas também capaz de criar novos códigos para dela se apropriar e depois modificar sem limite. O esforço de descentração isolou-nos do mundo, a consciência de sermos menos que o ser (entendido este como entidade perfeita) e mais do que o nada, pôs-nos a caminho de uma história protagonizada pela aventura do espírito. Chegados ao presente, segundo Fukuyama, ao “Fim da História”, neste caso, ao fim da aventura, perguntamos o que é que se segue?

Quando a história acaba começamos nova história ou vamos embora. Parece-me muito cedo para abandonarmos o barco, mesmo que este esteja à deriva na tempestade de incertezas, que insiste todos os dias em pôr em causa o caminho escolhido. O abandono exigiria o colapso material, extinção pela autodestruição ou por catástrofe natural. Se tal não acontecer, existem muitos assuntos pendentes para resolver e outros que, subsequentemente, sempre alimentarão o espírito insaciável, num processo constante de busca que poderá ser cada vez mais complexo e reflexivo. Complexidade e “reflexividade” prosseguem em paralelo como causa e efeito uma da outra. Entrámos, porventura, no prefácio de uma nova história, onde a intensidade e complexidade crescentes das relações mundiais, a tal globalização, implicam, e por sua vez resultam, segundo Giddens, da “reflexividade” constante, entendida como a reavaliação permanente da realidade social, cujo resultado fluí pela razão desconfortante de nada ser dado como simplesmente adquirido.

Perante tanta incerteza imediata e desconhecimento do futuro, o mais provável é estarmos a regressar à interpretação mágica e mítica da realidade, com efeitos no comportamento ansioso e alienante, de resto, a toma massiva de tranquilizantes é disso um bom indicador. Daí os nossos dias serem abatidos por uma mística decadente que agita as massas em todas as direcções pelo vórtice da incerteza, do desconhecido, do risco, da ameaça. Daí as razões mais desconcertantes de união e separação, expansão e contracção, presença e ausência, organização e caos, movimentos circulares em torno de uma grande raiz oculta. Tento recuperar o momento, justificá-lo no espaço e tempo precisos, radicado no café nevoeiro no fecho do dia, encaixado nesta espera que refaz o olhar sob outro eixo quando o reflexo das mesas e cadeiras adquire outro nexo. Sobra o interesse da hora de poder achar-me neste lugar, o descanso de poder regressar com demora porque a viagem não é coisa séria quando o dia não se altera.

P.A.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Questão do sentido (Parte II)


“A pergunta permanece; e qualquer resposta que converta o indivíduo numa função do processo histórico-sociológico, assinalando-lhe só uma tarefa de serviço no progresso da humanidade, levanta-se no fundo (tendo origem na essência humana) uma rebelião da existência individual pessoal”

Emerich Coreth “O que é o Homem?”


O entardecer um dia sepulta-nos numa disputa de contracções contempladas na vertigem da morte. Repente que subleva o sentido das palavras numa imagem estropiada de todos os rumos imperfeitos. Somos chamados pelo fim dos outros a aprofundar o lugar da nossa existência, paradigma de uma presença interrogada, intuição sobre os fundamentos do ser para além da história dos homens, a morte como construção interior dum sentido sempre começado. Vivemos esquecidos num tempo eterno até sentirmos por momentos a ordem das coisas ser ultrapassada na consciência, que nos suspende numa agonia irrefutável, num apelo interdito entre a presença e a não presença, entre o ser e o não ser, fronteira que abandonamos pelo esquecimento conveniente, reconfigurado na ilusão dos dias e necessidade de continuarmos a ventilar o ar pesado que se abate pela espera incontornável do fim, para prosseguirmos no paradoxo entre a presença e a sua impossibilidade no tempo. A morte é uma ultrapassagem, antevisão fundamental que se retrai pela explosão do tempo consciente. Se por um lado todos os caminhos estão iluminados na sua validade e valoração perante o fim, são eles inconciliáveis com a sua interrupção eterna, que se abate pelo desfasamento da medida contínua das acções quotidianas, numa ameaçada racional e intrusa no curso individual e intransmissível. A morte é o destino de todos os homens, mas o destino dos homens não se reduz ao seu processo histórico e social, à sua função útil e finalidade colectiva, à maquinação dos desejos e quantificação dos gestos. Homem social e homem individual confrontam-se no avanço quotidiano repercutido no empenho e abandono vividos num processo de descontinuidade sentimental. Empenho e abandono são a síntese do processo existencial no tempo formador que impõe a realização alternada do “ser para morte”. Morrer no curso da existência é a garantia da finalidade humana, cumprida pelo aprofundamento da essência particular. Não é uma função biológica ou social, é uma pausa reflexiva que revela a unicidade individual e incomunicável, é uma morte relativa e provisória perante o final de uma etapa que sabemos acontecer um dia, e diante o qual resistimos intermitentes, dando conta do absurdo confronto entre a historicidade do ser e a sua superação pelo fim. Sem a morte as vivências percorreriam provavelmente um espaço vazio e infinito na falta de atrito temporal imposto por esse mesmo fim formador. Morremos essencialmente para continuarmos a pertencer às coisas na sua novidade. Morremos temporariamente no curso da existência como condição de revelação da essência impressa num código para além da história factual. É um lugar inefável onde se alcança a realidade inominada em sentido regressivo, que apaga os vícios da espécie e reinicia o fecundo e ingénuo desconhecimento.

