sábado, 30 de janeiro de 2010

Segurança Estrutural


Perante o terrorismo global, como uma ameaça em curso que contraria a prossecução dos fins do Estado, causadora de danos materiais e morais, é exigida uma resposta igualmente global que minimize os seus riscos. Neste âmbito, não se pode abordar o fenómeno do terrorismo global sem considerar a sua estreita relação com o crime organizado, com as organizações de carácter transnacional que, através do branqueamento de dinheiro e do tráfico ilegal de pessoas, drogas e armas, fazem negócios que superam muitas vezes o produto interno de alguns Países. Da convergência entre o terrorismo global e o crime organizado, ambos os sectores saem beneficiados. Enquanto os grupos terroristas têm acesso a dinheiro, pessoal mais qualificado, a novas tecnologias e armamento diversificado, o crime organizado beneficia do clima de instabilidade criado pelos terroristas para levar a cabo as suas acções ilegais. Estas acções são transversais a todos os domínios da vida social de um Estado, pelo que, o ideal securitário, longe de se constituir apenas como um conjunto de acções ofensivas capazes de dar resposta a um ataque, no sentido de o evitar, ou de actuarem após os factos consumados, deve abranger um conjunto de medidas preventivas que integrem as estruturas do Estado, desde o simples cidadão ao governante máximo. A segurança é efectivamente uma necessidade de qualquer Estado, sendo não apenas um dos seus elementos constituintes, mas também aquele, através do qual, o próprio Estado conserva a sua soberania e autonomia, logo, a sua continuidade. O conceito de segurança e defesa nacionais exige na actualidade, o estudo de uma vasta área de factores e actores intervenientes, quer a nível interno como externo, sendo esta própria divisão, desde há muito, alvo de revisão estratégica no sentido do seu esbatimento como resposta a um novo espaço de interacção.
A segurança estrutural pode ser definida como um conjunto de medidas adoptadas por um determinado Estado ou Nação, transversais a todos os domínios da vida social, e não só no domínio da defesa militar, com vista à protecção e manutenção dos fins para que foi criado, ou seja, para além da sua integridade, o exercício da Justiça e a promoção de bem estar face às novas ameaças. A este propósito, José Leandro, num artigo da revista Segurança e Defesa, refere, na sequência da ideia de que o Estado tradicional é esmagado e atravessado pelas forças transnacionais da economia, das finanças, da cultura, do desporto, do terror e do crime organizado, que: “ A segurança já não é um dado adquirido em nenhuma parte do globo e deve ser trabalhada e garantida por todos, todos os dias, a Defesa já não pode ser isolada, ela é apenas uma parte da grande segurança que a todos diz respeito…”[1]

A questão da segurança estrutural está, de resto, há muito consagrada e prevista, no caso de Portugal, no artigo 276 da Constituição da República Portuguesa, intitulado ( Defesa da Pátria, serviço militar e serviço cívico ), quando no seu ponto 1. refere; “ A defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses”. No número 3. do mesmo artigo, prossegue dizendo; “ Os cidadãos sujeitos por lei à prestação do serviço militar e que forem considerados inaptos para o serviço militar armado prestarão serviço militar não armado ou serviço cívico adequado à sua situação”. Embora inserido no âmbito da defesa nacional, tais enunciados remetem para o dever dos cidadãos, fora daquele âmbito, cumprirem, de modo complementar, com a obrigação de prestarem tarefas defensivas na esfera cívica. Tal pressupõe que, embora não estando directamente envolvidos na defesa nacional, a própria condição de cidadãos exige o exercício de tal tarefa. Este pressuposto, por sua vez, faz derivar da obrigação de defendermos, e de modo complementar, a obrigação de zelarmos pela segurança na esfera cívica.

Historicamente a segurança nunca se limitou aos aspectos militares. As guerras Púnicas, bem como outras campanhas da Antiguidade, como por exemplo as guerras do Peloponeso, revelam um conjunto de acções estratégicas utilizadas, desde a diplomática, passando pela económica e psicológica, até à militar[2].
Estas estratégias foram levadas a efeito em diferentes áreas geográficas, podendo falar-se na existência de diferentes fronteiras onde as campanhas actuavam; fronteira política fronteira económica, fronteira psicológica e fronteira militar. A necessidade de segurança aparece estreitamente ligada à noção de fronteira, delimitando esta, o espaço primitivo ou original onde as sociedades se organizam para desenvolverem os seus objectivos comuns, isto é, o território. O território tem assim um significado fundamental na organização e desenvolvimento das sociedades politicamente organizadas. Apenas considerando a defesa do território no aspecto estritamente militar, a história revela-nos a importância que a mesma seja efectuada o mais longe possível dos locais onde se encontram as populações, protegendo-as dos malefícios da guerra. Hoje, esta realidade é visível nos mais diversos conflitos internacionais, bastando invocar as diversas missões militares destacadas para os cenários mais distantes, sabendo que a sua actuação tem frequentemente implícita, a necessidade de salvaguarda de outros interesses estratégicos, sejam políticos, económicos, comerciais ou de aliança diplomática. Como recorda o General Loureiro dos Santos “ Durante Longos séculos, a fronteira política de Portugal situava-se em Roma, tal como hoje se localiza em Bruxelas ou Washington, passando por Madrid. As fronteiras económicas percorriam o mundo inteiro, desde Madrid a Sevilha, passando por Antuérpia, e deslocando-se para as áreas mais remotas onde o nosso comércio se efectuava. Em termos psicológicos, também tivemos fronteiras em todos os espaços geográficos por onde Portugal se derramou, cuja ponta de lança era representada pela Igreja Católica, nomeadamente, pelos seus missionários”[3]

