quarta-feira, 17 de março de 2010

Não sabia que eras tu, amor...


Hoje escrevo sobre ti, para ti, de ti, sobre a mulher como elemento natural e fonte de todos os prazeres, mas também de algumas desilusões, sejamos realistas, que pela necessidade de justificar todas as insuficiências do homem, por ele esperou decidida a faze-lo pensar na importância da mulher, o único elemento capaz de o fazer embarcar na mais profunda aventura da alma. O único elemento capaz de ser e não ser em simultâneo, não sendo defeito, mas riqueza. O único elemento capaz de felicidade extrema mas também de angustias desmedidas. O único elemento capaz de dar sentido ou de o tirar a tudo num ápice. Na verdade tenho-me sentido só, só mas acompanhado pelas insuficiências de um homem perante o majestoso palácio feminino, sempre desconhecido, sempre fantástico. Pergunto-te qual o sentido da cidade? Quando esmoreces na terra de ninguém. Qual o prazer da refeição? Quando no silêncio mecânico dos gestos te absorves de interrogações. Qual a novidade da viagem? Quando a incerteza te contamina o sonho de prudências retardadas. Qual a necessidade de cumprir deveres? Quando a razão não te reconhece nesta lógica de responsabilidade. Qual a força do amor? Quando por fim te afastas pela luz baça da manhã. Qual a importância da casa? Quando moramos separados por uma porta intrusa. Qual a razão das palavras? Quando o seu significado gasto e redundante te emudece a esperança. Qual a felicidade do encontro? Quando tão próximo te perdes sem explicações ou intimidades. Qual o sentido de tudo isto? Quando por fim, talvez nunca te tenha reconhecido em mim, nunca te tenha descoberto enquanto calma passeavas segura até ao fim do pontão. Amor, não sabia que merecias o mar como a certeza das formas mais puras encarnadas na beleza abandonada dos teus seios. Que merecias o ar como a explanação da corporeidade delirante e o sopro da alma reservada. Que merecias dádivas sucessivas de generosidade na ânsia de existires. Amor não sabia que eras tu…

Nunca percebi que crescíamos juntos e incompletos para no fim esperarmos alguns frutos, breves que fossem, mas que dariam para justificar esta empreitada desmedida e imprevisível. Nunca levei a sério a relação com os outros, descurei responsabilidades, afectos, sentimentos, tudo nunca passou de um acto informal, fora de horas, meio renitente por trás de um olhar distante e um corpo inquieto. Tudo nunca passou de uma fantasia, por vezes cruel e gratuita, a cobrar-me restos de felicidade enquanto desprovido me segurava a outro mundo, idealmente impossível. Tudo nunca passou de uma grande encenação a resistir-me à compreensão, a acenar-me da outra margem num sorriso por decifrar e uma quietude expectante. Não entendi as motivações que te acalentavam os dias repetidos, onde estavam? Escondeste-as? Eram só tuas, talvez, segredos não partilháveis à luz do dia, reservas de infância tão delicadas como o primeiro amor, expectativas e outros tantos ideias que tentavas encaixar a propósito de nós, no silêncio paciente e mordaz de quem prepara uma revolução. Não detectei qualquer movimentação suspeita, nem sequer imaginei que pudesse haver objectivo para tal. Não sabia que eras tu, amor. Terei sido eu a esconder-me? Por vezes a espreitar-te para observar os teus passos finitos, e aparecer depois no teu caminho já sem sentido de nos vermos no mesmo jogo que só agora entendi as regras. Não sei. És uma dádiva intemporal como a nossa lembrança risonha. Uma presença única, sedimentada numa grande causa oculta, real e intransmissível, que percorre uma essência de todo desconhecida, de que vamos dando conta pela intencionalidade dos gestos. Agora já não sei. És um pálido desejo, amorfo, desgraçado, uma natureza que subsiste no clamor dos espaços infinitos como um papel amarfanhado, um invólucro que se perde no vento sem tino ou emoção.

Na verdade nunca tenho muito tempo disponível e o que sobra deixa sempre a sensação que não consigo geri-lo da melhor maneira. Existe sempre tempo para ti, mesmo que não estejas presente, preenches-me toda a minha ausência, a minha angústia, o vazio do olhar que não acompanha o ritmo alucinante de outro tempo que escapa por entre a imposição estúpida dos deveres e as desatenções mergulhadas em caprichos pessoais. É o tempo dos que ficam, dos que partem, dos que adoecem, dos que morrem, tudo num só tempo que se apaga do quadro sem aviso prévio. Desculpa, hoje estou demasiadamente sensível, chego a pensar que a morte pode ser um facto tranquilo, consolador, uma fuga eterna para lá deste percurso penoso que não garante senão o avolumar lento de outro fim. Sabes que uma das razões porque gosto muito de ti é a lucidez e a profundidade com que sentes aquilo que digo. Chego a pensar que o tempo que me resta será dispendido a escrever para ti, é tudo que te posso dar, palavras filtradas do sangue por sentimentos infindáveis, frases interpostas em dois rostos que partilham a certeza de se entenderem no silêncio. Hoje sinto-me assim, um cão abandonado que estanca o focinho a cada passo para procurar algo que o conforte. Para mim os animais são todos cães, penso sempre em cães para me ajudar a compreender o que se passa no fundo de nós. “Cão como nós”, um livro muito giro de Manuel Alegre. “Amor cão”, belo filme. A balada da praia dos cães, não li, é pena, ou seja, é osso. Até me apetece chorar, será esta, porventura, a única vantagem que temos sobre os cães, verter lágrimas que desmascaram o nosso vazio. Não sabia que eras tu amor…


P.A.