“As palavras de cada um só se tornam palavras de todos quando perdem a sua intenção, ao degradarem-se progressivamente, como uma moeda nova e brilhante que escurece após ser posta em circulação. Em vez de coincidir com um valor, a palavra não é mais do que a etiqueta”.
Georges Gusdorf “A Palavra”
Disse que antes das palavras estamos nós que também somos uma linguagem permanente que se move com excepção, penso que assim é na nossa condição de existirmos na presença intransponível de um corpo único, na consumação de formas radicadas numa essência orientada pela disponibilidade vital. E estas palavras que escrevo? Que ouço? Que invoco e remexo na arca mental como um esqueleto onde se tentam fixar os músculos do pensamento? E estas palavras e outras e muitas que se propagam para agarrar um sentido atendível por quem as escuta? Se é que alguém verdadeiramente escuta, se é que alguém embarca na real intenção de significar do outro, se é que alguém puramente sente as palavras alheias sem que tal apresse o acto de falar também, ou, sem falar, o acto de consumar nas palavras do outro o próprio silêncio. Quando nos falam que mais ouvimos para além de alguns sons articulados que suscitam imagens em que revemos ou procuramos a nossa posição num palco comum? E estas palavras e outras e muitas que se jogam e arriscam nas relações do mundo, qual o seu sentido na fórmula reduzida de um mero código comunicativo, que converte idiossincrasias em convenções para assegurar a sobrevivência em sociedade?
São as palavras das coisas que definem o reencontro permanente com o real, fixando-o num eixo de nomes conhecidos pelo qual nos inserimos no mundo. Nomes que começam com a necessidade de definir a inconstância das aparências, atribuindo-lhes uma natureza objectiva e duradoura, manipulada para além da situação concreta, invocando a matéria ou acção nominais em qualquer espaço e tempo, sempre que o real imponha uma decifração a prazo, capaz de nos guiar em abstracção. Nomes que são a visão transformadora que temos do mundo por impulsos intencionais num esforço de adequação. São as palavras das coisas que trazem estas à existência, cobrindo-as de um significado próprio que as tiram do anonimato e as fixam numa rede de pensamento intemporal, actualizada pela memória a cada momento identificável. Estamos entendidos, falamos a mesma linguagem, partilhamos palavras que circulam como moeda de troca entre impressões, desejos, afectações, entre realidades substantiváveis que se alinham em catálogos estandardizados.
O que sobre então de cada um de nós? De seres autênticos e residuais na grande esfera comunicacional? De seres cuja linguagem se interpõe com frequência entre o real e o possível, entre o estabelecido e a origem da subjectividade, entre o conhecido e o indizível. Escutemos as crianças e os loucos para penetrarmos no poder criador das palavras, na carga expressiva que trespassa as barreiras do acordo nominal, para se expandir em novos campos de sentido. O que sobra de cada um de nós? De seres que a dado momento lutam na interioridade original e intransmissível contra os muros da linguagem imposta, a que não pertencem de todo porque já lhes foi dada no vício da história. O que sobra de cada um de nós? De seres que substituem muito bem o discurso social nas horas em que recolhem a casa e perguntam, afinal porque é que acabamos sempre por sair?
P.A.
Georges Gusdorf “A Palavra”
Disse que antes das palavras estamos nós que também somos uma linguagem permanente que se move com excepção, penso que assim é na nossa condição de existirmos na presença intransponível de um corpo único, na consumação de formas radicadas numa essência orientada pela disponibilidade vital. E estas palavras que escrevo? Que ouço? Que invoco e remexo na arca mental como um esqueleto onde se tentam fixar os músculos do pensamento? E estas palavras e outras e muitas que se propagam para agarrar um sentido atendível por quem as escuta? Se é que alguém verdadeiramente escuta, se é que alguém embarca na real intenção de significar do outro, se é que alguém puramente sente as palavras alheias sem que tal apresse o acto de falar também, ou, sem falar, o acto de consumar nas palavras do outro o próprio silêncio. Quando nos falam que mais ouvimos para além de alguns sons articulados que suscitam imagens em que revemos ou procuramos a nossa posição num palco comum? E estas palavras e outras e muitas que se jogam e arriscam nas relações do mundo, qual o seu sentido na fórmula reduzida de um mero código comunicativo, que converte idiossincrasias em convenções para assegurar a sobrevivência em sociedade?
São as palavras das coisas que definem o reencontro permanente com o real, fixando-o num eixo de nomes conhecidos pelo qual nos inserimos no mundo. Nomes que começam com a necessidade de definir a inconstância das aparências, atribuindo-lhes uma natureza objectiva e duradoura, manipulada para além da situação concreta, invocando a matéria ou acção nominais em qualquer espaço e tempo, sempre que o real imponha uma decifração a prazo, capaz de nos guiar em abstracção. Nomes que são a visão transformadora que temos do mundo por impulsos intencionais num esforço de adequação. São as palavras das coisas que trazem estas à existência, cobrindo-as de um significado próprio que as tiram do anonimato e as fixam numa rede de pensamento intemporal, actualizada pela memória a cada momento identificável. Estamos entendidos, falamos a mesma linguagem, partilhamos palavras que circulam como moeda de troca entre impressões, desejos, afectações, entre realidades substantiváveis que se alinham em catálogos estandardizados.
O que sobre então de cada um de nós? De seres autênticos e residuais na grande esfera comunicacional? De seres cuja linguagem se interpõe com frequência entre o real e o possível, entre o estabelecido e a origem da subjectividade, entre o conhecido e o indizível. Escutemos as crianças e os loucos para penetrarmos no poder criador das palavras, na carga expressiva que trespassa as barreiras do acordo nominal, para se expandir em novos campos de sentido. O que sobra de cada um de nós? De seres que a dado momento lutam na interioridade original e intransmissível contra os muros da linguagem imposta, a que não pertencem de todo porque já lhes foi dada no vício da história. O que sobra de cada um de nós? De seres que substituem muito bem o discurso social nas horas em que recolhem a casa e perguntam, afinal porque é que acabamos sempre por sair?
P.A.
2 comentários:
O que sobra de nós quando nos voltamos para dentro?... às vezes nada, pelo menos nada que interesse à maioria.
Não te sentes, muitas vezes, quase sempre marginal? a utilizar teatralmente as palavras para conseguires sobreviver?
Paulo
As tuas fotos são espetaculares! CAPTAS genialmente, quer com a máquina fotográfica, quer com as palavras, frases e textos que escreves.
Parabéns
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