sábado, 16 de julho de 2011
sábado, 9 de julho de 2011
Por alma de quem? Por exemplo
Por alma de quem? Por exemplo, é que eu o conheço? Será do Hotel, de onde saiu mais cedo e eu tive que roer a pena até ao osso? Que injustiça. Não matei, não violei, só porque…o que é que diz aí? É tudo mentira, escrevem o que lhes apetece só para apresentarem serviço. Ficou o cheiro da lixívia a desinfectar o chão e as paredes dos corredores sombreados pela espera quase impossível, o som do rádio que nunca vi na Barbearia, a imitar as vozes e as músicas lá de fora, onde se deixou a vida pendente para se poder ajustar a culpa aos factos. Por alma de quem? Por exemplo, é que aquele maluco se atirou do Castelo de S. Jorge cá para baixo? Ou aquele que se passeava nu na rua com uma tesoura de cortar frangos? É verdade que em algum momento somos todos vítimas das circunstâncias, mas que podemos fazer com estes tarados que insistem em renunciar ao mundo? E, já agora, com aqueles em que as conversas, os mitos e preconceitos se repetem sem fim? Uma ladainha pegada à pele que anula a resistência ao desvio. Por alma de quem? Por exemplo, é que o meu padrasto agora não trabalha e está taberneiro como os outros? Ele não bebe muito, o problema dele é que come pouco. Não faz mal a ninguém, depois de beber uns púcaros deita-se e pronto, o melhor é não dizer-lhe nada. Por alma de quem? Por exemplo, é que me conta que nasceu na linda Cidade de Lourenço Marques e que este País nunca lhe deu nada? Nasceu em berço de ouro, o pai deslocava-se de avião em África, nunca entrou num tribunal e mais tarde teve que ir visitar o filho à prisão. As lágrimas turvam-lhe a voz. Angola e África do Sul eram inesgotáveis. Há quarenta anos África do Sul esboçou a intenção de produzir garrafas de Coca-Cola com cápsulas em ouro, os Americanos tremeram. São histórias que, de súbito, se arrancam no desdobrar da entrevista e validam uma presença concreta, que vai para além da pessoa em confronto abstracto com os trâmites legais. Desabafos escorreitos que nos aproximam da compreensão abrangente e informal sobre as relações com o mundo, que se constroem nas fronteiras cinzentas entre a lei e o pulsar da vida. Por alma de quem? Por exemplo, é que levam um homem para a esquadra sem papéis, batem, insultam, depois mandam-no embora e dizem-lhe para se queixar a quem quiser? Isto revolta, a minha vontade é chegar ao pé daqueles que me acusaram e fazer-lhes o dobro, já que tenho uma vida de merda cá fora o melhor é…diga-me só uma coisa, quando é que isto termina? E por alma de quem? Por exemplo…
P.A.
quarta-feira, 29 de junho de 2011
Do mar
“- A tua mãe nunca ouviu este som.
- Que som?
- O som do mar. Quando eu era pequeno havia uma estação de rádio que transmitia sons do mar, ondas gigantes. Aqueles sons assustavam-me.
- Porque o assustavam?
- O fundo do mar assustava-me, com todas as coisas que vivem lá em baixo…”
Do filme “Biutiful”, de Alejandro González Iñárritu
Não é do mar que trata o filme, a não ser do seu lado mórbido, quando pequenas vagas estendem clandestinamente os corpos de trabalhadores chineses ao longo da praia. Famílias inteiras anexadas à vida num armazém de uma fábrica, à espera da morte silenciosa que, durante uma noite, o gás dos aquecimentos manhosos viria a firmar na palidez dos rostos com olhos serrados e boca semiaberta. Não é do mar que trata o filme, a não ser do mar intersticial que escorre moribundo pelos bairros pobres da cidade, engrossando modos enviesados de sobrevivência, tão comuns em aglomerados de pessoas. Não é do mar que trata o filme, a não ser do mar incontornável de emoções, cujo grau de salinidade, se adensa regressivamente até ao caos sentimental. Não é do mar que trata o filme, a não ser de um mar de vida que se esconde nas margens do esquecimento, atolado nas razões do vício, numa sofreguidão natural de amargura e restos. Não é do mar que trata o filme, a não ser de um mar de intimidade que se aprofunda em cada cena, resgatando-nos do medo constante de sermos pessoas e enfrentarmos a nossa causa mais sombria.
Não é do mar que trata o filme, mas é do mar que poderá vir a força necessária à expiração de toda a ingratidão e infâmia. É do mar que poderá vir a explicação final e inquestionável sobre a condição humana, até à última gota, num acto de derradeira regeneração a que se reservam as almas renegadas. É, por fim, do mar que fica a luz que nos conduz à esperança do eterno repouso.