P.A.

domingo, 25 de maio de 2008

Piodão XII


É a hora de ouvir correr o sangue pelos sinos,
ouvir longe o som morrer por nosos olhos finos
P.A.

Piodão XI


P.A.

Piodão X


P.A.

Piodão IX


P.A.

Piodão VIII


P.A.

Piodãp VII


P.A.

Piodão VI


P.A.

Piodão V


P.A.

Piodão IV


P.A.

Piodão III


P.A.

Piodão II


P.A.

Piodão I



Hora de deixar cair os braços e ouvir os passos,

hora de partir a vida em breves pedaços

P.A.

Aldeia de Xisto


Poderia ser uma qualquer Aldeia perdida num Pais distante e exótico, motivo que tantas vezes nos faz percorrer milhares de quilómetros para saborearmos à pressa outros lugares, porventura vulgares, e que apenas se escondem envergonhados na memória fotográfica de turistas impacientes. É uma das dez Aldeias históricas de Portugal, talvez por isso, com muitas histórias para investigar e seduzir em pequenos folhetos turísticos, porque é isto meus amigos, que o País tem que vender à União Europeia, aquela unidade hipotética de esforços incompreendidos que ameaça a identidade das nações dissolvida na necessidade comum, aquela unidade que acaba muitas vezes numa metáfora morta entulhada de palavras sem raiz real.


Descemos à aldeia. Como está tudo tão longe! Tão longe mas reconhecido pelo silencio da nossa estada, porque não há vida desencontrada nem caminhos perdidos, apenas uma presença inflamada pela intenção das cores, lugares que se formaram para assinalarem a origem emergente do povo num território usurpado aos desígnios de Deus. Descemos à Aldeia, protegida do infinito de tudo, habitada pela necessidade de haver lugares distantes, aparecidos de uma antiga recompensa concedida pela terra a homens amortecidos na incerteza dos visitantes. A serra do Açor acolhe a Aldeia que vai crescendo pelo frémito das fachadas, ruelas que vão irrompendo na novidade que se compadece, espíritos intermitentes comunicam no silêncio das pedras que cobrem a Aldeia no limite do saber comum. A certeza das ruelas resvala pelo equívoco dos passos que se estancam por momentos na encosta incompleta, e acerca-se dos sentidos emparedados, resfriados pela pausa que fazemos à vida numa missão revista. Aqui os sentidos não pensam, descobrem-se sem poder desdizer uma Aldeia por acontecer e outra razão dispensam, afinal são as casas de xisto a unidade que se justifica a si própria e pende para outra existência possível como ervas que insistem em crescer à beira dos caminhos.

P.A.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Bruma


É sempre a luz baça do dia
que pelos sentidos se antevê,
a causa de uma cidade fria
em que minha razão não crê.

É pela bruma da cidade tolhida
que se reparte o que não penso,
compassado por uma luz vestida
de sons raros que não dispenso.

As distâncias são o limiar da bruma
que se adensa no desconhecimento,
a cidade inteira que se avoluma
pela novidade do esquecimento.

O impensado pelas ruas a cindir
no compasso dos sons distantes,
é a condição da existência a fingir
pelos arruamentos inconstantes.

Convenço-me que a vida se entrevê apenas
pela cidade cheia e razão vazia,
não conheço por isso senão ruas amenas
pelo olhar da existência tardia.

P.A.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Antes das Palavras ( Parte II )


“As palavras de cada um só se tornam palavras de todos quando perdem a sua intenção, ao degradarem-se progressivamente, como uma moeda nova e brilhante que escurece após ser posta em circulação. Em vez de coincidir com um valor, a palavra não é mais do que a etiqueta”.

Georges Gusdorf “A Palavra”

Disse que antes das palavras estamos nós que também somos uma linguagem permanente que se move com excepção, penso que assim é na nossa condição de existirmos na presença intransponível de um corpo único, na consumação de formas radicadas numa essência orientada pela disponibilidade vital. E estas palavras que escrevo? Que ouço? Que invoco e remexo na arca mental como um esqueleto onde se tentam fixar os músculos do pensamento? E estas palavras e outras e muitas que se propagam para agarrar um sentido atendível por quem as escuta? Se é que alguém verdadeiramente escuta, se é que alguém embarca na real intenção de significar do outro, se é que alguém puramente sente as palavras alheias sem que tal apresse o acto de falar também, ou, sem falar, o acto de consumar nas palavras do outro o próprio silêncio. Quando nos falam que mais ouvimos para além de alguns sons articulados que suscitam imagens em que revemos ou procuramos a nossa posição num palco comum? E estas palavras e outras e muitas que se jogam e arriscam nas relações do mundo, qual o seu sentido na fórmula reduzida de um mero código comunicativo, que converte idiossincrasias em convenções para assegurar a sobrevivência em sociedade?

São as palavras das coisas que definem o reencontro permanente com o real, fixando-o num eixo de nomes conhecidos pelo qual nos inserimos no mundo. Nomes que começam com a necessidade de definir a inconstância das aparências, atribuindo-lhes uma natureza objectiva e duradoura, manipulada para além da situação concreta, invocando a matéria ou acção nominais em qualquer espaço e tempo, sempre que o real imponha uma decifração a prazo, capaz de nos guiar em abstracção. Nomes que são a visão transformadora que temos do mundo por impulsos intencionais num esforço de adequação. São as palavras das coisas que trazem estas à existência, cobrindo-as de um significado próprio que as tiram do anonimato e as fixam numa rede de pensamento intemporal, actualizada pela memória a cada momento identificável. Estamos entendidos, falamos a mesma linguagem, partilhamos palavras que circulam como moeda de troca entre impressões, desejos, afectações, entre realidades substantiváveis que se alinham em catálogos estandardizados.

