quarta-feira, 7 de maio de 2008

Antes das Palavras ( Parte II )


“As palavras de cada um só se tornam palavras de todos quando perdem a sua intenção, ao degradarem-se progressivamente, como uma moeda nova e brilhante que escurece após ser posta em circulação. Em vez de coincidir com um valor, a palavra não é mais do que a etiqueta”.

Georges Gusdorf “A Palavra”

Disse que antes das palavras estamos nós que também somos uma linguagem permanente que se move com excepção, penso que assim é na nossa condição de existirmos na presença intransponível de um corpo único, na consumação de formas radicadas numa essência orientada pela disponibilidade vital. E estas palavras que escrevo? Que ouço? Que invoco e remexo na arca mental como um esqueleto onde se tentam fixar os músculos do pensamento? E estas palavras e outras e muitas que se propagam para agarrar um sentido atendível por quem as escuta? Se é que alguém verdadeiramente escuta, se é que alguém embarca na real intenção de significar do outro, se é que alguém puramente sente as palavras alheias sem que tal apresse o acto de falar também, ou, sem falar, o acto de consumar nas palavras do outro o próprio silêncio. Quando nos falam que mais ouvimos para além de alguns sons articulados que suscitam imagens em que revemos ou procuramos a nossa posição num palco comum? E estas palavras e outras e muitas que se jogam e arriscam nas relações do mundo, qual o seu sentido na fórmula reduzida de um mero código comunicativo, que converte idiossincrasias em convenções para assegurar a sobrevivência em sociedade?

São as palavras das coisas que definem o reencontro permanente com o real, fixando-o num eixo de nomes conhecidos pelo qual nos inserimos no mundo. Nomes que começam com a necessidade de definir a inconstância das aparências, atribuindo-lhes uma natureza objectiva e duradoura, manipulada para além da situação concreta, invocando a matéria ou acção nominais em qualquer espaço e tempo, sempre que o real imponha uma decifração a prazo, capaz de nos guiar em abstracção. Nomes que são a visão transformadora que temos do mundo por impulsos intencionais num esforço de adequação. São as palavras das coisas que trazem estas à existência, cobrindo-as de um significado próprio que as tiram do anonimato e as fixam numa rede de pensamento intemporal, actualizada pela memória a cada momento identificável. Estamos entendidos, falamos a mesma linguagem, partilhamos palavras que circulam como moeda de troca entre impressões, desejos, afectações, entre realidades substantiváveis que se alinham em catálogos estandardizados.

O que sobre então de cada um de nós? De seres autênticos e residuais na grande esfera comunicacional? De seres cuja linguagem se interpõe com frequência entre o real e o possível, entre o estabelecido e a origem da subjectividade, entre o conhecido e o indizível. Escutemos as crianças e os loucos para penetrarmos no poder criador das palavras, na carga expressiva que trespassa as barreiras do acordo nominal, para se expandir em novos campos de sentido. O que sobra de cada um de nós? De seres que a dado momento lutam na interioridade original e intransmissível contra os muros da linguagem imposta, a que não pertencem de todo porque já lhes foi dada no vício da história. O que sobra de cada um de nós? De seres que substituem muito bem o discurso social nas horas em que recolhem a casa e perguntam, afinal porque é que acabamos sempre por sair?

P.A.

2 comentários:

Anónimo disse...

O que sobra de nós quando nos voltamos para dentro?... às vezes nada, pelo menos nada que interesse à maioria.
Não te sentes, muitas vezes, quase sempre marginal? a utilizar teatralmente as palavras para conseguires sobreviver?

Anónimo disse...

Paulo
As tuas fotos são espetaculares! CAPTAS genialmente, quer com a máquina fotográfica, quer com as palavras, frases e textos que escreves.
Parabéns