domingo, 2 de outubro de 2011

Crescer



Há lugares que se intrometem para sempre na nossa história, entre ideias e desígnios, como que a retomar uma sequência que, subtilmente, vai explicando a origem das coisas. Há lugares de infância que se estendem sem fronteiras, inconstantes e atrevidos, a lembrar florestas e pinhais percorridos à revelia do tempo, mas assentes num antes, num durante e num depois, necessários à formação do ser. Há lugares que perduram mesmo quando já foram ocupados pelo frenesim e esgotamento progressivo da modernidade. Perduram como uma amostra por decifrar num tempo agora comprimido por tudo em simultâneo. Aquelas árvores ficaram e as que não ficaram criaram raízes mentais para além da existência física, que foram crescendo e amadurecendo naturalmente pela necessidade de uma ordem cronológica. Do terraço de casa sinto que deve haver tempo para nascer, crescer, viver, guerrear, amar e morrer. E que a ausência de uma sequência funcional, mesmo que flexível, remete-nos para a ilusão de que a vida é uma suspensão eterna ancorada num presente frenético e alienado da história. Das árvores construímos fortes e castelos e lembro-me que havia uma especial a que chamávamos o avião, um pinheiro bravo, esguio, de onde lançávamos pinhas como bombas sem retorno. O Filipe era o dono do machado e convinha tê-lo como amigo. Mais velho, alto e robusto, tão depressa amanhava um molho de canas e troncos como tudo destruía sem prévio aviso, entre amuos e rancores imberbes. Os pais não interferiam a não ser no azar de escoriações e curativos que faziam parte do corpo a irromper pelas sendas do poder. Do terraço da casa identifico as grandes incursões pelo mato à procura do inimigo que, pacientemente, era preciso encontrar, iludir, de quem se impunha a retirada para depois voltarmos mais apetrechados. Do terraço da casa vivo com dor uma história incontornável num tempo preciso e concreto. A dor afinal advém de hérnias discais e artroses que me atrofiam o corpo e a mente em espasmos ofuscantes e tempestivos, mas que não deixam de ser marcas de uma tal sequência vivida.

P.A.

2 comentários:

Rita disse...

Excelente texto, como sempre! A escrita vem de dentro e traduz sentimentos intersticiais. És sábio, e por isso as etapas sequenciais da vida não te escapam e não se perdem em ti pelo sofrimento e dor. Percebes o destino de quem tem o azar de queimar etapas, como diz o outro...já a tua história é perfeitamente contornável embora num tempo que não se deixa ainda adivinhar a longevidade...virá, sequencialmente um periodo concreto de acalmia em que as feridas serão saradas e acarinhadas...passaram a ser apenas "marcas de uma tal sequência vivida"

com carinho

Rute disse...

Paulo

A fotografia está espectacular! parece um reflexo...ou uma ilusão. Parece um daqueles " lugares que se intrometem para sempre na nossa história, entre ideias e desígnios (...) ".
O texto também está muito bem escrito. Gostei muito!

um beijo