sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Infância sem nome


A infância desfez-se aos três anos com a separação dos pais. Para um lado ficou o álcool atrofiado numa razão de ser, entre murmúrios, raivas e desconfianças, que vinham já de outras gerações perseguidas por enclaves de miséria, aborrecida entre tapumes e ralos fétidos. Para outro lado, um rosto mórbido de mulher maltratada, agitada pelos filhos pequenos que em redor seduzem os outros a partilhar uma grande incompreensão. Não deveria ter sido assim em comparação com os nossos, aqueles que vemos crescer de perto, ou mesmo de longe parecendo perto, por etapas assimiladas aos solavancos, entre o segredo do quarto e gestos efusivos de mal-estar, mas sempre com a noção de que um ser também se vai construindo com referência ao outro, em lugares e tempos precisos, por meio de interacções materializadas num corpo consciente. A infância desfez-se aos três anos com separação dos pais. Deveria ter sido o desinteresse feliz dos afectos, uma vinculação segura e disponível, capaz de compreender e responder ao crescimento e suas transformações. Os indivíduos da espécie humana não nascem com a capacidade de regular as suas próprias reacções emocionais, está nos livros. Precisamos de uma presença diferenciada e assídua que nos ensine a organizar os mais elementares mecanismos de resposta ao mundo, com o risco de nos remetermos a uma amálgama contida de razões sem objecto emocional, como cães abandonados à procura de quem lhes dê comida. Deveria ter sido mas não foi, cresceu depressa demais, agarrou-se onde pôde perante a enxurrada de experiências sem nome. Deveria ter sido mas não foi, passou ao largo da costa dos afectos, a sorrir ao seu próprio medo, na certeza cega de que se está num caminho incerto.

Durante o meu contacto com o Ruben despertei para os seus olhos esgotados a sumirem-se a meio da conversa, olhos a descolarem-se deste mundo para se pegarem às margens como que a lembrar o que resta de uma vida presa por arames.
- Estávamos tipo a andar na rua depois vimos um carro que estava tipo estacionado, um CIVIC, daqueles redondos atrás sabe? Isso… Pegámos e fomos dar uma volta tipo só passear está a ver? Não estragámos nada. De madrugada éramos os únicos na rua, oh!, fomos apanhados.

A adolescência deveria ter sido clamorosa, a gravitar à volta das raparigas, gestos excessivos a irromper por entre roupas desmesuradas, como hastes recém plantadas a intentar contra todas as intempéries. A adolescência deveria ter sido tudo menos um corpo fechado de preocupações correntes, a sentir medo de casa, a espreitar o risco entre becos e esquinas, a provar que se é outro que não aquele que à partida foi rejeitado.
- Gosto de dar uma de playboy à porta da escola, agora só quero mulheres, tenho namorada mas só uma não está a dar. Os amigos! Os amigos! Um vive com a namorada que é menor de idade, o outro anda por aí todo burro, sempre de bike, às vezes arranja as dos outros e consegue um guito, há outro que está preso. Eu quando acabar a pena vou para Espanha, tenho lá um tio que é pescador e já me disse que o meu destino é o mar. O meu pai está em França à procura de trabalho, a minha mãe está nas limpezas, eu tenho que ficar em casa com os irmãos pequenos até ela chegar.

A adolescência deveria ter sido passada a crescer sem reservas ou, pelo menos, sem rupturas ou contradições que a atirassem para fora de casa, juntando-se a outras fugas esvaziadas de propósito, com o único impulso da mentira que na ocasião se arma de razões para encontrar alternativa. A adolescência deveria ter sido outra coisa que não dois olhos esgotados a sumirem-se a meio da conversa, como um animal a agonizar depois de cravado com vários tiros.


P.A.