quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

31 de DEZEMBRO


Pretende, o processo iniciático, inverter o processo natural que vai da vida para a morte, estabelecendo um processo cultural que vai da morte para a vida” Anes, José Manuel – “Os Jardins Iniciáticos da Quinta da Regaleira” Ésquilo, 2ª Edição, Maio de 2007

No final de cada ano guardo, invariavelmente, imagens desgarradas de um tempo incompleto, caótico, sem ocupação útil, distraído a recolher do chão pedaços de vivências, alguns quase intactos, outros meio rombos, outros ainda que não valem o esforço, sendo melhor esquece-los a um canto da memória como uma pedra vã. Suspendo, infantilmente, o curso real dos acontecimentos e resguardo-me em brincadeiras como no começo do mundo. Afasto-me do grande pensamento mitigado no tempo fecundo, e esgueiro-me pelas entranhas audaciosas fora de horas, onde se reaprende o sabor da fuga e a curiosidade da vida. Destruo dogmas, convenções e outros manequins intelectuais e, vendado, embarco na festa dos enjeitados rumo ao turbilhão dos infernos. Desço ao centro da terra, isto é, ao âmago do ser, num ritual iniciático, obrigatório, mordaz, imprescindível ao crescimento e maturação do conhecimento. Aí, contido, aprofundo-me em figuras opacas e disformes, no magma visceral e imprudente, a rodear-me de uma predestinação abrasadora. Fixo-me na escuridão do abismo solene, cravado no assombro original das coisas, insistente, perseguido sem nexo pela espessa amálgama confidente do real oculto. Aí percebo a distância que separa o segredo dissecado sobre a causa das coisas e a ilusão de uma realidade simulada, aquela que se passeia vulgarmente à superfície, que são marcos fugazes da grande agitação subterrânea. No final de cada ano temos que fazer uma viagem ao centro da terra, descer às profundezas escuras dos elementos primordiais, patinhar nos escombros da memória, remexer a lama do tempo, arrastar o corpo pelas margens recolhidas da enchente, vociferar murmúrios intersticiais, arrancados do interior das células, casar com as bruxas frias e perdidas. Depois poderemos enfrentar com amor e emoção a luz do dia no conhecimento prévio das trevas, interpretá-la sem pudor ou receios, agudizá-la à medida exacta da sua dimensão, vive-la na lucidez perene dos contrastes naturais. Bom ano.



P.A.