quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

31 de DEZEMBRO


Pretende, o processo iniciático, inverter o processo natural que vai da vida para a morte, estabelecendo um processo cultural que vai da morte para a vida” Anes, José Manuel – “Os Jardins Iniciáticos da Quinta da Regaleira” Ésquilo, 2ª Edição, Maio de 2007

No final de cada ano guardo, invariavelmente, imagens desgarradas de um tempo incompleto, caótico, sem ocupação útil, distraído a recolher do chão pedaços de vivências, alguns quase intactos, outros meio rombos, outros ainda que não valem o esforço, sendo melhor esquece-los a um canto da memória como uma pedra vã. Suspendo, infantilmente, o curso real dos acontecimentos e resguardo-me em brincadeiras como no começo do mundo. Afasto-me do grande pensamento mitigado no tempo fecundo, e esgueiro-me pelas entranhas audaciosas fora de horas, onde se reaprende o sabor da fuga e a curiosidade da vida. Destruo dogmas, convenções e outros manequins intelectuais e, vendado, embarco na festa dos enjeitados rumo ao turbilhão dos infernos. Desço ao centro da terra, isto é, ao âmago do ser, num ritual iniciático, obrigatório, mordaz, imprescindível ao crescimento e maturação do conhecimento. Aí, contido, aprofundo-me em figuras opacas e disformes, no magma visceral e imprudente, a rodear-me de uma predestinação abrasadora. Fixo-me na escuridão do abismo solene, cravado no assombro original das coisas, insistente, perseguido sem nexo pela espessa amálgama confidente do real oculto. Aí percebo a distância que separa o segredo dissecado sobre a causa das coisas e a ilusão de uma realidade simulada, aquela que se passeia vulgarmente à superfície, que são marcos fugazes da grande agitação subterrânea. No final de cada ano temos que fazer uma viagem ao centro da terra, descer às profundezas escuras dos elementos primordiais, patinhar nos escombros da memória, remexer a lama do tempo, arrastar o corpo pelas margens recolhidas da enchente, vociferar murmúrios intersticiais, arrancados do interior das células, casar com as bruxas frias e perdidas. Depois poderemos enfrentar com amor e emoção a luz do dia no conhecimento prévio das trevas, interpretá-la sem pudor ou receios, agudizá-la à medida exacta da sua dimensão, vive-la na lucidez perene dos contrastes naturais. Bom ano.



P.A.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Infância sem nome


A infância desfez-se aos três anos com a separação dos pais. Para um lado ficou o álcool atrofiado numa razão de ser, entre murmúrios, raivas e desconfianças, que vinham já de outras gerações perseguidas por enclaves de miséria, aborrecida entre tapumes e ralos fétidos. Para outro lado, um rosto mórbido de mulher maltratada, agitada pelos filhos pequenos que em redor seduzem os outros a partilhar uma grande incompreensão. Não deveria ter sido assim em comparação com os nossos, aqueles que vemos crescer de perto, ou mesmo de longe parecendo perto, por etapas assimiladas aos solavancos, entre o segredo do quarto e gestos efusivos de mal-estar, mas sempre com a noção de que um ser também se vai construindo com referência ao outro, em lugares e tempos precisos, por meio de interacções materializadas num corpo consciente. A infância desfez-se aos três anos com separação dos pais. Deveria ter sido o desinteresse feliz dos afectos, uma vinculação segura e disponível, capaz de compreender e responder ao crescimento e suas transformações. Os indivíduos da espécie humana não nascem com a capacidade de regular as suas próprias reacções emocionais, está nos livros. Precisamos de uma presença diferenciada e assídua que nos ensine a organizar os mais elementares mecanismos de resposta ao mundo, com o risco de nos remetermos a uma amálgama contida de razões sem objecto emocional, como cães abandonados à procura de quem lhes dê comida. Deveria ter sido mas não foi, cresceu depressa demais, agarrou-se onde pôde perante a enxurrada de experiências sem nome. Deveria ter sido mas não foi, passou ao largo da costa dos afectos, a sorrir ao seu próprio medo, na certeza cega de que se está num caminho incerto.

