Por alma de quem? Por exemplo, é que eu o conheço? Será do Hotel, de onde saiu mais cedo e eu tive que roer a pena até ao osso? Que injustiça. Não matei, não violei, só porque…o que é que diz aí? É tudo mentira, escrevem o que lhes apetece só para apresentarem serviço. Ficou o cheiro da lixívia a desinfectar o chão e as paredes dos corredores sombreados pela espera quase impossível, o som do rádio que nunca vi na Barbearia, a imitar as vozes e as músicas lá de fora, onde se deixou a vida pendente para se poder ajustar a culpa aos factos. Por alma de quem? Por exemplo, é que aquele maluco se atirou do Castelo de S. Jorge cá para baixo? Ou aquele que se passeava nu na rua com uma tesoura de cortar frangos? É verdade que em algum momento somos todos vítimas das circunstâncias, mas que podemos fazer com estes tarados que insistem em renunciar ao mundo? E, já agora, com aqueles em que as conversas, os mitos e preconceitos se repetem sem fim? Uma ladainha pegada à pele que anula a resistência ao desvio. Por alma de quem? Por exemplo, é que o meu padrasto agora não trabalha e está taberneiro como os outros? Ele não bebe muito, o problema dele é que come pouco. Não faz mal a ninguém, depois de beber uns púcaros deita-se e pronto, o melhor é não dizer-lhe nada. Por alma de quem? Por exemplo, é que me conta que nasceu na linda Cidade de Lourenço Marques e que este País nunca lhe deu nada? Nasceu em berço de ouro, o pai deslocava-se de avião em África, nunca entrou num tribunal e mais tarde teve que ir visitar o filho à prisão. As lágrimas turvam-lhe a voz. Angola e África do Sul eram inesgotáveis. Há quarenta anos África do Sul esboçou a intenção de produzir garrafas de Coca-Cola com cápsulas em ouro, os Americanos tremeram. São histórias que, de súbito, se arrancam no desdobrar da entrevista e validam uma presença concreta, que vai para além da pessoa em confronto abstracto com os trâmites legais. Desabafos escorreitos que nos aproximam da compreensão abrangente e informal sobre as relações com o mundo, que se constroem nas fronteiras cinzentas entre a lei e o pulsar da vida. Por alma de quem? Por exemplo, é que levam um homem para a esquadra sem papéis, batem, insultam, depois mandam-no embora e dizem-lhe para se queixar a quem quiser? Isto revolta, a minha vontade é chegar ao pé daqueles que me acusaram e fazer-lhes o dobro, já que tenho uma vida de merda cá fora o melhor é…diga-me só uma coisa, quando é que isto termina? E por alma de quem? Por exemplo…
P.A.
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