“- A tua mãe nunca ouviu este som.
- Que som?
- O som do mar. Quando eu era pequeno havia uma estação de rádio que transmitia sons do mar, ondas gigantes. Aqueles sons assustavam-me.
- Porque o assustavam?
- O fundo do mar assustava-me, com todas as coisas que vivem lá em baixo…”
Do filme “Biutiful”, de Alejandro González Iñárritu
Não é do mar que trata o filme, a não ser do seu lado mórbido, quando pequenas vagas estendem clandestinamente os corpos de trabalhadores chineses ao longo da praia. Famílias inteiras anexadas à vida num armazém de uma fábrica, à espera da morte silenciosa que, durante uma noite, o gás dos aquecimentos manhosos viria a firmar na palidez dos rostos com olhos serrados e boca semiaberta. Não é do mar que trata o filme, a não ser do mar intersticial que escorre moribundo pelos bairros pobres da cidade, engrossando modos enviesados de sobrevivência, tão comuns em aglomerados de pessoas. Não é do mar que trata o filme, a não ser do mar incontornável de emoções, cujo grau de salinidade, se adensa regressivamente até ao caos sentimental. Não é do mar que trata o filme, a não ser de um mar de vida que se esconde nas margens do esquecimento, atolado nas razões do vício, numa sofreguidão natural de amargura e restos. Não é do mar que trata o filme, a não ser de um mar de intimidade que se aprofunda em cada cena, resgatando-nos do medo constante de sermos pessoas e enfrentarmos a nossa causa mais sombria.
Não é do mar que trata o filme, mas é do mar que poderá vir a força necessária à expiração de toda a ingratidão e infâmia. É do mar que poderá vir a explicação final e inquestionável sobre a condição humana, até à última gota, num acto de derradeira regeneração a que se reservam as almas renegadas. É, por fim, do mar que fica a luz que nos conduz à esperança do eterno repouso.
P.A.