domingo, 16 de janeiro de 2011

Outra rotina



Uma atmosfera suburbana, um rosto resignado a contornar esquinas, ecos de tábuas contra o solo, o vento sem regras a remover desperdícios deixados nos passeios por incúria ditada desde o berço, gente pendente em portas e janelas sem assunto ou motivo porque a vida decide-se à tona dos deveres e compromissos, é feita de acidentes e azares do destino, ocorre sem paradeiro por entre intenções averbadas à força das circunstâncias. Estaciono o carro ao acaso junto do contentor do lixo grafitado, a ocupar parte da estrada, também ele desalinhado da vida com rodas a apontar para todas as direcções. Aí assaltam-me todas as ideias de um bairro social. Imagens e sons que se me vão mostrando numa película involuntária e sobreposta, desenrolada a partir do inconsciente, sem esforço, ao sabor do vento, do odor a cannabis e dejectos caninos, dos berros dos miúdos e batida do funaná. É dia de semana mas poderia ser fim-de-semana porque a ocupação útil do tempo decorre do desperdício das horas. A manhã começou irritada com o trânsito, a lentidão do miúdo, o corte nos salários, o novo acordo ortográfico, a rotina que me espera, paciente, a observar-me encostada ao muro da estrada a confirmar a fatalidade dos dias. A rotina não dá tréguas, discreta mas sempre a seguir-nos os passos à distância, umas vezes de aspecto carrancudo, outras vezes com um leve sorriso nos lábios como que a dizer-nos; aguenta-te que não há alternativa. Mas de repente a rotina minimiza-se na consciência, dentro do carro estacionado junto ao contentor do lixo no bairro social. Agora sou eu a observa-la, não a mesma que há poucas horas me tolhia o corpo. Esta rotina não quer saber da outra rotina, desconfia dela, segue pela margem enfiada num capuz, reconhece-a como se reconhece outra religião mas não a olha nos olhos, baixa a cabeça e recolhe-se em murmúrios de um vão de escada. Esta rotina adoece no bafio de uma cama num quarto escuro, resguarda-se do álcool e maus-tratos do marido de quem fugiu em desespero com dois filhos pequenos. E mais não diz para esconder segredos que não podem ser falados senão por código. Nunca se sabe e nunca se esquece. Esta rotina vive de papéis amarfanhados sobre o rendimento social de inserção e baixas médicas indeterminadas, exibidos aos técnicos sociais na mesa de cozinha, com a outra mão a afastar a peça de louça para o canto. Esta rotina deambula pelo bairro sem trabalho, os braços cruzam-se numa esquina à espera que alguém pergunte se queres ganhar dinheiro, como? pouco importa. Esta rotina de más companhias desdobra-se em visitas solidárias à prisão, à boleia de sacos de plástico e metade do dinheiro para a gasolina do carro do vizinho, de cujo filho nem se sabe porque lá está. Esta rotina tem um primo que é advogado e já safou algumas vezes, uma tia empregada num hipermercado que dá bons conselhos, uma mãe que tudo sofre e não desiste. Esta rotina por vezes assemelha-se à outra, aquela que mora ali mesmo ao lado, que há poucas horas me empurrava para fora de casa e me obrigava a enfrentar a vida disposta em peças de louça ao canto da mesa, enganadoras, descoloradas do seu sentido original, pirosas, desleixadas, desprezíveis. Esta rotina é mais livre e irresponsável, deita-se tarde e acorda atónita a fixar o vazio branco ao fundo da parede. Esta rotina conseguirá um pedaço de terra como as outras, uma campa ou uma lápide talvez, flores com certeza, não se podem negar a quem nunca falou e nunca esqueceu. Acho que agora estão a preferir ir para o forno, desembaraçam-se das cinzas e pronto, voltamos à rotina.

P.A.