Durante o meu contacto com o Ruben despertei para os seus olhos esgotados a sumirem-se a meio da conversa, olhos a descolarem-se deste mundo para se pegarem às margens como que a lembrar o que resta de uma vida presa por arames.
- Estávamos tipo a andar na rua depois vimos um carro que estava tipo estacionado, um CIVIC, daqueles redondos atrás sabe? Isso… Pegámos e fomos dar uma volta tipo só passear está a ver? Não estragámos nada. De madrugada éramos os únicos na rua, oh!, fomos apanhados.

A adolescência deveria ter sido clamorosa, a gravitar à volta das raparigas, gestos excessivos a irromper por entre roupas desmesuradas, como hastes recém plantadas a intentar contra todas as intempéries. A adolescência deveria ter sido tudo menos um corpo fechado de preocupações correntes, a sentir medo de casa, a espreitar o risco entre becos e esquinas, a provar que se é outro que não aquele que à partida foi rejeitado.
- Gosto de dar uma de playboy à porta da escola, agora só quero mulheres, tenho namorada mas só uma não está a dar. Os amigos! Os amigos! Um vive com a namorada que é menor de idade, o outro anda por aí todo burro, sempre de bike, às vezes arranja as dos outros e consegue um guito, há outro que está preso. Eu quando acabar a pena vou para Espanha, tenho lá um tio que é pescador e já me disse que o meu destino é o mar. O meu pai está em França à procura de trabalho, a minha mãe está nas limpezas, eu tenho que ficar em casa com os irmãos pequenos até ela chegar.

A adolescência deveria ter sido passada a crescer sem reservas ou, pelo menos, sem rupturas ou contradições que a atirassem para fora de casa, juntando-se a outras fugas esvaziadas de propósito, com o único impulso da mentira que na ocasião se arma de razões para encontrar alternativa. A adolescência deveria ter sido outra coisa que não dois olhos esgotados a sumirem-se a meio da conversa, como um animal a agonizar depois de cravado com vários tiros.


P.A.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Onde é que você vai?


Em cada visita que faço ao lar mais me convenço que a vida são restos. - Onde é que você vai? Venha cá menina, está na hora de irmos para cima. Para o quarto não para o céu, bem poderia sê-lo, como quem diz, em nome da terra que já cumpriu o que lhe era pedido. A cadeira do lado vazia, ainda a semana passada ocupada insistentemente por um corpo sedimentado entre braços, removido entretanto para outro mundo porque este deixou de o alimentar. Qual daqueles olhares perplexos será o próximo a sumir-se sem aviso, deixando mais uma cadeira vazia e uma memória colhida para a ocasião que nos confirma a ordem de chegada e de partida. O silêncio da sala convida-me a sentar por momentos, sei que não é um convite mas a razão a implorar-me para não passar ao lado, para não evitar a nossa causa final, não fugir infantilmente à pele negando o que me é próprio. Os velhos desligados, espalhados pela sala em estilhaços consumidos pelo tempo programado. Uma vida honesta, correcta, sem excessos, rectilínea, o fio esticado sem nós e agora, agora no fim tudo emaranhado dos pés à cabeça, aos tropeções, num corpo curvado em ponto de interrogação sobre o que ficou. Os velhos indiferentes a mim, com excepção de um que se agarrou à minha presença com olhar fixo e ligeiro sorriso. Olho-o sem olhar, isto é, olho-o para dentro, dele e de mim, as impressões exteriores já não interessam nesta fase do campeonato, são resíduos redundantes que deixaram de embaraçar. Ali permanecemos no conforto de duas imagens por decifrar. O seu interior como que para mim uma obra sapiente a acenar-me tranquilamente do outro lado da margem, a minha figura como que para ele uma pálida recordação por encaixar. Ali ficámos, cada um alheado no interior do outro. De um lado a máquina cansada que assiste à grande paciência do mundo, do outro, uma peça solta que por instantes caiu sem propósito. Um espelho quebrado pela voz da auxiliar - Meus queridos vamos para cima! Para onde?
P.A.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Terrorismo global, o vazio de coisa nenhuma