O que sobre então de cada um de nós? De seres autênticos e residuais na grande esfera comunicacional? De seres cuja linguagem se interpõe com frequência entre o real e o possível, entre o estabelecido e a origem da subjectividade, entre o conhecido e o indizível. Escutemos as crianças e os loucos para penetrarmos no poder criador das palavras, na carga expressiva que trespassa as barreiras do acordo nominal, para se expandir em novos campos de sentido. O que sobra de cada um de nós? De seres que a dado momento lutam na interioridade original e intransmissível contra os muros da linguagem imposta, a que não pertencem de todo porque já lhes foi dada no vício da história. O que sobra de cada um de nós? De seres que substituem muito bem o discurso social nas horas em que recolhem a casa e perguntam, afinal porque é que acabamos sempre por sair?

P.A.

domingo, 27 de abril de 2008

Banco de Jardim


Descanso sobre a chaminé que dá para o céu da casa que se vê do banco de jardim. Fechei já os olhos, começa o mundo a brincar em volta de mim, uma grande brincadeira na grande roda da terra, o latejar do barulho distante para lá dos lugares que não conheço, momento celebrado no sono que reconheço. O partir da consciência, o vir das horas sem conteúdo, aos poucos o ar a ficar mudo, apenas sopra uma essência solta das coisas desmontadas que param em mim acordadas quando descanso num banco de jardim. Descanso para lá dos lugares que não conheço deitado no sono que reconheço, sem o manto da consciência poderei por fim dormir neste banco de jardim.

P.A.

sábado, 19 de abril de 2008

Interpelação


O crepúsculo sustém lá fora a presença, persistente, guarda de alguns segredos como resíduos do dia em reflexos de telhados frágeis. Sou sempre eu neste espaço e uma cama ao alto, fotografias que prolongam antigas visões de um passado quase feliz. A luz deposita subtileza em patamares deixados vazios pela noite que dormirá, mas a noite não dorme apenas consente, também consinto, de olhos pousados na folha onde escrevo, num espaço e tempo únicos onde justifico a presença de um corpo sem saída senão a de cumprir uma essência irreversível e acidental no imponderável do sujeito. Descanso o olhar sobre o horizonte no declive do acaso, a televisão está acesa e traz-me ocorrências no canto da sala, a mesa junto à janela no outro canto marca a insignificância da minha presença. A luz entra pelo quarto ingénua de insignificâncias nos intervalos das sombras esquecidas e a presença adquire importância à luz de insignificâncias percebidas. O término dos objectos em que revejo o passado por ocorrências vãs, o peso material a ocupar um espaço com esquinas e arestas em contacto com nada, o que não é visto mas é vivo de estar quando me ponho a sentir sem morada, consciente do minuto exacto que faz esquecer tudo aquilo para que nasci, tudo o que o tempo construiu por aproximação à verdade.

A presença é o concreto da existência, o inalienável que me determina no momento em que enquadro o corpo dado e dou conta do espólio imediato de afectações únicas, esfriadas depois lentamente pelo acolhimento da síntese consumada. E com isto me faltam razões que arrombem a vontade de escrever, rondam-me vivências difusas de imagens arrastadas sem nexo, estende-se a memória entre pólos de ligação ao mundo, o futuro a decair no passado, o presente a dilatar-se numa recordação antecipada como o tinir de uma corda de guitarra, o corpo assumindo-se o fantasma que aguarda enquanto caminha num instante que se esvai obsessivamente tocando outros instantes, com ou sem propósito, numa interpelação leve da consciência sumária.

Faltam-me razões para escrever além do aqui e agora pregado no corpo actual que arde interiormente e se consome na certeza da respiração abafada de estar, no sufoco vertiginoso que inverte os alicerces reais da existência que me habituei a ponderar e eclode na evidência presencial tornada consciente. Faltam-me razões para escrever que me arranquem desta noção de ser eu só uma carga material num instante particular.

P.A.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Interdependência dos Estados-Soberania Desigual



A complexidade actual das relações internacionais implicam a perspectiva sobre a inevitabilidade dos Estados se relacionarem correndo o risco de, se não o fizerem, caírem num isolamento estagnador e precário para a sua própria manutenção. Logo nos primeiros tempos da humanidade, houve necessidade dos pequenos grupos estabelecerem relações com os vizinhos. Essas relações tipificavam-se em atitudes ou decisões que implicavam a guerra, o conflito, mas também a cooperação e a partilha de bens e recursos. Neste sentido, uma atitude isolacionista por parte de qualquer comunidade política organizada tem como consequências o atraso tecnológico e a perda de eficácia relativa da defesa militar. A história é um exemplo vivo das constantes e continuadas relações entre povos, da sua interdependência política, económica, tecnológica, cultural. Fornece igualmente exemplos sobre o preço pago por alguns países que se remeteram durante gerações ao isolamento, como o Japão e a china, cada um de seu modo, que até ao século XIX, ao enfrentarem poderes tecnologicamente mais evoluídos aos quais tiveram de ceder em todas as frentes. Recentemente, a Albânia, fechada num comunismo radicalista, veio a confirmar-se como uma nação economicamente e tecnologicamente atrasada no contexto internacional.