Se por um lado, o território delimitado pelas fronteiras originais se apresenta como o último reduto a ser defendido até às últimas consequências, certo é, que as raízes históricas da sua defesa num âmbito alargado de estratégias conjuntas para além fronteiras, atinge no quadro actual das relações internacionais e interdependência entre Estados, uma importância e complexidade inalienáveis.

Antes de explanarmos de modo mais concreto a noção de segurança estrutural, importa retomar o conceito de segurança colectiva que se formou antes e durante a guerra de 1914-18. Como reacção à aliança dos Estados que se unem contra um eventual agressor, a segurança colectiva procura um sistema global que funcione a favor de todos e que reaja contra qualquer agressão considerada injusta em face do direito internacional. A Sociedade das Nações foi anunciada num dos célebres 14 pontos do Presidente Wilson, e veio a ser a primeira grande expressão da segurança colectiva. É notório que a preocupação principal era delimitar o recurso à guerra por parte dos Estados, submetendo estes aos imperativos do direito internacional. Neste contexto, o artigo 11 do pacto da Sociedade das Nações, referia o seguinte; “ É expressamente declarado que toda a guerra ou ameaça de guerra, quer afecte ou não directamente um membro da Sociedade, interessa à sociedade no seu todo, e que esta deve tomar as medidas apropriadas para salvaguardar a paz das nações”. Acrescenta ainda o seguinte; “ Fica também estabelecido que qualquer membro da Sociedade tem o direito de chamar a atenção da Assembleia e do Conselho para qualquer facto susceptível de afectar as relações internacionais e que ameace perturbar a paz e o bom entendimento entre as nações de que a paz depende”. A consciência sobre a necessidade de regular a actuação dos Estados no domínio militar, foi sendo, de modo subsequente, alargada a outros domínios, através do surgimento de inúmeras organizações internacionais, tanto no âmbito do Comércio, como da Saúde, da Cultura ou das ciências.

Como já vimos, um dos fins essenciais do Estado é o de assegurar a defesa e segurança do País. O facto é, que a prossecução deste objectivo, no contexto actual de aceleração de novos poderes à escala nacional, mas sobretudo à escala internacional, tem permanecido num espaço dividido entre uma necessidade inalienável e uma tendência efectiva que se traduz, por um lado, na subordinação à superpotência militar dos EUA, e a pressão exercida pela opinião pública quanto à desconfiança de investimentos avultados na defesa num clima pós guerra fria.

Nesta perspectiva, e independentemente dos regimes mais ou menos autoritários que presidiam aos respectivos Estados, eram estes que protagonizavam as prioridades de actuação e consequente decisão no âmbito da política externa, neste caso, no campo militar. A crise do Estado soberano e subsequente emergência do poder da sociedade civil, veio reduzir em muito a margem de manobra do poder decisório do Estado, mais preocupado em conseguir consensos e cativar a opinião pública e o eleitorado, do que defender princípios e estratégias nacionais a longo prazo. Este facto, torna-se mais agudo quando nos confrontamos com um conjunto de novas ameaças transnacionais, com implicações directas para a segurança dos próprios Estados, obrigando estes a rever novas estratégias de defesa e segurança num novo contexto de insegurança mundial. Tomemos como exemplo o caso português pelo documento intitulado “Conceito Estratégico de Defesa Nacional” - Resolução do Conselho de Ministros nº. 6/2003, no qual é definido um vasto conjunto de missões e capacidades das forças armadas, em articulação com as forças de segurança interna, cuja concretização é no mínimo questionável em relação ao esforço real de adequação e investimento que temos vindo a fazer nesta área.