O terrorismo global protagonizado pela Al-Qaeda, sofreu e tem vindo a sofrer algumas derrotas significativas com o enfraquecimento de pontos nevrálgicos da sua rede, através da captura ou morte de alguns dos seus líderes. O seu modus operandi tende para uma formatação cada vez menos dependente de uma cadeia de comando hierárquica. Embora funcionando num sistema de células, estas adquirem um envolvimento de grande amplitude e dispersão. Como nos refere António de Sousa Lara[1] “O sistema actual configura um terrorismo de segunda geração, no qual dificilmente vislumbramos uma permanência da lógica hierárquica tradicional. Pelo contrário, as células terroristas são agora suficientemente autocéfalas, estão apenas unidas, numa primeira fase de formação doutrinária e táctica, para depois se isolarem no contexto de uma inserção social participante, dentro da vida habitual de uma determinada comunidade, devendo gerar a sua própria autonomia de complemento de formação táctica, logística e de desempenho geral, uma vez que a definição da sua estratégia é de tal maneira pública que está permanentemente disponível na Internet ou nos noticiários da própria televisão”. Neste sentido o autor acrescenta que muito mais dificilmente se identificará, por exemplo, uma estrutura global da Al-Qaeda, “pela simples razão de que não existe uma sociedade sistémica, administrativa, hierárquica, burocrática, logística, em tal organização terrorista, mas sobretudo, uma “estrutura” segmentada, um ambiente (como nos sistemas operativos dos computadores)…”Trata-se, por isso, em boa parte de uma nova formatação da actuação terrorista e se já era difícil, ao identificar uma célula, reconstituir a hierarquia clandestina tradicional, por maioria de razão, é hoje particularmente mais gravoso e difícil, a partir de um núcleo terrorista actuante, identificar as suas ligações e os seus apoios, uma vez que todo o processo evoluiu para um sistema de natureza dispersiva”[2]

Esta nova formatação remetem-nos para um conjunto de acções que se podem inserir num tipo de violência estrutural, ao contrário da violência directa[3]. Esta, segundo o modo como classicamente é entendida, é desencadeada por actores identificáveis que infligem directamente danos a outros, incluindo-se neste tipo a guerra, a tortura, o crime, ou as acções terroristas. A violência estrutural, decorre de causas inseridas na própria estrutura social, onde é muitas vezes difícil de identificar um autor ou mesmo o início do processo. Dentro deste tipo de violência podem apontar-se, como condições potenciais da sua concretização, a privação de bens elementares de sobrevivência, ou, em outra instância, por exemplo, a privação do direito à educação. A repressão, como perda de várias liberdades, em particular a liberdade de escolha, é também apontada como um subtipo de violência estrutural. A alienação é enumerada como a terceira categoria de violência estrutural, ou seja, a privação de necessidades não materiais que podem conduzir à perda de identidade, forma de violência que está a expandir-se nas sociedades contemporâneas, tanto nas ocidentais como em outras, embora por causas diferentes. “Enquanto forma de violência, a violência estrutural, nas suas diversas modalidades, nomeadamente na de alienação, explica, muitas vezes o surgimento da violência directa, mais especificamente de algumas formas de terrorismo”[4]

Trata-se assim de um campo fértil para a disseminação da propaganda que legitima alguns terrorismos e o recrutamento de apoiantes. As elites e os governos, em relação ao terrorismo, tendem a subestimar a violência estrutural e a centralizar a sua actuação numa resposta ao nível da violência directa. A tentativa sistemática de dar ao terrorismo, em algumas das sua vertentes, respostas exclusivamente militares, numa óptica de que a violência apenas se combate com a violência, já provou não ter resolvido o problema, embora o tenha atenuado em algumas das sua vertentes. Mais difícil, contudo, será atenua-lo actualmente por essa via quando o fenómeno do terrorismo tem um impacto à escala global, e cujas causas são multidimensionais.

A identidade deficitária desenvolve-se em diferentes planos, seja religioso, político, social, económico ou cultural. A ideologia ou crença religiosa como factor justificativo do terrorismo global não parece ser suficiente, sabendo para além disso, ou pelo menos intuindo, que o processo de socialização nas sociedades islâmicas é orientado pela moral da culpa e do castigo. Segundo os estádios de desenvolvimento moral mencionados por Kohlberg, as sociedades islâmicas poderão situar-se num estádio pré-convencional, em que as normas e valores permanecem como realidades exteriores aos próprios indivíduos, criando nos sujeitos como que uma espécie de efeito de automatismo e predestinação, pelo que, dificilmente são vividas e integradas em princípios éticos universais, tal como o direito à liberdade de expressão, direito à justiça proporcional ou, em último caso, direito à vida. Este modelo potencia posições radicais e fundamentalistas, que não obstante serem geralmente diluídas na convivência pacífica dos crentes, tornam-se uma ameaça latente.

