“O próprio facto de sermos prova tudo” – Fernando Pessoa
Aquando da euforia nostálgica das doze badaladas, dos apertos e abraços produzidos no momento e mais palavras turvas de engano e esquecimento, retenham esta frase, comam-na nos desejos das passas, enrolem-na à cabeça e morram por ela se for preciso. Parece ser o único facto que nos resta, uma determinação irredutível sobre os fundamentos da existência que atesta a nossa condição em qualquer parte do mundo, perante qualquer juiz de ocasião. Quero dizer que li Fernando Pessoa quando tinha 19 anos, sem nada perceber de Fernando Pessoa, sem nada perceber de literatura ou mesmo de finanças e com uma biblioteca pessoal quase reduzida exclusivamente aos seus livros. Li Fernando Pessoa num tempo único, de uma só vez, sem pausas, por vezes à pressa, nos autocarros, nos comboios, esquecido dentro do próprio carro abafado por sentimentos que se consumiam em catadupa como chamas de fósforos. Li-o obsessivamente enquanto me descobria aos tropeções por versos e prosas flamejantes que me trespassavam sem aviso, arrastando-me depois para um território usurpado no hábito de ser, antecipando uma razão maior que iria inquietar-me para sempre com a essência das coisas. Não, não sou crítico de Fernando Pessoa, talvez queira continuar a perceber coisa nenhuma sobre Fernando Pessoa, como disse, li todos os seus livros quanto tinha 19 anos, à mesa, pelos cantos, ora como um adolescente irrequieto no seu próprio corpo, ora prostrado no silêncio antigo e pesado da noite, em que os olhos vermelhos ardentes chegaram a encovar-se de lágrimas como um velho ancorado no seu passado. Não, não sou especialista em Fernando Pessoa, se querem saber, nunca mais regressei à sua obra, ali ficou alinhada numa prateleira da memória a que ainda não consegui aceder com receio de estragar a inquietação dos 19 anos de idade, de não resistir à tentação de a julgar no presente, armado em leitor experiente, já sem aquelas ferramentas indispensáveis à compreensão do mundo, como a ingenuidade, a inocência, a destreza mental e capacidade de espanto para entrar no reino das crianças, a fluidez patética do espírito imberbe, ou a noção clara de que “O próprio facto de sermos prova tudo” Ali ficou, intacta, para brincar mais tarde quando tiver outro tino. Por agora chega, páginas e páginas desmontadas a custo, com violência, palavras espalhadas pelo chão, frases inteiras transportadas à socapa para a rua, para casa dos amigos, sentimentos esquecidos no tampo da cadeira para recuperar depois já em desespero quando queria mostrar a razão de ser. Por agora chega, fica para mais tarde quando souber o que custa a vida, quando der valor às coisas. Talvez seja por isso que nunca regressei à sua obra, não sei o que custa a vida e o valor das coisas é relativo, continuo a ser uma criança inquieta com medo de estragar o brinquedo que os pais me deram, neste caso, que o poeta me deu.
P.A.
Aquando da euforia nostálgica das doze badaladas, dos apertos e abraços produzidos no momento e mais palavras turvas de engano e esquecimento, retenham esta frase, comam-na nos desejos das passas, enrolem-na à cabeça e morram por ela se for preciso. Parece ser o único facto que nos resta, uma determinação irredutível sobre os fundamentos da existência que atesta a nossa condição em qualquer parte do mundo, perante qualquer juiz de ocasião. Quero dizer que li Fernando Pessoa quando tinha 19 anos, sem nada perceber de Fernando Pessoa, sem nada perceber de literatura ou mesmo de finanças e com uma biblioteca pessoal quase reduzida exclusivamente aos seus livros. Li Fernando Pessoa num tempo único, de uma só vez, sem pausas, por vezes à pressa, nos autocarros, nos comboios, esquecido dentro do próprio carro abafado por sentimentos que se consumiam em catadupa como chamas de fósforos. Li-o obsessivamente enquanto me descobria aos tropeções por versos e prosas flamejantes que me trespassavam sem aviso, arrastando-me depois para um território usurpado no hábito de ser, antecipando uma razão maior que iria inquietar-me para sempre com a essência das coisas. Não, não sou crítico de Fernando Pessoa, talvez queira continuar a perceber coisa nenhuma sobre Fernando Pessoa, como disse, li todos os seus livros quanto tinha 19 anos, à mesa, pelos cantos, ora como um adolescente irrequieto no seu próprio corpo, ora prostrado no silêncio antigo e pesado da noite, em que os olhos vermelhos ardentes chegaram a encovar-se de lágrimas como um velho ancorado no seu passado. Não, não sou especialista em Fernando Pessoa, se querem saber, nunca mais regressei à sua obra, ali ficou alinhada numa prateleira da memória a que ainda não consegui aceder com receio de estragar a inquietação dos 19 anos de idade, de não resistir à tentação de a julgar no presente, armado em leitor experiente, já sem aquelas ferramentas indispensáveis à compreensão do mundo, como a ingenuidade, a inocência, a destreza mental e capacidade de espanto para entrar no reino das crianças, a fluidez patética do espírito imberbe, ou a noção clara de que “O próprio facto de sermos prova tudo” Ali ficou, intacta, para brincar mais tarde quando tiver outro tino. Por agora chega, páginas e páginas desmontadas a custo, com violência, palavras espalhadas pelo chão, frases inteiras transportadas à socapa para a rua, para casa dos amigos, sentimentos esquecidos no tampo da cadeira para recuperar depois já em desespero quando queria mostrar a razão de ser. Por agora chega, fica para mais tarde quando souber o que custa a vida, quando der valor às coisas. Talvez seja por isso que nunca regressei à sua obra, não sei o que custa a vida e o valor das coisas é relativo, continuo a ser uma criança inquieta com medo de estragar o brinquedo que os pais me deram, neste caso, que o poeta me deu.
P.A.