P.A.
sábado, 25 de junho de 2011
Homenagem
Bastaria ter escrito isto para ser homenageado...
"Eleanor Rigby,
Quando eu morrer, eu não quero nem choro e nem vela
Quero uma fita amarela,
Gravada com o nome dela
Eleanor Rigby,
Quando eu morrer, eu não quero nem choro e nem vela
Quero uma fita amarela,
Gravada com o nome dela
Se existe alma,
Se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse em meu caixão
Não quero flores, nem coroas com espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho"
Noel Rosa
sexta-feira, 27 de maio de 2011
Sobre um filme
“A visita da banda” é um daqueles filmes que interrompe a sucessão frenética de imagens cinéfilas criadas em antecipação ao prazer imediato e consumista, tão conforme à passividade contemplativa dos nossos espíritos actuais. Apesar de filmar uma banda da Polícia Egípcia perdida numa qualquer povoação no deserto Israelita, é o silêncio que domina a interacção dos personagens, porque é no silêncio dos gestos e olhares que se revela a profundidade das intenções, dos desejos, dos sonhos, dos compromissos. Embora perdidos numa frustração expectante perante a impotência de poderem honrar os seus compromissos, tocar numa cerimónia de iniciação, os músicos estão lá, alinhados pelo espírito de missão. O fardamento composto e limpo, confere-lhes legitimidade. Os instrumentos vão-se exibindo tímida e pacientemente, como os personagens, criando raízes sentimentais nos interlocutores. A música está sempre presente mesmo quando não está, escuta-se no silêncio da espera, na imobilidade dos corpos, na certeza de uma presença sem propósito mas consciente de um dever maior. O Chefe da banda, um general de aspecto sisudo e firme, não de severidade mas de consumação sábia do tempo, é a encarnação da serenidade, do respeito, da dignidade por uma causa essencial que não se esbate com a monotonia cromática do deserto. “A visita da banda” é um filme em que cada um de nós se reencontra num pequeno grande universo de relações interpessoais. É um aproveitamento eficaz e sustentável das circunstâncias de se estar perdido sem se estar, porque nada pode demover-nos, uma vez na vida que seja, da missão que nos é conferida superiormente sem pressas, a de sermos fieis e determinados perante aquilo em que acreditamos.
P.A.
sexta-feira, 22 de abril de 2011
Ser e Ter (Parte II)
Devo informar que escrevi este texto há quase duas décadas, como diria um amigo, “Quando o mundo ainda era feliz!” Não quero com isto dizer que consegui antever sabiamente qualquer conjectura de crise global mas, tão somente dizer que, desde há muito, sinto que a nossa razão de ser não se pode reduzir à procura incessante de ter.
E agora? Depois de restarem poucas dúvidas de que criámos uma sociedade do ter, como enfrentaremos a possibilidade de termos cada vez menos? Alheámo-nos do ser para vivermos naquilo que os outros nos vêem viver pelo ter. Tivemos sentido pelas coisas que exibimos prostradas nos olhares dos outros em ensaios cinéfilos e quotidianos. O ter foi deixando de ser, afastando-se cada vez mais da sua natureza. Os bens materiais circundaram-nos facilmente provocando necessidades artificiais que prolongaram a nossa insuficiência de ser. Pouco ou nada conhecemos deles senão a sua presença confortável e retribuída, que usámos e abusámos, decifrada no prazer mediado e escoado de nós como uma secreção lenta e oculta que anseia um desejo possuído. Nada nos pertenceu verdadeiramente. Vestimos, andámos, habitámos matérias-primas de todos os cantos do mundo, trabalhadas à medida do nosso prazer e compensação. Alheámo-nos da origem das coisas, das vidas gastas em tempo manufacturado ou programado em máquinas estranhas que só por acaso observámos. Exibimos bens matérias raros e de valor quantitativo elevado para compensarmos a ameaça do mundo que nunca compreendemos, a ameaça do outro, da solidão, do insucesso, da morte. Ter não é poder mas iludir a insuficiência de se ser. Admito que o ter, por vezes, seja sermos na relação com o mundo quando criamos qualquer coisa. Também o nosso corpo é ser pelo ter que lhe vem de fora ao restaurá-lo com alimentos, luz ou água, da entropia natural que culminará na morte. Aí o ter mistura-se com o ser porque lhe é próprio, é um ter sendo. Deste modo, o ter autêntico é um ter primordial, próprio de quem lhe dissecou as causas e origens. Para sermos o relógio que temos é preciso desmontar-lhe a causa e a origem e recria-lo na ignorância do tempo. Para sermos o automóvel que temos é preciso sabermos construi-lo pelas leis da física e da mecânica. Para sermos não bastará termos passivamente, é preciso partilharmos o esforço dos que morreram a pensar o que temos. Será por isso necessário, talvez, estarmos mais perto e reconhecidos pelo silêncio e mistério da nossa estada, porque no ser não há vida desencontrada nem caminhos perdidos. Mais atentos à singularidade e plenitude de cada coisa, sublimar a sua presença e as suas forças perscrutar. Será necessário, talvez, encostar a bicicleta e respirar pela abertura do ser, que embora escura e incerta, é mais verdadeira.