Mas a humanidade escolheu há muito estabelecer relações de contacto entre povos, não só pela guerra, mas também, e por vezes na sequência daquela, através da difusão de conhecimentos, circulação de inovações e aculturação de experiências e valores de vida. “Parece que se tornou evidente para todos os poderes políticos soberanos que o estabelecimento de relações permanentes entre os centros de decisão é de vantagem geral e favorece a defesa da autonomia”[1]. Ao introduzirmos a temática da perca de soberania do Estado, teremos, eventualmente, que enquadrá-la numa necessidade crescente do próprio Estado dar resposta a uma conjuntura internacional cada vez mais complexa. O Estado é impelido a responder, a reagir, a tomar decisões, a concordar ou a ou a repelir propostas, fazer face a pressões, solicitações e ordens que se formulam a partir do exterior. Partindo do pressuposto que o estabelecimento de relações externas entre Estados, é não só uma necessidade, como uma garantia da sua própria defesa e autonomia, poderá então aferir-se que a crise do Estado soberano, é uma consequência lógica e inevitável, resultante do esforço de adequação às transformações da conjuntura internacional. Esta inevitabilidade, isto é, “a obrigatoriedade do contacto, gera automaticamente para um Estado, um enorme conjunto de direitos e obrigações que os dirigentes devem conhecer muito bem para melhor os aproveitar em benefício da comunidade”. [2] As palavras de Marques Bessa remetem-nos assim para, por um lado, do facto da inevitabilidade dos contactos resultar um conjunto de condições que regulam e potenciam a relação entre Estados, por outro, a necessidade dessas condições serem conhecidas e aprofundadas no benefício da comunidade, entendido como o reforço da seu poder e autonomia.

Sobre o conceito de interdependência, entendido como termo analítico, Joseph S. Nye, Jr. Diz-nos que ele se refere a situações nas quais actores ou acontecimentos em diferentes partes de um sistema se afectam mutuamente. Simplificando, interdependência significa dependência mútua. Tal situação, em si própria, não é boa nem má e pode existir em maior ou menor quantidade. Trata-se assim de uma condição necessária resultante das relações continuadas a diversos níveis entre os actores envolvidos, que poderão ter efeitos diversos quanto aos seus custos e benefícios nesses mesmos actores.

A interdependência entre Estados influencia naturalmente a soberania dos mesmos, entendida esta no seu sentido clássico, como o controlo absoluto de um determinado território que contém um povo governado por um poder jurídico. O Estado aparece assim divido entre o poder regulador e cooperativo das instituições internacionais, e o seu poder soberano a nível interno, o qual é ele próprio influenciado por aquelas instituições. Contudo, a soberania, tanto a nível interno como externo, pode ser reforçada pelos efeitos positivos das relações de interdependência. A assistência económica e militar, através de contrapartidas, pode ajudar um Estado a tornar-se mais independente a longo prazo. Por outro lado, como já foi dito, as respostas que hoje são exigidas a um Estado que esteja integrado na rede global de relações internacionais, impelem-no para o desenvolvimento de mecanismos próprios que obrigam ao conhecimento da realidade e actuar em adequação com mesma. A realidade global reveste-se de um conjunto de ameaças e riscos, mas também de vulnerabilidades e potencialidades, as quais compete ao Estado analisar e decidir de acordo com as estratégias definidas. Neste sentido, poderá perguntar-se se este exercício reactualizado do poder político face aos desafios internacionais, não será mais que o próprio exercício de soberania do Estado com vista à sua protecção e bem estar.

O papel do Estado soberano na rede de interdependência com outros Estados exerce-se em diversos domínios da sua política externa, a qual influencia fortemente e de modo subsequente, toda a política interna. Desses domínios devemos destacar o domínio político, económico, cultural e securitário.

Domínio político: O domínio político constituiu-se como um poder abrangente pelo qual os Estados tomam decisões na prossecução de determinados objectivos que envolvem necessariamente outros domínios de actuação, como por exemplo o domínio económico e cultural. Este domínios, por sua vez, através da crescente importância que têm vindo a assumir no plano internacional, podem influenciar e condicionar o poder político. O poder político no fundo, deve definir todo um conjunto acções estratégicas na sua relação com os outros Estados, procurando reforçar, em princípio, a sua própria defesa nacional nas mais diversas vertentes. Quando os Estados instalam bases militares noutros países, enviam corpos do exercito para áreas de crise, oferecem armamento aos países amigos, apoiam facções políticas em outras sociedades e comparticipam com meios financeiros institutos políticos e academias, que divulgam ideias, promovem debates e publicam obras, estão certamente a procurar reforçar o seu poder. A dependência militar de uma País em relação a outro ajuda a que aquele fique mais dependente das decisões políticas do mais forte, possibilitando que este conduza mais facilmente um conjunto de interesses no país militarmente dependente. O poder Americano não deixa de coordenar os Estados que lhe são essenciais, mantendo sob vigilância a sua actividade política.
O Panamá é paradigmático porque é um território essencial às comunicações marítimas leste Oeste, e o poder hegemónico do continente não pode deixar a regularidade destes contactos ao sabor da política local ou de interferências estrangeiras ao continente.

O domínio económico: A dimensão económica é fundamental para o poder real do Estado, que através dela procura obter a sua segurança integral. Esta dimensão, tão presente na interdependência entre Estados, é levada a cabo por uma política externa exigente e complexa, protagonizada por agentes especificamente preparados para a levar a cabo. As linhas de abastecimento de matérias-primas indispensáveis ou críticas para as economias industrializadas, a defesa expansão de mercados para produtos manufacturados, a protecção do mercado interno, a capacidade de enfrentar as tentativas de controlo económico estrangeiro, a defesas da moeda e do investimento no exterior, a política de crescimento económico, as políticas alfandegárias, os subsídios à exportação e modernização, são elementos de uma configuração complexa entre Estados, que determinam a sua relação e interdependência.

