domingo, 27 de abril de 2008

Banco de Jardim


Descanso sobre a chaminé que dá para o céu da casa que se vê do banco de jardim. Fechei já os olhos, começa o mundo a brincar em volta de mim, uma grande brincadeira na grande roda da terra, o latejar do barulho distante para lá dos lugares que não conheço, momento celebrado no sono que reconheço. O partir da consciência, o vir das horas sem conteúdo, aos poucos o ar a ficar mudo, apenas sopra uma essência solta das coisas desmontadas que param em mim acordadas quando descanso num banco de jardim. Descanso para lá dos lugares que não conheço deitado no sono que reconheço, sem o manto da consciência poderei por fim dormir neste banco de jardim.

P.A.

sábado, 19 de abril de 2008

Interpelação


O crepúsculo sustém lá fora a presença, persistente, guarda de alguns segredos como resíduos do dia em reflexos de telhados frágeis. Sou sempre eu neste espaço e uma cama ao alto, fotografias que prolongam antigas visões de um passado quase feliz. A luz deposita subtileza em patamares deixados vazios pela noite que dormirá, mas a noite não dorme apenas consente, também consinto, de olhos pousados na folha onde escrevo, num espaço e tempo únicos onde justifico a presença de um corpo sem saída senão a de cumprir uma essência irreversível e acidental no imponderável do sujeito. Descanso o olhar sobre o horizonte no declive do acaso, a televisão está acesa e traz-me ocorrências no canto da sala, a mesa junto à janela no outro canto marca a insignificância da minha presença. A luz entra pelo quarto ingénua de insignificâncias nos intervalos das sombras esquecidas e a presença adquire importância à luz de insignificâncias percebidas. O término dos objectos em que revejo o passado por ocorrências vãs, o peso material a ocupar um espaço com esquinas e arestas em contacto com nada, o que não é visto mas é vivo de estar quando me ponho a sentir sem morada, consciente do minuto exacto que faz esquecer tudo aquilo para que nasci, tudo o que o tempo construiu por aproximação à verdade.

A presença é o concreto da existência, o inalienável que me determina no momento em que enquadro o corpo dado e dou conta do espólio imediato de afectações únicas, esfriadas depois lentamente pelo acolhimento da síntese consumada. E com isto me faltam razões que arrombem a vontade de escrever, rondam-me vivências difusas de imagens arrastadas sem nexo, estende-se a memória entre pólos de ligação ao mundo, o futuro a decair no passado, o presente a dilatar-se numa recordação antecipada como o tinir de uma corda de guitarra, o corpo assumindo-se o fantasma que aguarda enquanto caminha num instante que se esvai obsessivamente tocando outros instantes, com ou sem propósito, numa interpelação leve da consciência sumária.

Faltam-me razões para escrever além do aqui e agora pregado no corpo actual que arde interiormente e se consome na certeza da respiração abafada de estar, no sufoco vertiginoso que inverte os alicerces reais da existência que me habituei a ponderar e eclode na evidência presencial tornada consciente. Faltam-me razões para escrever que me arranquem desta noção de ser eu só uma carga material num instante particular.

P.A.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Interdependência dos Estados-Soberania Desigual



A complexidade actual das relações internacionais implicam a perspectiva sobre a inevitabilidade dos Estados se relacionarem correndo o risco de, se não o fizerem, caírem num isolamento estagnador e precário para a sua própria manutenção. Logo nos primeiros tempos da humanidade, houve necessidade dos pequenos grupos estabelecerem relações com os vizinhos. Essas relações tipificavam-se em atitudes ou decisões que implicavam a guerra, o conflito, mas também a cooperação e a partilha de bens e recursos. Neste sentido, uma atitude isolacionista por parte de qualquer comunidade política organizada tem como consequências o atraso tecnológico e a perda de eficácia relativa da defesa militar. A história é um exemplo vivo das constantes e continuadas relações entre povos, da sua interdependência política, económica, tecnológica, cultural. Fornece igualmente exemplos sobre o preço pago por alguns países que se remeteram durante gerações ao isolamento, como o Japão e a china, cada um de seu modo, que até ao século XIX, ao enfrentarem poderes tecnologicamente mais evoluídos aos quais tiveram de ceder em todas as frentes. Recentemente, a Albânia, fechada num comunismo radicalista, veio a confirmar-se como uma nação economicamente e tecnologicamente atrasada no contexto internacional.