P.A.
quarta-feira, 23 de março de 2011
Sem começo nem fim
Há momentos em que tudo nos ocorre na mente, em simultâneo, numa espécie de catarse involuntária como uma manta de retalhos, tão pessoal quanto intransmissível, uma experiência de imagens configurada pelo sujeito que as vive sem limites. Eis o corpo numa singularidade absoluta e interna, apenas preso ao essencial por fora. Uma escada sem começo nem fim pelos arrumos da memória. É deste modo que o som do violoncelo emerge com gravidade, arrancado das entranhas adormecidas ao longo do tempo, disposto a recordar, sem pressas, entre a resignação e a esperança.
– Cuida de ti meu filho, olha que está hoje um na igreja com 47 anos, foi qualquer coisa de coração, conheço bem a mãe mas não tenho coragem de lá ir.
- Oh mãe, mas…o som do violoncelo, ao fim da tarde, a imiscuir-se por entre o voo rasante dos pombos e uma chávena de café quente.
- Os exames estão bem, contava-me a arguida. - Estão bem como? Se já não tenho um peito e tenho caroços no outro. Nem me tocou.
– Oh Doutora! Não tenho piolhos nem pulgas, pode tocar-me…bruxaria! Bruxa é ela, pensei eu sem lhe dizer. Na sala de espera mais um arguido, frio de sentimentos mas cordial. Até os criminosos mais criminosos têm uma certa ética, como o som do violoncelo a aprofundar o ser na fronteira entre a vida e a falta dela que é preciso respeitar no limite.
– Fui preso muito cedo, ainda não consigo enfrentar a sociedade. A prisão atrofiou-me, também me fiz um homem, senhor, sabe, um homem.
– Sim, disse eu, a pensar que talvez não soubesse coisa alguma. A pensar que aos quatro anos passava as tardes à janela na rua do Arco do Carvalhão, ao colo da minha avó, a ver os autocarros passarem. A felicidade contava-se lá em baixo à passagem dos verdes de dois andares, a uma distância da janela que me fazia sentir o rei da Avenida. Um dia, a meio da noite, os autocarros pararam para a minha bisavó ser arrastada para uma ambulância sem explicação. Não imaginava que os mais velhos pudessem cair sem forças numa encenação muda e sombria, para mais não voltarem, a meio da noite, de uma carrinha branca de sirene intermitente e silenciosa.
Onde me leva a escada? Ao Jorge, na altura do Liceu, conhecido pelo sapo. Quase não falava, esfregava as mãos e mostrava um leve sorriso sarcástico. Disse-lhe que não estava a perceber nada da aula de físico-química.
– Conheces Camel? Perguntou-me antes de tudo. Pensei que já conhecia o suficiente para me desembaraçar nestes primeiros encontros, mas, Camel?, tabaco?
– Conheces o álbum “Mirage” ?, perguntou-me enquanto enterrava a cabeça na camisola de lã vermelha imune a todas as ameaças, até às que se propagavam pela voz da professora ao final da tarde, já noite, alimentadas pelas lâmpadas florescentes de tom amarelado como o cansaço de Inverno. Abanei a cabeça na minha timidez ansiosa.
- Percebes isto? Insisti eu. Mas ele mais não disse. Ficou a olhar-me como um verdadeiro batráquio à espera de uma eventual presa, de sorriso sarcástico, cabeça enterrada nos ombros, agora a esfregar as mãos veementemente. Onde estás Jorge? Talvez escondido no mato dos anos 80, agora com as mãos atrás das costas a deixar escapar, de quando em vez, um leve sorriso sarcástico. Acabei de recordar uma vez mais Camel, o álbum “Mirage”, não me esqueci de ti, não precisavas de dizer mais nada, o álbum fala por si, o que é que interessava a matéria de físico-química? O importante era saber se eu, colega forçado de carteira, recém-chegado por motivos de transferência administrativa, conhecia Camel ou era como os outros camelos.
P.A.
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