Conforme nos diz Joseph S. Nye, Jr, a interdependência económica envolve opções políticas em relação a valores e a custos. Num dos exemplos referidos pelo autor, no princípio da década de 70, havia uma preocupação geral de que a população estava a exceder os recursos alimentares globais. Muitos países estavam a comprar cereais americanos, o que, por seu lado, aumentou o preço dos bens alimentares nos supermercados americanos. O pão estava mais caro no Estados Unidos porque as monções indianas tinham fracassado e porque a União Soviética tinha gerido mal a sua colheita. Em 1973, os Estados Unidos, num esforço para impedir o aumento dos preços no País, decidiu interromper a exportação de soja para o Japão. Como resultado, o Japão investiu na produção de soja no Brasil. Alguns anos mais tarde, quando a oferta e a procura se encontravam mais equilibradas, os agricultores Americanos arrependeram-se desse embargo, já que os Japoneses estavam a comprar a soja mais barata proveniente do Brasil.[3] Neste contexto, é perceptível que a interdependência económica entre Estados joga com duas variáveis importantes, a sensibilidade e a vulnerabilidade. No exemplo referido, O Japão era bastante sensível as eventuais mudanças no mercado abastecedor de soja dos Estados Unidos, contudo, a sua vulnerabilidade viria a ser ultrapassada, não obstante os custos implicados nessa mudança, através da capacidade de investir na produção do mesmo produto noutro País, com vantagens a longo prazo. O mesmo acontece quando um dos principais mercados abastecedores de determinado País falha, e este tem a capacidade de encontrar uma alternativa com origem noutro mercado, capaz de suprir a sua dependência em relação ao primeiro. O grau de vulnerabilidade de um País depende assim da capacidade deste responder à mudança. Por vezes, essa capacidade também se traduz em acções de âmbito interno. Quando o Xá do Irão foi deposto, em 1979, a produção petrolífera iraniana foi interrompida numa altura em que a procura era elevada. A perda do petróleo iraniano levou a que a quantidade total de petróleo no mundo baixasse em cerca de 5%. Os mercados eram sensíveis e a escassez da oferta traduziu-se rapidamente num aumento do preço do petróleo. Os Estados Unidos, sensíveis a este facto, diminuíram a sua vulnerabilidade impondo um limite de velocidade de 85 Km/h. e baixando os termóstatos.[4]

O poder económico funciona também como uma arma. O embargo técnico-científico, tal como o económico, é um meio de que os Estados poderosos se servem para se afirmarem. Quando um Estado impede outro de ter acesso a determinadas matérias-primas vitais, como o urânio, gás, petróleo, alumínio, cobre e ferro, ou produtos alimentares, ou planos tecnológicos, tem como objectivo o seu enfraquecimento militar e económico, com repercussões no bem estar geral de toda a população. Trata-se de uma arma poderosa para levar os Estados a tomarem decisões ou a desenvolverem estratégias que sejam convenientes a quem a utiliza, substituindo o meio tradicional da guerra. Isto poderá ser entendido como um dos custos da interdependência. Se é certo que a interdependência gera benefícios entre os Estados, numa cooperação horizontal e global, a competição entre os mesmos, fundada na capacidade de cada um desenvolver mecanismos que potenciem e fortaleçam a sua posição, explorando as vulnerabilidades externas, levará a que uns beneficiem mais do que outros.

Domínio cultural: A projecção cultura de um País não pode ser dissociada do seu poder político e económico, ou mesmo militar e sucuritário. “A política cultural para o exterior é sempre uma política cara e de resultados a longo prazo, que interessa sobretudo aos grandes poderes como pano de fundo para estender a sua influência marcadamente política e económica”[5] Esta projecção utiliza estratégias cada vez mais diversas e subtis. Tem como objectivo a difusão da identidade e imagem de um País, criando em espaços cada vez mais longínquos um ambiente receptivo aos produtos culturais e materiais com determinada marca de origem. Redes de Institutos culturais, fundações. Escolas, revistas, bolsas de estudo, e financiamento de instituições locais, são algumas das estratégias utilizadas. Para além da criação de um mercado de expansão dos produtos culturais e materiais do país de origem, pretende-se a captação e recrutamento de quadros técnicos mais capacitados existentes nos países visados, que encontram nos primeiros condições de trabalho superiores e mais estimulantes. Este fluxo, normalmente denominado brain drain, é uma mais valia importante para quem dele beneficia. Actualmente, a federação Russa revela-se incapaz de segurar os seus melhores especialistas, os quais oferecem os seus serviços em capitais do mundo ocidente. A este propósito importa mencionar o que nos diz o General Loureiro dos Santos sobre a actuação dos Estados Unidos; “ A estratégia de actuação para o domínio e hegemonia empreendida pelos EUA caracteriza-se, basicamente, pelo uso daquelas modalidades de acção que se costumam designar por estratégias indirectas, como a difusão e negociação para convicção dos seus pontos de vista ( estratégia diplomática ), a utilização da sua capacidade multimédia, da sua predominância no audiovisual e do seu dinamismo cultural ( estratégia psicológico-cultural ), actuação no domínio económico-financeiro ( estratégia económico-financeira), usando apenas em última instância a sua incomensurável panóplia militar, quando estiverem em causa os seus interesses nacionais e apenas quando dispuserem de superioridade esmagadora no teatro de operações e houver uma saída estratégica de zero baixas. O essencial da sua estratégia consiste num conjunto de medidas de carácter estrutural que permitem aos EUA exportar os seus pontos de vista para os outros países, através das comunidades intelectuais, convencendo-os de que o que é bom para a América também é bom para eles” [6]