Mas a humanidade escolheu há muito estabelecer relações de contacto entre povos, não só pela guerra, mas também, e por vezes na sequência daquela, através da difusão de conhecimentos, circulação de inovações e aculturação de experiências e valores de vida. “Parece que se tornou evidente para todos os poderes políticos soberanos que o estabelecimento de relações permanentes entre os centros de decisão é de vantagem geral e favorece a defesa da autonomia”[1]. Ao introduzirmos a temática da perca de soberania do Estado, teremos, eventualmente, que enquadrá-la numa necessidade crescente do próprio Estado dar resposta a uma conjuntura internacional cada vez mais complexa. O Estado é impelido a responder, a reagir, a tomar decisões, a concordar ou a ou a repelir propostas, fazer face a pressões, solicitações e ordens que se formulam a partir do exterior. Partindo do pressuposto que o estabelecimento de relações externas entre Estados, é não só uma necessidade, como uma garantia da sua própria defesa e autonomia, poderá então aferir-se que a crise do Estado soberano, é uma consequência lógica e inevitável, resultante do esforço de adequação às transformações da conjuntura internacional. Esta inevitabilidade, isto é, “a obrigatoriedade do contacto, gera automaticamente para um Estado, um enorme conjunto de direitos e obrigações que os dirigentes devem conhecer muito bem para melhor os aproveitar em benefício da comunidade”. [2] As palavras de Marques Bessa remetem-nos assim para, por um lado, do facto da inevitabilidade dos contactos resultar um conjunto de condições que regulam e potenciam a relação entre Estados, por outro, a necessidade dessas condições serem conhecidas e aprofundadas no benefício da comunidade, entendido como o reforço da seu poder e autonomia.

Sobre o conceito de interdependência, entendido como termo analítico, Joseph S. Nye, Jr. Diz-nos que ele se refere a situações nas quais actores ou acontecimentos em diferentes partes de um sistema se afectam mutuamente. Simplificando, interdependência significa dependência mútua. Tal situação, em si própria, não é boa nem má e pode existir em maior ou menor quantidade. Trata-se assim de uma condição necessária resultante das relações continuadas a diversos níveis entre os actores envolvidos, que poderão ter efeitos diversos quanto aos seus custos e benefícios nesses mesmos actores.

A interdependência entre Estados influencia naturalmente a soberania dos mesmos, entendida esta no seu sentido clássico, como o controlo absoluto de um determinado território que contém um povo governado por um poder jurídico. O Estado aparece assim divido entre o poder regulador e cooperativo das instituições internacionais, e o seu poder soberano a nível interno, o qual é ele próprio influenciado por aquelas instituições. Contudo, a soberania, tanto a nível interno como externo, pode ser reforçada pelos efeitos positivos das relações de interdependência. A assistência económica e militar, através de contrapartidas, pode ajudar um Estado a tornar-se mais independente a longo prazo. Por outro lado, como já foi dito, as respostas que hoje são exigidas a um Estado que esteja integrado na rede global de relações internacionais, impelem-no para o desenvolvimento de mecanismos próprios que obrigam ao conhecimento da realidade e actuar em adequação com mesma. A realidade global reveste-se de um conjunto de ameaças e riscos, mas também de vulnerabilidades e potencialidades, as quais compete ao Estado analisar e decidir de acordo com as estratégias definidas. Neste sentido, poderá perguntar-se se este exercício reactualizado do poder político face aos desafios internacionais, não será mais que o próprio exercício de soberania do Estado com vista à sua protecção e bem estar.

O papel do Estado soberano na rede de interdependência com outros Estados exerce-se em diversos domínios da sua política externa, a qual influencia fortemente e de modo subsequente, toda a política interna. Desses domínios devemos destacar o domínio político, económico, cultural e securitário.

