quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Passou


Desci a noite postiça
Pelo jardim de quem passou
No brilho da razão prolixa
E à vigília de casa voltou

O tempo reparte-se puro
Pela ignorância proclamada
De um saber inseguro
E uma verdade amada

A existência é simulacro de razão
Que repousa no amor da morada,
Por vezes passeia pela noite a vocação
Em patamares de luz renovada

P.A.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Vive



Vive a vida. Vive-a na rua
E no silencia da tua biblioteca.
Vive-a com os outros, que são as únicas
pistas que tens para conhecer-te.
Vive a vida nesses bairros pobres
feitos para a droga ou o desespero
e nos tristes palácios dos ricos.
Vive a vida com as suas alegrias
incompreensíveis, com as suas decepções
(quase sempre excessivas) com a sua vertigem.
Vive-a em madrugadas infelizes
ou em manhãs gloriosas, a cavalo
por cidades em ruínas ou por selvas
contaminadas ou por paraísos, sem olhar para trás. Vive a vida.

Luís Alberto de Cuenca “Por Fuertes e Fronteras”



Não há esta ou aquela via por onde o bem ilumina e o mal transvia. Há a existência que é um estado latente de possibilidades direccionáveis, um futuro rasgado e excedente que se acumula invisível pela presença. Há a via única da evidência por onde nos cruzamos sob formas e razões impressas, que crescem em bafejos cúmplices e apelos da espécie. A via única para viver em todos os seus caminhos válidos e eloquentes, viver em tudo o que a vida não nega. Estarmos presentes pelo espanto de quem sente as formas belas e absurdas das árvores que acompanham a vertente em síncopes vistosas e mudas, pelo vinho que vai sendo derramado na via trespassada de sentimento onde existir é estar embriagado e os turvos enganos esquecimento. Presentes na coragem, no medo, no prazer, na dor, de corpo aberto absorvente, de longo olhar fixo de desejos fechados e impossíveis de não presença. Vale por isso ser poeta que em tudo se completa, sonhando o mundo nas telas que não se conhece e que nelas se reconhece entre vidas no cortejo, dormir sem um beijo.

P.A.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Da rua


Vista de uma rua de Lisboa a vida é escassa, tudo e nada perante estrelas do começo do mundo. Calçada de odores que se entranha por frestas e tapumes de bairro, animada por uma esperança retardada de fim do dia, removida nos passos que pisam em esforço paralelos à beira de olhares parados que marcam o tempo às portas da realidade. Na rua nasceram todas as impressões esgrimidas sem rumo certo, encontros e desencontros colectivos, ideias e sentimentos que se dispersam no inumerável dos rostos e no incomensurável do seu espaço. Na rua nasceu a consciência sobre a desordem original, própria dos homens, materializada na vivência e interacção comuns como uma “cantiga da rua”. Nasceu a direcção em que cada um se agrupa e interage por uma individualidade inconstante e imprevisível, ilimitada por paixões, egoísmos, altruísmos, abusos que são a vontade de alimentar o imperfeito. Nasceu também a necessidade de cobrar essa desordem impressa e regular a condição humana, de orientar e preencher a anomalia do espaço e atenuar a ameaça das gentes. É a liberdade da rua que faz pensar, que hoje é tímida e ameaçadora, controlada no seu pulsar ínfimo que outrora gerou experiências e saberes construtivos. Não nasce agora, mas arrasta-se a liberdade como um sonho que se abate sobre uma interrogação finita, resgatada depois à pressa para casulos familiares intermitentes.

Aqui a vida é escassa para além do amor, gozamos dos acontecimentos em intervalos mudos e esquadrinhados ao sabor do destino recatado dos lares. Já é tarde pelas ruas de Lisboa. A noite é escura não se sabe bem porquê e são tantas as incertezas perante certeza tão grande. Apesar de tudo confiamos, lutamos e cansamo-nos para o futuro. Tenho saudades tuas. Vontade que a tua ausência irrigue o meu prazer inconstante. Jantaremos juntos num sítio longe de qualquer previsão, conversaremos de ocorrências vãs que alimentem a nossa importância, numa rua onde se sintam as estrelas do começo do mundo e a sua grandeza seja a nossa presença consciente.

P.A.