A estratégia adoptada por determinado país no domínio cultural tem uma importância capital na imagem que se pretende dar desse mesmo país, condicionando, de modo subsequente, a percepção que os outros países têm sobre o desempenho, expressão, capacidade, projecção, no fundo, sobre a identidade do país em causa. A propaganda inteligente torna-se um factor importante de influência e interdependência entre Estados. Pode servir para veicular uma imagem de marca de um Estado, mas também pode servir para denegrir a imagem de Estados adversários. Durante a guerra fria os Estados Unidos e a União soviética gastaram somas fabulosas neste combate de imagem, onde cada um, a par da preocupação em destruir a imagem do outro como terra paradisíaca, estava interessado em promover a sua própria imagem positiva, como país de justiça, liberdade autêntica e de oportunidades.

O domínio da segurança: quando falamos de segurança e defesa de um Estado, estamos certamente, e de modo actual, a falar de um domínio tão vasto que pode abranger todos os outros domínios, sendo por eles igualmente condicionado. Como já foi mencionado, a realidade interna e externa de um Estado, num mundo cada vez mais globalizado, interage num espaço cada vez mais lato e indefinido. E é neste sentido que Stephen Castels se refere ao processo de globalização como uma mudança “ de um mundo de lugares para um mundo de fluxos”[7]

De modo essencial, o Estado procura manter a sua soberania sobre todo o território e defender-se adequadamente de qualquer ameaça, protegendo a sua população. Contudo, esta finalidade pode ser conseguida basicamente por duas vias. Por um lado, dispondo de um poder militar credível, dimensionado à geografia do País, ao seu produto interno bruto e às responsabilidades assumidas nas organizações que integra. A Suiça é apontada como um exemplo desta atitude, sendo para mais um Estado de neutralidade reconhecida internacionalmente. Por outro lado, estabelecendo alianças bilaterais com poderes amigos no sentido da cooperação e defesa mútua ou instituindo pactos multilaterais no seio de Organizações, que oferecem garantias de defesa e integridade territorial a todos os membros activos. Portugal é certamente um exemplo desta segunda via. Também neste domínio fica patente a necessária interdependência entre os Estados, que interagem num contexto internacional com diversos fins, seja a procura de um equilíbrio de forças, da protecção a determinado Estado ou território de interesse nacional, do compromisso de participação nas associações que integram ou a garantia da sua defesa em pontos estratégicos espalhados pelo mundo, mas certamente com uma preocupação essencial, a segurança e manutenção do seu próprio território, das suas populações e seu bem Estar. Neste contexto, o Estado também se apresenta como um poder dividido entre preocupações e interesses externos, os quais terão repercussões na segurança interna, que por sua vez lhe exige decisões e aplicação de medidas estratégicas adequadas à sua realidade particular como Estado soberano com uma identidade própria. Sobre esta divisão estratégica, que na prática, é sempre referente a uma realidade única e contínua de inúmeros centros interdependentes, o Estado, na perspectiva de António Marques Bessa, poderá manter-se como protagonista; “com o seu poder efectivo e a vontade dos seus dirigentes, apostados em alterar ou aproveitar a conjuntura mundial, conquistando, cedendo ou mantendo vantagens”. [8] Trata-se, no fundo, de analisar e decidir da melhor maneira no conjunto das diversas relações de força captadas ao longo do tempo. O Estado terá assim a última palavra, por exemplo, no estabelecimento das regras segundo as quais se instalam no seu território as empresas estrangeiras, ou sobre as condições em que entra em pactos e organizações internacionais. Contudo, este poder dependerá em muito da sua coesão interna e identidade nacional, como condição da sua autonomia decisória e soberana.

No jogo global das interdependências sentimos, no entanto, que muitos estados parecem acumular mais desvantagens do que vantagens, lutando contra si próprios na procura de segurança, justiça e bem-estar, ou seja, de verdadeira autonomia. Este quadro empobrecedor que se espalha ao longo dos anos pela cena internacional, devolve-nos uma triste imagem sobre a incapacidade de entendimento global por parte dos mais poderosos, que avançam numa atitude indiferente ao lado daqueles que estão a meio caminho de lado nenhum.

Há 12 anos o relatório das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD), apoiava a conclusão de que a globalização económica, longe de provocar uma mundial elevação do nível de vida, faz crescer as desigualdades tanto entre os países como dentro dos mesmos. O exemplo de África, cujas infra-estruturas deixadas pelas soberanias coloniais têm sido destruídas pelas guerras locais, caíram significativamente, e por todo o terceiro mundo as políticas de ajustamento estrutural do FMI e do Banco Mundial, são acompanhadas pelo alastramento da pobreza, na mesma África, América Latina, Caraíbas.[9]

Uma das questões que se tem colocado é saber se a globalização económica, inspirada pela elevada eficácia tecnocrática e competitiva, inviabiliza alternativas de racionalização e regulamentação dos mercados, para além dos mecanismos imediatos de avaliação custo/benefício, com vista a maximização do lucro.