Domínio político: O domínio político constituiu-se como um poder abrangente pelo qual os Estados tomam decisões na prossecução de determinados objectivos que envolvem necessariamente outros domínios de actuação, como por exemplo o domínio económico e cultural. Este domínios, por sua vez, através da crescente importância que têm vindo a assumir no plano internacional, podem influenciar e condicionar o poder político. O poder político no fundo, deve definir todo um conjunto acções estratégicas na sua relação com os outros Estados, procurando reforçar, em princípio, a sua própria defesa nacional nas mais diversas vertentes. Quando os Estados instalam bases militares noutros países, enviam corpos do exercito para áreas de crise, oferecem armamento aos países amigos, apoiam facções políticas em outras sociedades e comparticipam com meios financeiros institutos políticos e academias, que divulgam ideias, promovem debates e publicam obras, estão certamente a procurar reforçar o seu poder. A dependência militar de uma País em relação a outro ajuda a que aquele fique mais dependente das decisões políticas do mais forte, possibilitando que este conduza mais facilmente um conjunto de interesses no país militarmente dependente. O poder Americano não deixa de coordenar os Estados que lhe são essenciais, mantendo sob vigilância a sua actividade política.
O Panamá é paradigmático porque é um território essencial às comunicações marítimas leste Oeste, e o poder hegemónico do continente não pode deixar a regularidade destes contactos ao sabor da política local ou de interferências estrangeiras ao continente.

O domínio económico: A dimensão económica é fundamental para o poder real do Estado, que através dela procura obter a sua segurança integral. Esta dimensão, tão presente na interdependência entre Estados, é levada a cabo por uma política externa exigente e complexa, protagonizada por agentes especificamente preparados para a levar a cabo. As linhas de abastecimento de matérias-primas indispensáveis ou críticas para as economias industrializadas, a defesa expansão de mercados para produtos manufacturados, a protecção do mercado interno, a capacidade de enfrentar as tentativas de controlo económico estrangeiro, a defesas da moeda e do investimento no exterior, a política de crescimento económico, as políticas alfandegárias, os subsídios à exportação e modernização, são elementos de uma configuração complexa entre Estados, que determinam a sua relação e interdependência.

Conforme nos diz Joseph S. Nye, Jr, a interdependência económica envolve opções políticas em relação a valores e a custos. Num dos exemplos referidos pelo autor, no princípio da década de 70, havia uma preocupação geral de que a população estava a exceder os recursos alimentares globais. Muitos países estavam a comprar cereais americanos, o que, por seu lado, aumentou o preço dos bens alimentares nos supermercados americanos. O pão estava mais caro no Estados Unidos porque as monções indianas tinham fracassado e porque a União Soviética tinha gerido mal a sua colheita. Em 1973, os Estados Unidos, num esforço para impedir o aumento dos preços no País, decidiu interromper a exportação de soja para o Japão. Como resultado, o Japão investiu na produção de soja no Brasil. Alguns anos mais tarde, quando a oferta e a procura se encontravam mais equilibradas, os agricultores Americanos arrependeram-se desse embargo, já que os Japoneses estavam a comprar a soja mais barata proveniente do Brasil.[3] Neste contexto, é perceptível que a interdependência económica entre Estados joga com duas variáveis importantes, a sensibilidade e a vulnerabilidade. No exemplo referido, O Japão era bastante sensível as eventuais mudanças no mercado abastecedor de soja dos Estados Unidos, contudo, a sua vulnerabilidade viria a ser ultrapassada, não obstante os custos implicados nessa mudança, através da capacidade de investir na produção do mesmo produto noutro País, com vantagens a longo prazo. O mesmo acontece quando um dos principais mercados abastecedores de determinado País falha, e este tem a capacidade de encontrar uma alternativa com origem noutro mercado, capaz de suprir a sua dependência em relação ao primeiro. O grau de vulnerabilidade de um País depende assim da capacidade deste responder à mudança. Por vezes, essa capacidade também se traduz em acções de âmbito interno. Quando o Xá do Irão foi deposto, em 1979, a produção petrolífera iraniana foi interrompida numa altura em que a procura era elevada. A perda do petróleo iraniano levou a que a quantidade total de petróleo no mundo baixasse em cerca de 5%. Os mercados eram sensíveis e a escassez da oferta traduziu-se rapidamente num aumento do preço do petróleo. Os Estados Unidos, sensíveis a este facto, diminuíram a sua vulnerabilidade impondo um limite de velocidade de 85 Km/h. e baixando os termóstatos.[4]

