Há momentos em que tudo nos ocorre na mente, em simultâneo, numa espécie de catarse involuntária como uma manta de retalhos, tão pessoal quanto intransmissível, uma experiência de imagens configurada pelo sujeito que as vive sem limites. Eis o corpo numa singularidade absoluta e interna, apenas preso ao essencial por fora. Uma escada sem começo nem fim pelos arrumos da memória. É deste modo que o som do violoncelo emerge com gravidade, arrancado das entranhas adormecidas ao longo do tempo, disposto a recordar, sem pressas, entre a resignação e a esperança.
– Cuida de ti meu filho, olha que está hoje um na igreja com 47 anos, foi qualquer coisa de coração, conheço bem a mãe mas não tenho coragem de lá ir.
- Oh mãe, mas…o som do violoncelo, ao fim da tarde, a imiscuir-se por entre o voo rasante dos pombos e uma chávena de café quente.
- Os exames estão bem, contava-me a arguida. - Estão bem como? Se já não tenho um peito e tenho caroços no outro. Nem me tocou.
– Oh Doutora! Não tenho piolhos nem pulgas, pode tocar-me…bruxaria! Bruxa é ela, pensei eu sem lhe dizer. Na sala de espera mais um arguido, frio de sentimentos mas cordial. Até os criminosos mais criminosos têm uma certa ética, como o som do violoncelo a aprofundar o ser na fronteira entre a vida e a falta dela que é preciso respeitar no limite.
– Fui preso muito cedo, ainda não consigo enfrentar a sociedade. A prisão atrofiou-me, também me fiz um homem, senhor, sabe, um homem.
– Sim, disse eu, a pensar que talvez não soubesse coisa alguma. A pensar que aos quatro anos passava as tardes à janela na rua do Arco do Carvalhão, ao colo da minha avó, a ver os autocarros passarem. A felicidade contava-se lá em baixo à passagem dos verdes de dois andares, a uma distância da janela que me fazia sentir o rei da Avenida. Um dia, a meio da noite, os autocarros pararam para a minha bisavó ser arrastada para uma ambulância sem explicação. Não imaginava que os mais velhos pudessem cair sem forças numa encenação muda e sombria, para mais não voltarem, a meio da noite, de uma carrinha branca de sirene intermitente e silenciosa.
Onde me leva a escada? Ao Jorge, na altura do Liceu, conhecido pelo sapo. Quase não falava, esfregava as mãos e mostrava um leve sorriso sarcástico. Disse-lhe que não estava a perceber nada da aula de físico-química.
– Conheces Camel? Perguntou-me antes de tudo. Pensei que já conhecia o suficiente para me desembaraçar nestes primeiros encontros, mas, Camel?, tabaco?
– Conheces o álbum “Mirage” ?, perguntou-me enquanto enterrava a cabeça na camisola de lã vermelha imune a todas as ameaças, até às que se propagavam pela voz da professora ao final da tarde, já noite, alimentadas pelas lâmpadas florescentes de tom amarelado como o cansaço de Inverno. Abanei a cabeça na minha timidez ansiosa.
- Percebes isto? Insisti eu. Mas ele mais não disse. Ficou a olhar-me como um verdadeiro batráquio à espera de uma eventual presa, de sorriso sarcástico, cabeça enterrada nos ombros, agora a esfregar as mãos veementemente. Onde estás Jorge? Talvez escondido no mato dos anos 80, agora com as mãos atrás das costas a deixar escapar, de quando em vez, um leve sorriso sarcástico. Acabei de recordar uma vez mais Camel, o álbum “Mirage”, não me esqueci de ti, não precisavas de dizer mais nada, o álbum fala por si, o que é que interessava a matéria de físico-química? O importante era saber se eu, colega forçado de carteira, recém-chegado por motivos de transferência administrativa, conhecia Camel ou era como os outros camelos.
P.A.