Enquanto criança o tempo era maravilhosamente lento, amplo, imprudente, esquecido no leito da casa encantada, à espera de nada que não fosse encher os olhos de empenho em cada sonho novo. À espera de nada que não fosse um grande canto invisivelmente espalhado pelo ar sem preço, uma tela infindável de horas pintadas ao sabor do riso que é a raiz da inocência. Enquanto criança o tempo se desmontava ao acaso junto ao armário de brinquedos, inspirado por ideias que corriam paradas como nuvens embaladas, à espera de nada que não fosse a graça dos dias e noites a consolar remoinhos sãos, pensamentos irreais, água e terra entre mãos. Enquanto criança puras as horas se mantinham como simples matéria contemplada, um ânimo sem fim entre não e sim até ao prazer esgotado. Guardavam devaneios nos cofres do olhar, embalados pelo desaconchego permanente dos sonhos à solta nos finos cabelos, à espera de nada que não fosse o brilho renovado das estrelas, a gargalhada de luz incandescente, a possibilidade de interrogar a vida num único momento. Enquanto criança o tempo alimentava rasgos de alegria como o sol a meio do dia, de mais alto, a explodir de loucura e consolo, colhia nos braços todos os acontecimentos e sensações como se da última vez se tratasse. Nunca se sabe quando é a última vez que o corpo se ocupa dos encargos do seu fundamento, deixando de perseguir os desígnios finitos que o lançaram ao mundo. Hoje arrependo-me de descurar a possibilidade de ser criança e viver num tempo único pela última vez. Envergonho-me de adiar o fogo múltiplo que invoca a sucessão dos dias num jogo de luz e emoção. Castigo-me por encerrar as horas sem alento no medo que antecipa a morte inesperada.
P.A.
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