sexta-feira, 22 de abril de 2011

Ser e Ter (Parte II)


Devo informar que escrevi este texto há quase duas décadas, como diria um amigo, “Quando o mundo ainda era feliz!” Não quero com isto dizer que consegui antever sabiamente qualquer conjectura de crise global mas, tão somente dizer que, desde há muito, sinto que a nossa razão de ser não se pode reduzir à procura incessante de ter.

E agora? Depois de restarem poucas dúvidas de que criámos uma sociedade do ter, como enfrentaremos a possibilidade de termos cada vez menos? Alheámo-nos do ser para vivermos naquilo que os outros nos vêem viver pelo ter. Tivemos sentido pelas coisas que exibimos prostradas nos olhares dos outros em ensaios cinéfilos e quotidianos. O ter foi deixando de ser, afastando-se cada vez mais da sua natureza. Os bens materiais circundaram-nos facilmente provocando necessidades artificiais que prolongaram a nossa insuficiência de ser. Pouco ou nada conhecemos deles senão a sua presença confortável e retribuída, que usámos e abusámos, decifrada no prazer mediado e escoado de nós como uma secreção lenta e oculta que anseia um desejo possuído. Nada nos pertenceu verdadeiramente. Vestimos, andámos, habitámos matérias-primas de todos os cantos do mundo, trabalhadas à medida do nosso prazer e compensação. Alheámo-nos da origem das coisas, das vidas gastas em tempo manufacturado ou programado em máquinas estranhas que só por acaso observámos. Exibimos bens matérias raros e de valor quantitativo elevado para compensarmos a ameaça do mundo que nunca compreendemos, a ameaça do outro, da solidão, do insucesso, da morte. Ter não é poder mas iludir a insuficiência de se ser. Admito que o ter, por vezes, seja sermos na relação com o mundo quando criamos qualquer coisa. Também o nosso corpo é ser pelo ter que lhe vem de fora ao restaurá-lo com alimentos, luz ou água, da entropia natural que culminará na morte. Aí o ter mistura-se com o ser porque lhe é próprio, é um ter sendo. Deste modo, o ter autêntico é um ter primordial, próprio de quem lhe dissecou as causas e origens. Para sermos o relógio que temos é preciso desmontar-lhe a causa e a origem e recria-lo na ignorância do tempo. Para sermos o automóvel que temos é preciso sabermos construi-lo pelas leis da física e da mecânica. Para sermos não bastará termos passivamente, é preciso partilharmos o esforço dos que morreram a pensar o que temos. Será por isso necessário, talvez, estarmos mais perto e reconhecidos pelo silêncio e mistério da nossa estada, porque no ser não há vida desencontrada nem caminhos perdidos. Mais atentos à singularidade e plenitude de cada coisa, sublimar a sua presença e as suas forças perscrutar. Será necessário, talvez, encostar a bicicleta e respirar pela abertura do ser, que embora escura e incerta, é mais verdadeira.

P.A.