Se é verdade que um terrorista não é vulgarmente considerado um psicopata, comporta-se como tal. A perigosidade do fundamentalismo religioso, em particular do terrorismo islâmico, remete-nos para causas criminógenas relacionadas com uma patologia anti-social de tipo psicopata, tipificadora da personalidade dos agentes. Miguel Sanches de Baêna, ao definir diferentes classes de terroristas, considerando a sua posição e influência no seio das organizações, dá particular destaque à classe V, constituída por amadores, civis e sem experiência, como uma das classes mais perigosas e de difícil detecção. A sua faixa etária é abrangente, de ambos os sexos, de nível educacional baixo, estrato social correspondente a uma população urbana ou rural pobre, nascidos no meio do crime ou da cultura do combate
[5]. Isto remete-nos para populações, que dado as infra-estruturas sociais e económicas em que vivem, aliadas a um referencial moral, educativo e afectivo pobres, tornam-se permeáveis à influência e aliciamento de grupos terroristas, traduzindo o seu fácil recrutamento, um meio alternativo de vida para indivíduos que procuram um sentido de pertença não conseguido em estruturas convencionais. Os acontecimentos nos arredores de Paris, em 2006, reflectem um modelo de violência gratuita sem causas aparentemente determinadas, senão a procura e apropriação do mundo pela destruição. O atentado de 11 de Março em Madrid, embora tipificando um acto terrorista indiscriminado, apresenta contornos que o ligam a agentes anteriormente relacionados com o delito comum.

O terrorismo Global, para além do absolutismo divino, visão maniqueísta, expansão pela jihâd ou fé actuante, crise identificativa de um modelo fechado que se forma contra os outros, interage com uma patologia anti-social ou psicopática, que pode reunir energias nas populações desenraizadas dos aglomerados urbanos e desnutridos de quase tudo, ligadas a meios marginais e delinquentes como consequência lógica, cuja violência surge como um modo de apropriação do mundo que de outra maneira não é conseguido. Na personalidade anti-social, a passagem ao acto é um hábito que toma o lugar da reflexão, da emoção e dos projectos. Forma-se numa moralidade simplista destituída de emoções ou sentimentos, é uma ética solitária, que não pede nem dá, é pragmática e encurtada pela impulsividade do acto. O mundo é entendido como uma resistência permanente, o qual, numa relação meramente instrumental, pode ser violentamente fundado no seu nada. Parece ser neste espírito de missão, sem comando, de ímpeto espontâneo e voluntarista, que se configura a ameaça do terrorismo global. A jihâd, como esforço ou luta no caminho de Deus, pode identificar-se como um movimento permanente contra o sistema global estabelecido, persistente nas suas acções, anárquico nos meios, incapazes nos seus objectivos últimos, fundados num idealismo inacessível e utópico.

P.A.



[1] Lara, António de Sousa, “O Terrorismo e a Ideologia do Ocidente”, Almedina, Fev.2007, pág. 44-45
[2] Ibid. Pág. 45
[3] Simões, Maria João, citando Cassese e Galtung in “Terrorismo(s) e usos das tecnologias da informação e da Comunicação” Cap. XI da obra “Terrorismo”, Coord Adriano Moreira, pág. 509
[4] Ibid pág. 510
[5] Baêna, Miguel Sanches, “Nos Bastidores do Terrorismo”, “As Teias do Terror” “Novas ameaças globais”, 2006 pág. 131-132

sábado, 23 de maio de 2009

Presença (parte III)