Assim, o poder do Estado em matéria de segurança, deriva de um conjunto de circunstâncias e tendências, tanto actuais como num passado recente, à escala nacional e internacional, tornando-o aparentemente num poder volátil e indefinido, funcionando muitas vezes por impulsos de carácter provisório e condicionado. A redefinição do objecto da defesa por parte dos Estados no período pós guerra-fria, a canalização de energias para outros sectores de investimento como a economia, tecnologias de informação, saúde e outros, a dependência militar em relação aos EUA, a crescente pressão e intervenção da opinião pública, mais ou menos qualificada, alertando para o desgaste e malefícios da guerra, são alguns dos pontos que balizam a posição e poder do Estado. De modo subsequente, e digamos, em sentido inverso, a confrontação com um mundo cada vez mais incerto e perigoso. Conforme refere o Professor Adriano Moreira, “O quadro da pacificação mundial não é animador, acontecendo que se diminuíram estatisticamente os conflitos armados entre Estados, é todavia crescente o número de conflitos dentro dos Estados. Esta observação será talvez mais exacta se tivermos em conta que decorre da velha classificação de conflitos armados, hoje de duvidosa utilidade porque todos os conflitos internos conhecidos têm repercussões ou são efeito, ao menos parcial, de circunstâncias internacionais”.[4] A esta conjuntura, e para agravar o cenário, devem acrescentar-se as chamadas novas ameaças, das quais destacaria o terrorismo e criminalidade organizada transnacionais.

A fim de retomarmos o assunto da segurança estrutural, importa lembrar que um dos fins do estado é garantir o bem-estar das populações. Mas o bem-estar das populações depende, em larga medida, de um conjunto de factores societários que vão para além da esfera militar ou das forças de segurança interna, embora com elas se possam relacionar de modo mais ou menos directo. Seguindo a linha de pensamento que temos vindo a traçar, a emergência da vida cívica e privada, tanto através da participação cada vez mais activa da opinião pública, como da criação e desenvolvimento de empresas multinacionais e organizações não governamentais, assim como a crescente complexidade das relações internacionais, condicionam o exercício da estratégia governativa em termos de defesa e segurança, exigindo deste uma estratégia integral que contemple outros actores e campos de intervenção. Neste contexto, afigura-se ainda menos exacto separar segurança militar ( ameaças externas ) da segurança interna e da segurança ( protecção ) civil. Estas áreas sobrepõem-se e tudo deve ser concebido, estruturado e planeado de modo integrado ao nível da estratégia total, desde o topo do Estado, prosseguindo para o planeamento e execução, ao nível da autarquia, da empresa, da escola, do hospital, das estradas, dos portos e aeroportos, complexos desportivos, até se chegar ao cidadão[5].

Considerando a defesa externa e segurança interna de um Estado como uma campo de actuação interligado e interdependente por parte das forças directamente responsáveis, quer militares, quer de segurança pública, existe, todo um potencial estratégico que é definido como “o conjunto das forças materiais e morais de qualquer natureza que um Estado ou coligação pode utilizar na sua acção estratégica”[6]
No que se refere à segurança e defesa de um Estado a Estratégia a adoptar deve ser então uma estratégia integrada, que contemple diversas estratégias especializadas, correspondendo a cada uma delas um domínio particular de actuação.

A defesa e segurança de uma Estado definem-se por uma acção global e permanente, não se restringindo a alturas de guerra ou conflito. A estratégia integrada deve contemplar um conjunto de outras estratégias, segundo o General José Lopes Alves, denominadas estratégias gerais, que por sua vez, ainda se podem dividir em estratégias particulares relativas a cada sector. [7] Dentro das estratégias gerais podemos incluir a estratégia económica, diplomática, militar e outras, onde poderemos acrescentar a estratégia psicológica e mediática (projecção da imagem do País ). Dentro da estratégia económica inclui-se a Estratégia de produção, financeira de comércio externo. No âmbito da estratégia diplomática, incluem-se as relações internacionais, alianças e outras. Na militar, a terrestre, naval e aeroespacial. A psicológica e mediática, pode englobar acções de propaganda, contra-propaganda, assim como tudo aquilo que possa veicular uma imagem positiva do País, e eventualmente denegrir a imagem de um Estado adversário. Estas acções podem passar por iniciativas diplomáticas até à exportação de filmes, revistas, e outras obras artísticas. A estratégia política será aquela que subjaz às restantes num processo decisório, enunciando quais as estratégias mais adequadas para cada momento.


P.A.



[1] Leandro, José Eduardo Garcia, “ O Estado, o cidadão e a segurança. Novas soluções para um novo paradigma”, Ver. Segurança e Defesa, Fev 2007, Pág 12
[2] Santos, Loureiro dos, “Segurança e Defesa na Viragem do Milénio” – Publicações Europa América, Set.2001, pág. 112
[3] Id. Pág. 113
[4] Moreira, Adriano, “Teoria das Relações Internacionais” – 5ª Edição, Amedina, Pág. 444
[5] Leandro, Garcia, “ O Estado, o cidadão e a segurança. Novas soluções para um novo paradigma” – revista Segurança e Defesa, Fev. 2007.
[6] Alves, José Lopes, “Estratégia – Panorama Geral da sua Teoria”, Dom Quixote, 1999, pág. 131.
[7] Ibid, pág. 118-119