Em cada visita que faço ao lar mais me convenço que a vida são restos. - Onde é que você vai? Venha cá menina, está na hora de irmos para cima. Para o quarto não para o céu, bem poderia sê-lo, como quem diz, em nome da terra que já cumpriu o que lhe era pedido. A cadeira do lado vazia, ainda a semana passada ocupada insistentemente por um corpo sedimentado entre braços, removido entretanto para outro mundo porque este deixou de o alimentar. Qual daqueles olhares perplexos será o próximo a sumir-se sem aviso, deixando mais uma cadeira vazia e uma memória colhida para a ocasião que nos confirma a ordem de chegada e de partida. O silêncio da sala convida-me a sentar por momentos, sei que não é um convite mas a razão a implorar-me para não passar ao lado, para não evitar a nossa causa final, não fugir infantilmente à pele negando o que me é próprio. Os velhos desligados, espalhados pela sala em estilhaços consumidos pelo tempo programado. Uma vida honesta, correcta, sem excessos, rectilínea, o fio esticado sem nós e agora, agora no fim tudo emaranhado dos pés à cabeça, aos tropeções, num corpo curvado em ponto de interrogação sobre o que ficou. Os velhos indiferentes a mim, com excepção de um que se agarrou à minha presença com olhar fixo e ligeiro sorriso. Olho-o sem olhar, isto é, olho-o para dentro, dele e de mim, as impressões exteriores já não interessam nesta fase do campeonato, são resíduos redundantes que deixaram de embaraçar. Ali permanecemos no conforto de duas imagens por decifrar. O seu interior como que para mim uma obra sapiente a acenar-me tranquilamente do outro lado da margem, a minha figura como que para ele uma pálida recordação por encaixar. Ali ficámos, cada um alheado no interior do outro. De um lado a máquina cansada que assiste à grande paciência do mundo, do outro, uma peça solta que por instantes caiu sem propósito. Um espelho quebrado pela voz da auxiliar - Meus queridos vamos para cima! Para onde?
P.A.