A resposta tem sido configurada no protagonismo de milhares de organizações não governamentais, que se assumem no fluxo transnacional de bens e mais valias económicas, e que confirmam a incapacidade dos Estados intervirem na regulamentação da rede mundial.[10]

Mas se a incapacidade dos estados tem dependido em muito da sua incapacidade de olhar o outro, algo de essencial terá de ser corrigido no grande jogo global das relações internacionais, para que a sua imagem não persista o pesadelo que ensombra o próprio progresso.

P.A.


Bibliografia


Bessa, António Marques, “ O Olhar de Leviathan” – “ Uma Introdução à Política Externa dos Estados Modernos”, ISCSP, 2001

Casttles, Stephen, “ Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios” “ Dos Trabalhadores Convidados às Migrações Globais”, Fim de Século, 2005

Moreira, Adriano, “Teoria das Relações Internacionais”, Almedina, 5º Edição

Nye, Joseph, “ Compreender os conflitos internacionais” – “ Uma Introdução à Teoria e à História”, Gradiva, Maio de 2002

Santos, Loureiro, “ Segurança e Defesa na Viragem do Milénio”, “Reflexões sobre Estratégia II” Publicações Europa-América, Set. 2001




[1] Bessa, António Marques, “O olhar de Leviathan” – Uma Introdução à Política Externa dos Estados Modernos, ISCSP 2001, pág 77
[2] Ibid. Pág 77
[3] Nye, Joseph, “ Compreender os Conflitos Internacionais” – “ Uma Introdução à Teoria e à História”, Gradiva, Maio de 2002, pág. 226
[4] Ibid. Pág. 229
[5] Bessa, António Marques, “ O olhar de Leviathan” – “ Uma Introdução à Política Externa dos Estados Modernos”, ISCSP, 2001, pág. 101
[6] Santos, Loureiro, “ Segurança e Defesa na Viragem do Milénio”, “Reflexões sobre Estratégia II”, Publicações Europa-América, Set. 2001, pág. 115
[7] Casttles, Stephen, “ Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios” “ Dos Trabalhadores Convidados às Migrações Globais”, Fim de Século, 2005, pág. 78
[8] Ibid, pág. 79
[9] Moreira, Adriano “Teoria das Relações Internacionais”, Almedina, 5º Edição, Pág. 439
[10] Ibid, Pág. 439

terça-feira, 1 de abril de 2008

Antes das Palavras


A aula terminou infalível. Os apontamentos são a síntese da ideia principal do autor degenerada nas interpretações do professor e dos alunos. Não há questões, as cabeças debruçam-se nas últimas frases captadas para encherem folhas papagueadas e atiradas depois para dentro das pastas apressadas pelo rescaldo das ideias. Escrevi nada. Se algo houvesse que merecesse ser escrito seria o silêncio infiltrado da filosofia, o vazio de sentido emerso em bocados de realidade que se tentam nivelar, porque a razão das palavras é sempre um desequilíbrio a posteriori sedimentado em ideias feitas. A aula esteve distante, viemos tarde para os Deuses, heróis e ninfas numa couraça de conceitos que se estancam no espírito, autómatos das palavras sem o sangue que as configura, atulhámo-nos em signos e não em coisas como hóspedes da terra e da vida, a realidade avoluma-se em explicações compiladas pela obesidade académica ao invés de se alimentar de visões precipitadas por vales fecundos, de vontades activadas nas montanhas do silêncio rarefeito, de vivências desbravadas pelo torpor dos músculos e ligeireza do intelecto.


Intervalo para o cigarro e algumas considerações antes de outra aula. São muitos os livros, os autores, tempo que se gastou a não ler mas a rememorar artefactos e interpretações avulsas que tentam arrancar o autor do seu silêncio primeiro. O mundo sempre já aqui a gastar-se em palavras que são alienações redundantes do hábito de ser, sinais de outras coisas que se apresentam ao espírito balbuciadas pela dúvida essencial, pelo acaso terreno, pela impressão.
Outra aula distante, de repente embarco no discurso, ouço as palavras do professor como uma percussão afagada entre o passado e o possível que desencadeia um conforto de estarmos a viver em simultâneo. O autor escreveu muito, pensou demais, reconcilio-me com seu pensamento entranhado nos nossos dias como o frenesim de comunicação num átrio de gente sem se perceber uma só voz, estranho ruído propagado em rascunho à procura de um sentido, de um mote para nos encontrarmos. São cegos e mudos os encargos do nosso fundamento, abandonados a um cavar lento de causas invertidas até ao centro da terra como crianças que seguram um brinquedo ao contrário. As palavras levam-nos a atenção de ser, desalegram-nos, desentristece-nos, vestem-nos de razões gastas que emolduram o acaso. Basta o silêncio para nos soltar o mais íntimo filamento carnal de interacção com o outro e percebermos uma causa. Antes das palavras estamos nós que também somos uma linguagem permanente que se move com excepção por órgãos, músculos e ossos, a emergir no exterior como ondas de calor, a arrastar a essência pela paisagem imiscuída de opacidade e tons, sem nome, lascada na imperfeição muda que se compensa, só para justificarmos o acaso que somos.

P.A.

domingo, 23 de março de 2008

Espaço e Tempo ( parte II )


Que importância tem estar perdido nesta manhã de ninguém se o sonho se tem retido? Um dia que se vive sem viver pela liberdade de tudo perceber, subir esta e aquela rua, espreitar aquele casebre porque a alma é nua e a vontade é leve. Sentar na fonte com nenhum desejo e o desconhecido defronte sorrindo de ensejo. Que importância tem estar perdido nesta manhã que vem sem que se tenha pedido?