Disse que a presença é o concreto da existência. Não um pensamento mas uma noção que se deduz do universal ao facto de se estar a ser, um instante que se retém e se configura num ponto do mapa geral da mente. Não um pensamento mas um sentimento que se percorre num só tiro, num só gesto, num só suspiro. Não um pensamento mas uma evidência que se assola na consciência e suspende o fluxo regular das coisas. Não um pensamento mas uma certeza que aparece a fitar interiormente os despojos de um corpo relembrado. O espanto de sentir o eu perante a carga de todas as possibilidades, plantado na exactidão de um corpo gratuito que vibra na diferença das formas como a árvore que carrega a existência em síncopes tensas e mudas. Presença, estar a ser, quando brindamos na única via ladeada de pequenos marcos, pequenas consolações de vinho derramado, impressões maciças do bem e do mal confundidas num rosto vidrado. Uma só via um só viver, é esta a verdade, efémera e arrepiante no olhar fixo, estranha certeza ser-se visto, ser eu e os outros que sempre somos nós nos passos que damos enquanto sós. É a via da presença que nos resta, pálida ou eloquente, como o vinho trespassado de sentimento onde existir é estar embriagado e os turvos enganos esquecimento. A verdade que não se pensa, existe sem poder desdizer um caminho por acontecer e o erro dispensa. Estar presente e reconhecido no silêncio da estrada que se agudiza no horizonte por fazer, não há vida desencontrada nem caminhos perdidos, é tudo o que vai sendo e engrandece o sabor do espírito em gume, sob a luz diurna do costume ou no negativo que construímos sobre uma causa nocturna. O corpo pendular que marca os medos em suspenso pelo eu que sempre mente ao medo evidente de estar, ao medo das coisas vidente.

P.A.

quarta-feira, 25 de março de 2009

O tempo consultado


A compreensão da narrativa individual insere-se num esquema explicativo que, conforme nos diz Cândido da Agra “faz intervir o tempo ou história individual e colectiva, na explicação criminológica. E fê-lo intervir nos sistemas de interacção estabelecidos entre o indivíduo e as suas circunstâncias psicológicas, sociais e culturais. É às formas de vida (ou sistemas de estilos de vida) constituídas ao longo de trajectória existencial dum sujeito mergulhado e confrontado com múltiplas normatividades e seu desenrolar, que se dirige o olhar criminológico. E isso aos níveis psicológico e psicossocial: uma biopsicossociologia não causal mas processual constitui uma das principais “revoluções científicas” (nos termos de Th.S. Kuhn) da criminologia moderna”. 1

[1] Agra, Cândido da e Matos, Ana Paula “Trajectórias desviantes”, droga – crime, Estudos interdisciplinares, Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga


Há o silêncio da sala, uma espera silenciada por um barulho de fundo contínuo que vem do ar condicionado. Um consultório que isola uma longa tarde de Agosto, quase hermético, em que apenas os passos esporádicos dos pacientes sobre o soalho ressequido despertam a impressão de se estar vivo, porque mudos são os encargos do nosso fundamento como um cavar lento de causas invertidas até ao modo de ser. É um consultório do tempo, ou antes, da sucessão de acontecimentos que informam e preenchem o contínuo temporal. Antes da derradeira consulta temos tempo para recordar e antecipar os factos, melhor dizendo, para encontrar a sua significação projectada no desenrolar dos dias e dos anos entre o passado e o possível, como a árvore que lá fora se tenta enquadrar pela janela que é a nossa perspectiva limitada e sumária da realidade, dando-lhe um sentido para além do facto de ser. A consulta está atrasada, a espera pelo silêncio torna-se ensurdecedora, deixa-nos vazios de conteúdo vital, arrepanha-nos os ossos e os músculos no desconforto do nada, e assim agarramo-nos a qualquer coisa que interpele o silêncio, como uma porta que se abre sem motivo aparente. É outro paciente do tempo, entra cauteloso na sala e dobra-se numa cadeira inerte a fitar as linhas da parede nua. Quatro paredes que confinam o olhar mais distante, induzindo-o à introspecção do espaço e depois do tempo. Não tardará a agitação cansada do vazio concreto da sala, instalando-se o exercício de abstracção como desenhos imaginários no branco das paredes. Passa-se da atenção sobrevivente dos sentidos para uma viagem interna e explicativa que faz intervir o tempo ou a história individual na compreensão dos factos. E fá-lo intervir nas redes de interacção estabelecidas entre o sujeito a as suas circunstâncias psicológicas, sociais e culturais, confrontando-o com o desenrolar de múltiplas formas de vida, mais abertas ou fechadas, mas sempre subjugadas à inalienável condição de se assumir e explicitar numa trajectória única e intransmissível. A sala encheu-se de pacientes, as consultas preparam-se em cada um deles pela narrativa dos gestos e todos parecem permanecer ligados à importância do momento, mais do que o aceitarem, distendem-no na sua significação alargada a cada história pessoal. A existência conta-se normalmente por palavras gastas na preferência da nossa compreensão, desligada da importância sobre a qualidade das relações que cada indivíduo estabelece com o meio, reduzindo-se por isso a uma acção unidireccional do meio sobre o indivíduo, decorrendo muitas vezes petrificada pela defesa, cautela, orgulho e desvalor da responsabilidade do ser no mundo. Meteram-nos neste baralho, é certo, mas mais do que o aceitar e controlar à distância, é preciso realizá-lo e compreende-lo pela narrativa pessoal que é o processo existencial de um sujeito mergulhado e confrontado com múltiplas formas de vida. Atrasa-se a consulta contra a visão repetida do nu das paredes, talvez já não seja necessária porque o tempo de espera adquiriu entretanto a importância de um exame introspectivo sobre o processo de existir, fazendo intervir os acontecimentos e a procura do seu significado ao longo da trajectória existencial, acedendo ao processo de cruzamento entre as diferentes dimensões do agir humano, tanto a nível biológico como psicológico e social. Lá fora a intensidade dos sons chega-nos sem aviso e deixa-nos sem rasto, vibram por momentos num contínuo temporal que é a marca de acontecerem, a consumação de uma presença. É no tempo que os acontecimentos ressoam em significados adquiridos e se expandem num leque de possibilidades assumidas pelo sujeito que os vive. Não se trata de procurar as causas do comportamento humano mas, através da biografia, situar os acontecimentos e compreende-los numa perspectiva abrangente, que parta da combinação íntima entre valores colectivos e atitudes individuais. As causas pouco importam, diluem-se no tempo como um processo multifacetado de acontecimentos que concorrem para a emergência de determinados comportamentos. A procura das causas afasta-nos do processo de mudança pelo qual nos compreendemos como seres verdadeiramente indeterminados.

P.A.


