sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Presença


A mais sublime noção filosófica intuída é simples e desinteressada, não pelo facto de pertencer ao senso comum ou exigir menos atenção à vida, mas porque se descodifica na inocência flutuante de sentirmos o mundo, de irradiarmos o corpo infantilmente para fora dos caprichos intelectuais, vitalizando-o com o sentido que excede da nossa presença. Antes de tudo estamos presentes na ocasião do olhar, do ouvir, do cheirar a civilização escorrida pelas cidades curvadas, do inalar constante da marcha fúnebre em direcção aos vales sem resposta. A presença é um fogo para onde somos integralmente arremessados como vivas imagens do interior das catedrais.
Escrevo na presença de finas partículas que se movem no momento, os dedos das mãos entreabertos ocupam um espaço único e particular, tocando pensativamente o interior vazio. Escrevo na existência efectiva que sobeja num tempo neutro como um lugar morto. Antes de tudo somos um pensamento de fundo ao adejar da luz, uma respiração inefável que se incorpora na óptica do tempo, meia face iluminada no nulo da janela. Antes de tudo somos uma analogia nostálgica do cosmos quando tudo chega a ser nada como sobreviventes equivocados.
Preciso apenas de ver o mar e escrever quando me apetecer, quando o tempo trespassar a vontade e remover o entulho das reminiscências. De ser apenas e recusar-me às vezes. Beber uma cerveja e entrar no restaurante sem dinheiro, conversarmos sobre o que poderíamos ter feito em vez de comermos pela espera de qualquer sabor diferente. É isto a liberdade, o prazer de recusar o tempo opondo um tempo pessoal, mais sensível ao ritmo cardíaco e às marcas primitivas da existência que recrutamos numa salva de risos espremidos de lágrimas. Preciso apenas de sentir o esperado e o inesperado como uma música de jazz cujas cifras melódicas, rigorosamente soltas, conectam-nos à origem do movimento criador dentro de outro movimento alargado.

P.A

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