Qual a causa que prevalece sobre o simples existir se ao prazer o viver obedece na tranquilidade de sentir? Quais os limites da vontade e do movimento? Quem acompanha esta verdade e às incertezas está atento? A verdade escorre por alegrias finas, o que é vão lembra o prazer de estar, veja-se os Deuses meninos impávidos a brincar

Que destino aguardado têm na evidência de estar? Pela luz e vento as atenções vêm e com elas a demora de encontrar. Prazer de passear pela estrada, ver as ervas que aí crescem sem campo, aí está também a razão semeada à espera de uma história com encanto. Nenhuma hora é perturbada por Deus quando este é estar e sonhar, correr pelos dias que são seus, ver os Deuses meninos impávidos a brincar.

P.A.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Espaço e Tempo


Não, não sou saudosista, a tecnocracia tanto me assusta e deprime como me encoraja e estimula, vivo-a como o álcool, para consumir moderadamente, é por isso que, de quando em vez, regresso a um espaço intimo e reflexivo como que à procura de uma base sensível para ligar o novo equipamento virtual, uma personagem de “Tudo o Vento Levou” à procura do seu papel no filme “Transformers”

Não, não penso que há 25 anos era melhor que os jovens de hoje, há contudo uma diferença importante, a da marcação do espaço e tempo. Há 25 anos era um jovem mais desmarcado temporal e espacialmente, por isso mais liberto para poder conviver com o curso dos fenómenos sem que me aparecessem na indiferença do nada, improvisando-os numa relação de descoberta interna como uma história infantil, ingénua claro, fantasmagórica claro, preconceituosa claro, tímida por entre uma cadeia de enganos repercutida no espaço e tempo, mas talvez mais humana.

Os pais tecnocratas cuidam dos filhos num controlo mecânico dos diversos movimentos e energias com vista à sua disciplina, manipulação calculada das suas atitudes e gestos, de todo o seu comportamento que não deverá fluir na desordem dos corpos, mas tão somente condensar-se no imediatismo objectivo, que resulte na utilidade e eficácia da sua presença. Por isso, os filhos dos pais tecnocratas têm pouco espaço para fantasiar, sonhar ou recriar, mas antes, estão sujeitos à lei da maquinação com botões que accionam todos os sonhos, rápidos, adultos, que matam mas não entristecem. Não sobem aos telhados aventureiros ou às árvores recatadas, não brincam como no começo do mundo, mas antes, saem de casa na curiosidade da vida programada. Como diria Michel Foucault, importa a localização correcta dos indivíduos, evitando a sua distribuição anárquica e confusa. O espaço disciplinar tende a dividir-se em parcelas objectivas, anulando os efeitos da circulação difusa e descontrolada dos indivíduos. Importa saber onde e como encontrá-los, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, avaliá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades e os méritos. O sistema de controlo vai pouco a pouco aperfeiçoando-se segundo a regra das “ localizações funcionais ”, impõe-se a codificação do espaço que a arquitectura anterior deixava geralmente livre e pronto para vários usos.[1]

Mas a organização dos filhos no espaço implica necessariamente a sua organização no tempo, “ Procura-se também garantir a qualidade do tempo empregado: controlo ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de tudo o que possa perturbar e distrair, trata-se de construir um tempo integralmente útil… ”[2] O controle e a eficácia dos movimentos do corpo no espaço exigem a sua programação ritmada durante um determinado tempo. O tempo surge quase infinitamente fraccionável, em que o uso de cada instante deve ser intensificado na sua utilidade, rapidez e eficácia. O tempo não deve ser passado na procura livre e esforçada de apropriação do mundo, mediante a criação e desenvolvimento de aptidões individuais, mas antes, ser decomposto, subdividido, desarticulado e desdobrando nos seus momentos sob o olhar de quem os controla. O tempo deve ser linearmente preenchido na sua sucessão, através de actividades múltiplas, ordenadas, cronometradas, impondo a sua normalização no aceleramento de uma aprendizagem rápida e eficaz.[3] O tempo útil deverá impor-se ao tempo de maturação, podendo chegar à sua anulação pela falta de tempo.

De repente crescem perplexos para a adolescência de rostos uniformes sem vida encerrados no silêncio dos quartos, de quando em vez levantam o olhar meio desconfiado meio assustado sobre o que o à volta se vai passando, reacção retardada de animal aprisionado que depois regressa ao seu canto pelo mesmo silêncio, sem resgatar uma palavra, um sinal, apenas o agrilhoar dos membros em redor do corpo em movimento fetal. Um dia breve é o despertar para homens de cinzento e azul-escuro confiados em gravatas de última hora, desaguam nos bares mais falados, enxovalham-se na multidão de apertos e abraços e novidades acabadas, “A época do menino satisfeito” segundo Ortega e Gasset, aquele que se basta a si próprio, tão independente que já não consegue viver sem 50 canais de televisão, acha estranho a civilização ter perdido tantos anos a pensar quando agora demora apenas um dia a não pensar aquilo que lhe mandam fazer. “O menino satisfeito” goza de um espectáculo que se consome num só tempo, longínquo de sensações que estalam em antecipação, abismo solene que se assiste de copo na mão.

P.A.


[1] Foucault, Michel “Vigiar e Punir”, Editora Vozes, 1987, pág 123
[2] Ibid., p. 128
[3] Ibid, p.131