Não consigo dormir. Trago o peso do mundo que agita os conteúdos vazios da mente até que estes fervilhem numa disponibilidade instantânea perante ilações nocturnas.
O silêncio caiu propositado, necessário e incógnito, invólucro do fim do dia, retomada da génese remota e fria num sopro de éter. Miram-me os objectos inumeráveis que suspendem a acção como paisagens percebidas no interior do quarto e que por mistério permanecem. A realidade das coisas aguça-me a consciência, a perspectiva dos quadros desloca-me as ideias numa película dobrada pelo tempo que recordo sem começo, a noite trespassa-me na grande paciência do mundo.
Não posso dormir para assistir ao encarquilhar vivo das sensações, ao movimento suposto das luzes da cidade numa procissão cansada de interrogações, para assistir a uma presença meio iluminada de certezas que depressa se perdem na exposição aberta dos céus. O relógio marca duas horas, duas horas intervalares do sonho antecipado, um tempo que contém a eternidade de não ser tempo, ninguém o explica pela consciência do não tempo, e, por isso, sem a fatalidade de o explicarmos no tempo, para todos os efeitos um absurdo simultâneo. Lá fora o cão ladra no equívoco da noite, tudo se dá num só tempo numa ligação perseguida de dois vultos, o primeiro antecipa o segundo que foi primeiro. O cão ladra e a consciência molda-se ao ondular dum fluido mais consciente. A minha consciência é tudo menos a minha consciência, um fluido geral noutro mais geral e progressivamente mais consciente, por isso, mais afastado da consciência de mim. Nexos inconstantes do passado que vão chegando aos poucos, sentam-se, levantam-se, deambulam pelas divisões da memória à procura do seu espaço, ora ficam mais tempo, ora se despedem cansados na promessa de voltarem, ora ainda, suspendem a acção numa fotografia que tenta conhecer melhor a sua direcção antes que se precipitem no calor de conversas enviesadas. Amálgama num desfile quebrado de figuras onde aparecem por instantes os pais, avós, irmãos, amigos, namoradas, namorados das namoradas, outras figuras mais estranhas que completam as telas e resumem o motivo pelos cantos, não menos importantes, porque nos deixam para sempre a pensar qual seria realmente a sua importância.
É neste espaço e neste tempo que recordo o não espaço e o não tempo, consumados à distância de os viver sem as imposições do passado, que naquela altura tanto nos atrapalham enquanto arrumamos ideias, afectos, opiniões, e que só agora posso espalhá-los em interpretações tardias que devagar concluem o que antes vivemos em momentos sumidos de verdade. É neste espaço arrefecido que a consciência resvala no arrebatamento do tempo, incursão sumária que corre pelo geral do passado, enquanto eu, alheado de mim, suponho a cidade lá fora onde tudo se dá num só tempo numa ligação perseguida de dois vultos, enquanto eu, alheado de mim, dou-me a existir no passado com o cão que ladra numa presença repercutida e íntima.
P.A.
O silêncio caiu propositado, necessário e incógnito, invólucro do fim do dia, retomada da génese remota e fria num sopro de éter. Miram-me os objectos inumeráveis que suspendem a acção como paisagens percebidas no interior do quarto e que por mistério permanecem. A realidade das coisas aguça-me a consciência, a perspectiva dos quadros desloca-me as ideias numa película dobrada pelo tempo que recordo sem começo, a noite trespassa-me na grande paciência do mundo.
Não posso dormir para assistir ao encarquilhar vivo das sensações, ao movimento suposto das luzes da cidade numa procissão cansada de interrogações, para assistir a uma presença meio iluminada de certezas que depressa se perdem na exposição aberta dos céus. O relógio marca duas horas, duas horas intervalares do sonho antecipado, um tempo que contém a eternidade de não ser tempo, ninguém o explica pela consciência do não tempo, e, por isso, sem a fatalidade de o explicarmos no tempo, para todos os efeitos um absurdo simultâneo. Lá fora o cão ladra no equívoco da noite, tudo se dá num só tempo numa ligação perseguida de dois vultos, o primeiro antecipa o segundo que foi primeiro. O cão ladra e a consciência molda-se ao ondular dum fluido mais consciente. A minha consciência é tudo menos a minha consciência, um fluido geral noutro mais geral e progressivamente mais consciente, por isso, mais afastado da consciência de mim. Nexos inconstantes do passado que vão chegando aos poucos, sentam-se, levantam-se, deambulam pelas divisões da memória à procura do seu espaço, ora ficam mais tempo, ora se despedem cansados na promessa de voltarem, ora ainda, suspendem a acção numa fotografia que tenta conhecer melhor a sua direcção antes que se precipitem no calor de conversas enviesadas. Amálgama num desfile quebrado de figuras onde aparecem por instantes os pais, avós, irmãos, amigos, namoradas, namorados das namoradas, outras figuras mais estranhas que completam as telas e resumem o motivo pelos cantos, não menos importantes, porque nos deixam para sempre a pensar qual seria realmente a sua importância.
É neste espaço e neste tempo que recordo o não espaço e o não tempo, consumados à distância de os viver sem as imposições do passado, que naquela altura tanto nos atrapalham enquanto arrumamos ideias, afectos, opiniões, e que só agora posso espalhá-los em interpretações tardias que devagar concluem o que antes vivemos em momentos sumidos de verdade. É neste espaço arrefecido que a consciência resvala no arrebatamento do tempo, incursão sumária que corre pelo geral do passado, enquanto eu, alheado de mim, suponho a cidade lá fora onde tudo se dá num só tempo numa ligação perseguida de dois vultos, enquanto eu, alheado de mim, dou-me a existir no passado com o cão que ladra numa presença repercutida e íntima.
P.A.
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