sábado, 19 de abril de 2008

Interpelação


O crepúsculo sustém lá fora a presença, persistente, guarda de alguns segredos como resíduos do dia em reflexos de telhados frágeis. Sou sempre eu neste espaço e uma cama ao alto, fotografias que prolongam antigas visões de um passado quase feliz. A luz deposita subtileza em patamares deixados vazios pela noite que dormirá, mas a noite não dorme apenas consente, também consinto, de olhos pousados na folha onde escrevo, num espaço e tempo únicos onde justifico a presença de um corpo sem saída senão a de cumprir uma essência irreversível e acidental no imponderável do sujeito. Descanso o olhar sobre o horizonte no declive do acaso, a televisão está acesa e traz-me ocorrências no canto da sala, a mesa junto à janela no outro canto marca a insignificância da minha presença. A luz entra pelo quarto ingénua de insignificâncias nos intervalos das sombras esquecidas e a presença adquire importância à luz de insignificâncias percebidas. O término dos objectos em que revejo o passado por ocorrências vãs, o peso material a ocupar um espaço com esquinas e arestas em contacto com nada, o que não é visto mas é vivo de estar quando me ponho a sentir sem morada, consciente do minuto exacto que faz esquecer tudo aquilo para que nasci, tudo o que o tempo construiu por aproximação à verdade.

A presença é o concreto da existência, o inalienável que me determina no momento em que enquadro o corpo dado e dou conta do espólio imediato de afectações únicas, esfriadas depois lentamente pelo acolhimento da síntese consumada. E com isto me faltam razões que arrombem a vontade de escrever, rondam-me vivências difusas de imagens arrastadas sem nexo, estende-se a memória entre pólos de ligação ao mundo, o futuro a decair no passado, o presente a dilatar-se numa recordação antecipada como o tinir de uma corda de guitarra, o corpo assumindo-se o fantasma que aguarda enquanto caminha num instante que se esvai obsessivamente tocando outros instantes, com ou sem propósito, numa interpelação leve da consciência sumária.

Faltam-me razões para escrever além do aqui e agora pregado no corpo actual que arde interiormente e se consome na certeza da respiração abafada de estar, no sufoco vertiginoso que inverte os alicerces reais da existência que me habituei a ponderar e eclode na evidência presencial tornada consciente. Faltam-me razões para escrever que me arranquem desta noção de ser eu só uma carga material num instante particular.

P.A.

4 comentários:

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

Gostei muitissimo, li e reli durante mto tempo e com todo o vagar do mundo. Deixei-me embalar pelas palavras, pelas frases e deixei-me envolver tb com todos os meus sentidos numa espécie de dormencia desejada! Sei q te libertas de ti mesmo qdo escreves e é na escrita q atinges o máximo de ti mesmo pq é só aí, de olhos pousados na folha onde escreves,q ganhas um espaÇo e um tempo únicos, como tu próprio dizes no teu texto. Aí deixas navegar os teus sentidos, despojas-te do teu presente, do teu destino e, até do teu passado, e recrias-te a ti próprio, transformas-te e transcendes-te!Sais do teu corpo e viajas, kms e kms incontáveis, sem destino e sem amarras. Consigo sentir onde chegas porque eu própria, mtas xs, faço esse percurso alucinante!
Gostei mto da foto e, a vastidão do mar, é tb um bom começo para uma "viagem" destas de q falei em cima. Tb o mar deixa tudo em aberto...

Anónimo disse...

Agradeço-te uma vez o comentário que me devolve uma imagem ampla e fértil sobre o que escrevo. Antes de tudo estamos presentes, tomarmos consciência dessa contingência reduz-nos a uma estranha certeza sufocante, mas também nos abre um mundo de possibilidades. Somos um corpo consciente para o que der e vier...um bjo.

P.A.

Anónimo disse...

Que não te faltem razões para escrever, seria UMA PENA... mas não te esqueças de viver, viver até ao "tutano", para que nunca pares de escrever!