segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Pessoas e coisas



As pessoas são muitas
As coisas são poucas
Se cada pessoa sua coisa
Muitas são as pessoas das coisas
Se muitas coisas há ainda
De que poucos são
Muitas são as pessoas
Das coisas que não são
E se muitas coisas há também
De que ninguém são
Teremos Esperança
Que com elas alguns
Não farão com que essas coisas
Mais nunca serão.


P.A.

domingo, 27 de novembro de 2011

"Cão como nós"


“Não era um cão como os outros. Era um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós”.


“Cão como nós” - Manuel Alegre

Composição

Os animais



Gosto muito de observar os animais, fazem lembrar as pessoas, pessoas com patas. A minha avozinha que tinha pernas de aranha contava-me muitas histórias de animais. Às vezes vou ao jardim zoológico vê-los enjaulados, um dia perguntaram-me; - Sabes porque que é que estão presos? Porque são muito parecidos com as pessoas, depois a confusão era grande, muitos animais nos cafés, restaurantes, supermercados, parques infantis. - Percebes? Não percebi nada.
  Uma vez pedi um macaco ao pai Natal, mandou-me um aquário com um peixe.
  - Os tigres são maus? Quero um tigre.
  Amanhã vou brincar com o cão da Susana que é parecido com ela, só falta atender o telefone. A Susana adora cobrir-se de penas e encrespar o cabelo. A minha empregada tem um penteado parece um dinossauro. Fica danada, desata aos saltos atrás de mim. O sonho dela era ser pantera.
  Quando for grande vou comprar muitos animais, coloco-os numa jaula e fico a observa-los.

P.A.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Brotar da sombra





Sentia-se em baixo, deprimido. - É bom sinal, disse-lhe. Só deprime quem enfrenta a vida, quem foge dela vive na eterna ilusão de bem-estar.
  E eu a desabafar sobre a Europa.
  - Éramos o País da enxada e, de repente, passámos da enxada para o colete florescente e telemóvel na orelha. Não houve tempo, começou a cair dinheiro do céu sem limites antes de atingirmos a maturidade e responsabilidade necessárias.
  - Oh Sr. Paulo, nessa altura ainda não tinham acertado com a dose de metadona, passava os dias deitado a dormitar como um bezerro. Foram anos de paragens e recaídas. Com nove anos já fumava tabaco e bebia álcool. O meu pai levava-me com ele para as tabernas porque era o único dos irmãos que lhe amparava a bebedeira. Enquanto ele bebia vinho eu bebia uma mini com açúcar. O bem que sabia era tanto como o mal que fazia.
  - Uma pequena ferida, pensei. Ínfima perante o desnorte europeu, mundial, civilizacional. Uma vida concreta sem significado, sem rosto, esgrimida no vácuo súbito de uma ultrapassagem crepuscular. A inocência de uma criança entaipada nas mãos do progenitor, porque para ser pai muito lhe faltaria. O futuro hipotecado pela miséria espiritual acérrima sem retorno, o fatalismo mordaz de se nascer na opacidade e incompreensão do facto de se existir. O pai do outro era médico e também lhe ensinou que para se ser homem era preciso desde cedo aguentar o ardor arrepiante do álcool, crescer na amargura desfeita dos afectos e mais tarde desviar o olhar para o chão inseguro e fugidio. Uma prova que a formação académica nem sempre faz de nós pessoas melhores.
  Afinal que pessoa é esta que me fala sobre si, num gabinete frio, esconso, de paredes nuas, confrontado tão só com a sua história de vida, que ia cabendo naquele pequeno espaço, aos tropeções, exalando réstias de desconforto e revolta?
  - Uma sombra, pensei. Uma sombra a brotar no grande muro do edifício nacional, europeu, mundial. A vida toda como uma sombra entristecida num recanto, presa aos azares da morte, do álcool, do desvario. Uma sombra maior que nunca, agora que se exige tanto das competências pessoais, profissionais, educacionais, paternais, e outras mais que conheceremos quando por fim invadirem por completo o nosso tempo reservado a sermos simplesmente pessoas. Mas, por fim, uma sombra a tomar forma pelas palavras que nunca ou raramente havia dito e escutado. Uma sombra a desenhar-se por contraste ao já feito e instituído, a identificar-se timidamente por oposição à norma mas sem dela abdicar, a ganhar expressão para além da conversa que já deixou de ser importante.
  - Querem tramar-me Sr. Paulo. Só vou para a esquadra com notificação do Tribunal e advogado, porque eles querem encanar-me. O alumínio estava entre o caixote do lixo e o muro, escolhi as peças e atirei o resto para dentro.
  E eu a desabafar, cá dentro, lá fora.
  - Esta crise, mais que não seja, como diz o José Gil, levou-nos a reflectir sobre o nosso lugar no mundo, o nível de dependência a que estamos sujeitos. Deixámos definitivamente de viver cá dentro. Tomámos consciência de que estamos à mercê de todos os acontecimentos por esse mundo fora. Ser Português já não nos protege de coisa alguma, estamos abertos a todas as intempéries económicas, sociais e culturais. Deixámos de viver no espectro da incerteza para vivermos na certeza do imprevisto. E quanto mais assim é, maior a consciência das nossas particularidades, da nossa unicidade, da nossa identidade plasmada no grande edifício global.

P.A.