quarta-feira, 25 de março de 2009

O tempo consultado


A compreensão da narrativa individual insere-se num esquema explicativo que, conforme nos diz Cândido da Agra “faz intervir o tempo ou história individual e colectiva, na explicação criminológica. E fê-lo intervir nos sistemas de interacção estabelecidos entre o indivíduo e as suas circunstâncias psicológicas, sociais e culturais. É às formas de vida (ou sistemas de estilos de vida) constituídas ao longo de trajectória existencial dum sujeito mergulhado e confrontado com múltiplas normatividades e seu desenrolar, que se dirige o olhar criminológico. E isso aos níveis psicológico e psicossocial: uma biopsicossociologia não causal mas processual constitui uma das principais “revoluções científicas” (nos termos de Th.S. Kuhn) da criminologia moderna”. 1

[1] Agra, Cândido da e Matos, Ana Paula “Trajectórias desviantes”, droga – crime, Estudos interdisciplinares, Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga


Há o silêncio da sala, uma espera silenciada por um barulho de fundo contínuo que vem do ar condicionado. Um consultório que isola uma longa tarde de Agosto, quase hermético, em que apenas os passos esporádicos dos pacientes sobre o soalho ressequido despertam a impressão de se estar vivo, porque mudos são os encargos do nosso fundamento como um cavar lento de causas invertidas até ao modo de ser. É um consultório do tempo, ou antes, da sucessão de acontecimentos que informam e preenchem o contínuo temporal. Antes da derradeira consulta temos tempo para recordar e antecipar os factos, melhor dizendo, para encontrar a sua significação projectada no desenrolar dos dias e dos anos entre o passado e o possível, como a árvore que lá fora se tenta enquadrar pela janela que é a nossa perspectiva limitada e sumária da realidade, dando-lhe um sentido para além do facto de ser. A consulta está atrasada, a espera pelo silêncio torna-se ensurdecedora, deixa-nos vazios de conteúdo vital, arrepanha-nos os ossos e os músculos no desconforto do nada, e assim agarramo-nos a qualquer coisa que interpele o silêncio, como uma porta que se abre sem motivo aparente. É outro paciente do tempo, entra cauteloso na sala e dobra-se numa cadeira inerte a fitar as linhas da parede nua. Quatro paredes que confinam o olhar mais distante, induzindo-o à introspecção do espaço e depois do tempo. Não tardará a agitação cansada do vazio concreto da sala, instalando-se o exercício de abstracção como desenhos imaginários no branco das paredes. Passa-se da atenção sobrevivente dos sentidos para uma viagem interna e explicativa que faz intervir o tempo ou a história individual na compreensão dos factos. E fá-lo intervir nas redes de interacção estabelecidas entre o sujeito a as suas circunstâncias psicológicas, sociais e culturais, confrontando-o com o desenrolar de múltiplas formas de vida, mais abertas ou fechadas, mas sempre subjugadas à inalienável condição de se assumir e explicitar numa trajectória única e intransmissível. A sala encheu-se de pacientes, as consultas preparam-se em cada um deles pela narrativa dos gestos e todos parecem permanecer ligados à importância do momento, mais do que o aceitarem, distendem-no na sua significação alargada a cada história pessoal. A existência conta-se normalmente por palavras gastas na preferência da nossa compreensão, desligada da importância sobre a qualidade das relações que cada indivíduo estabelece com o meio, reduzindo-se por isso a uma acção unidireccional do meio sobre o indivíduo, decorrendo muitas vezes petrificada pela defesa, cautela, orgulho e desvalor da responsabilidade do ser no mundo. Meteram-nos neste baralho, é certo, mas mais do que o aceitar e controlar à distância, é preciso realizá-lo e compreende-lo pela narrativa pessoal que é o processo existencial de um sujeito mergulhado e confrontado com múltiplas formas de vida. Atrasa-se a consulta contra a visão repetida do nu das paredes, talvez já não seja necessária porque o tempo de espera adquiriu entretanto a importância de um exame introspectivo sobre o processo de existir, fazendo intervir os acontecimentos e a procura do seu significado ao longo da trajectória existencial, acedendo ao processo de cruzamento entre as diferentes dimensões do agir humano, tanto a nível biológico como psicológico e social. Lá fora a intensidade dos sons chega-nos sem aviso e deixa-nos sem rasto, vibram por momentos num contínuo temporal que é a marca de acontecerem, a consumação de uma presença. É no tempo que os acontecimentos ressoam em significados adquiridos e se expandem num leque de possibilidades assumidas pelo sujeito que os vive. Não se trata de procurar as causas do comportamento humano mas, através da biografia, situar os acontecimentos e compreende-los numa perspectiva abrangente, que parta da combinação íntima entre valores colectivos e atitudes individuais. As causas pouco importam, diluem-se no tempo como um processo multifacetado de acontecimentos que concorrem para a emergência de determinados comportamentos. A procura das causas afasta-nos do processo de mudança pelo qual nos compreendemos como seres verdadeiramente indeterminados.

P.A.


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