sábado, 31 de janeiro de 2009

Coisas em que acredito


Acredito na alma leve como um sopro, vontade ampla fugidia que tem esta forma sem forma que a torna, causa que prevalece longe do simples existir cujo prazer o viver obedece na tranquilidade de sentir. Acredito no princípio escondido do movimento que acompanha esta verdade e às incertezas está atento, no destino aguardado das coisas pela evidência de estar, nas atenções que pela luz e o vento vêm na demora de amar. Acredito no vento que pára à beira da estrada de escuro traje e meros trevos soprando, sem estribos faz sua cavalgada pela estrada não receando. Acredito na importância de se estar perdido numa manhã de ninguém quando o sonho se tem retido, nos dias que se vivem sem viver senão pelo desejo de os entender, de se estar perdido numa manhã que vem sem que se tenha pedido. Acredito na fúria de Neptuno que rompe arestas provisórias de uma câmara lapidada até à primeira praia do farol prometido, com honras de fogo na terra recebido a cambalear pela embriaguez da memória, chamas mundanas por demais ilusórias perante destroços de uma câmara em ondas irrisórias. Acredito nos escombros da liberdade até à última pedra, na imposição assumida de vontade que nasce pela livre dependência. Acredito na noite e uma salva de mistérios, reza que a lua sustém a todos os impérios, orações que estalam pela viagem do silêncio e guardam instantes num só tiro, noite que medita pelo grande véu universal enquanto o espírito se acende e apaga num sentimento final. Acredito que me levem de bruços até sobre minha cruz para falarmos do que não fomos por amor a esta chegada, amortecendo a dor do afastamento antes da morte encetada, que me deixem sem ruído pelo andar lento que passe por trás esquecido do ser atento, atento ao mistério que não vejo de todas as forças escutar confinando-as de incerteza. Acredito outra vez na noite e nos declives do inesperado, na evidência do medo que antecipa as coisas em segredo, no andar que sempre mente ao medo evidente de estar. Acredito no céu longe mas vivo de quem dele é cativo, a quem pela fé pertence e as areias vence, céu vivo ainda mais vivo a quem dele é cativo e que por norma não mente senão quando por ele passa o homem cadente. Acredito nesse canto invisivelmente espalhado pelos momentos em que me levanto querendo estar deitado, que pairam pelo quarto prazeres calmos de ensejo que pelos sentidos reparto e no sossego desejo, na renovação dos ciclos da mente saturada onde irão passar instantes da vida não acordada, na indecisão de deitar-me ou continuar ao sabor do canto na longa pauta. Acredito nas nuvens como janelas carregadas de paisagens que fogem do que vemos, que correm paradas como náuseas regressadas de uma vida encaixotada, na tempestade onde se esconde uma ideia sem tino e rompe molhadas amarras do destino. Acredito que saem dois olhos num sono entre fumos perdido em noite calma, deixam o corpo e sem ossos se põem a brincar, que quando dormir é um peso preferível é sonhar, corpo subtil que espera por tão grande divertimento para com eles voltar, olhos ainda cegos de sonhos quentes que se juntam como estranhos entes, ao recebe-los o corpo exala fumos como ferro em brasa sobre madeira dos túmulos. Acredito que Lisboa dorme levemente num canto do cais onde recupera a mente de antigos sonhos irreais, lembra com as portas abertas ainda um sonho quente das descobertas, bom seria se os olhos abrisse e sorrisse às águas do Tejo. Acredito na lua de ceda que ilumina a vereda por um trago de água ardente, que destrói esquinas e mentes cheias duras rimas e outras teias. Acredito que ela é linda com odes a bailar no coração a pulsar pela tarde finda, linda no espírito nu com corpo de sereia pela noite bem vinda, bela pelas cores do andar e leveza de estar em divina tela, que é minha pelo vento que bate todo o momento como uma razão despida e por meu sangue caminha. Acredito que os olhos baços se enchem com coisas viris, de inocência e pura raiz, de disparates e conceitos sobre desmontar o espírito e despir os eleitos, no arqueiro travesso que lança flechas pelo ar sem preço, pinta as horas sem estimação, considera sem consideração os vermes da guerra e a morte sem fundo como a primeira resposta ao mundo. Acredito que baloiçam hastes súbitas e abanam minutos de vento num único tempo, sopram ideias loucas e vontades roucas, que em tudo uma hora se perde num esforço de viver um dia que não serve as coisas que sem ele teria. Acredito no descalabro do tempo que se embaralha ao acaso em fios vitais, no corpo entregue a um estilhaço sem ordem nem sabor, na revolta da terra e no calor que o ser encerra, nos que espalham fogo e invocam dias em vão como um jogo de luz e emoção. Acredito que tudo em nós começa como folhas brancas por escrever, começo não revelado sem sentido pela escrita contornado em dia renascido, na herança dos dias vividos, naquilo que nos confessa reflexos desconhecidos do que em nós começa. Acredito nos que vestem o desígnio louco num amontoado de gracejos, num mundo alado e absorto de infinitos festejos, nos que acarretam a fantasia manifesta e descem a vertente que resta, na realidade solta dos últimos intentos envolta em pálidos ligamentos. Acredito que o ódio rasteja em mentes sossegadas como a paz transviada e migalhas de guerra, que crescem genes em campo de batalha e tombam da muralha como crianças feridas. Acredito que há no extenso jardim simples matéria acordada pela luz falada entre não e sim, no ânimo que ocorre sem fim e contorna suposto jardim pelo prazer velado, que por fim ao jardim sem luz regresso mais perto dos sentidos que outra realidade produz. Acredito na matéria em vez de nada, no fuso inteligente entre galáxias para nossa tristeza ciente, cúpula branca iluminada que contempla por um só gesto um sonho que vem de fora, matéria que é a morada dos homens e tudo o que sinto porque o que é arde-me de ser e não é nada, por isso que sou e consinto. Acredito em tudo isto e na possibilidade de nada ser.

P.A.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Passos de Inverno


Rezam aves sobre crateras
E ondas do mar se levantam,
Repetem-se passos e quimeras
Que a lama e chuva arrancam

O céu farto súbito escurece
E trás a lama à nossa memória,
A ideia que a chuva padece
Sem corpo ou alma acessória.

O que trás e leva a enxurrada
Se os mesmos passos de levantam?
Rasga-se uma página borratada,
Outra que a lama e chuva arrancam

P.A.