O poder económico funciona também como uma arma. O embargo técnico-científico, tal como o económico, é um meio de que os Estados poderosos se servem para se afirmarem. Quando um Estado impede outro de ter acesso a determinadas matérias-primas vitais, como o urânio, gás, petróleo, alumínio, cobre e ferro, ou produtos alimentares, ou planos tecnológicos, tem como objectivo o seu enfraquecimento militar e económico, com repercussões no bem estar geral de toda a população. Trata-se de uma arma poderosa para levar os Estados a tomarem decisões ou a desenvolverem estratégias que sejam convenientes a quem a utiliza, substituindo o meio tradicional da guerra. Isto poderá ser entendido como um dos custos da interdependência. Se é certo que a interdependência gera benefícios entre os Estados, numa cooperação horizontal e global, a competição entre os mesmos, fundada na capacidade de cada um desenvolver mecanismos que potenciem e fortaleçam a sua posição, explorando as vulnerabilidades externas, levará a que uns beneficiem mais do que outros.

Domínio cultural: A projecção cultura de um País não pode ser dissociada do seu poder político e económico, ou mesmo militar e sucuritário. “A política cultural para o exterior é sempre uma política cara e de resultados a longo prazo, que interessa sobretudo aos grandes poderes como pano de fundo para estender a sua influência marcadamente política e económica”[5] Esta projecção utiliza estratégias cada vez mais diversas e subtis. Tem como objectivo a difusão da identidade e imagem de um País, criando em espaços cada vez mais longínquos um ambiente receptivo aos produtos culturais e materiais com determinada marca de origem. Redes de Institutos culturais, fundações. Escolas, revistas, bolsas de estudo, e financiamento de instituições locais, são algumas das estratégias utilizadas. Para além da criação de um mercado de expansão dos produtos culturais e materiais do país de origem, pretende-se a captação e recrutamento de quadros técnicos mais capacitados existentes nos países visados, que encontram nos primeiros condições de trabalho superiores e mais estimulantes. Este fluxo, normalmente denominado brain drain, é uma mais valia importante para quem dele beneficia. Actualmente, a federação Russa revela-se incapaz de segurar os seus melhores especialistas, os quais oferecem os seus serviços em capitais do mundo ocidente. A este propósito importa mencionar o que nos diz o General Loureiro dos Santos sobre a actuação dos Estados Unidos; “ A estratégia de actuação para o domínio e hegemonia empreendida pelos EUA caracteriza-se, basicamente, pelo uso daquelas modalidades de acção que se costumam designar por estratégias indirectas, como a difusão e negociação para convicção dos seus pontos de vista ( estratégia diplomática ), a utilização da sua capacidade multimédia, da sua predominância no audiovisual e do seu dinamismo cultural ( estratégia psicológico-cultural ), actuação no domínio económico-financeiro ( estratégia económico-financeira), usando apenas em última instância a sua incomensurável panóplia militar, quando estiverem em causa os seus interesses nacionais e apenas quando dispuserem de superioridade esmagadora no teatro de operações e houver uma saída estratégica de zero baixas. O essencial da sua estratégia consiste num conjunto de medidas de carácter estrutural que permitem aos EUA exportar os seus pontos de vista para os outros países, através das comunidades intelectuais, convencendo-os de que o que é bom para a América também é bom para eles” [6]

A estratégia adoptada por determinado país no domínio cultural tem uma importância capital na imagem que se pretende dar desse mesmo país, condicionando, de modo subsequente, a percepção que os outros países têm sobre o desempenho, expressão, capacidade, projecção, no fundo, sobre a identidade do país em causa. A propaganda inteligente torna-se um factor importante de influência e interdependência entre Estados. Pode servir para veicular uma imagem de marca de um Estado, mas também pode servir para denegrir a imagem de Estados adversários. Durante a guerra fria os Estados Unidos e a União soviética gastaram somas fabulosas neste combate de imagem, onde cada um, a par da preocupação em destruir a imagem do outro como terra paradisíaca, estava interessado em promover a sua própria imagem positiva, como país de justiça, liberdade autêntica e de oportunidades.

O domínio da segurança: quando falamos de segurança e defesa de um Estado, estamos certamente, e de modo actual, a falar de um domínio tão vasto que pode abranger todos os outros domínios, sendo por eles igualmente condicionado. Como já foi mencionado, a realidade interna e externa de um Estado, num mundo cada vez mais globalizado, interage num espaço cada vez mais lato e indefinido. E é neste sentido que Stephen Castels se refere ao processo de globalização como uma mudança “ de um mundo de lugares para um mundo de fluxos”[7]

De modo essencial, o Estado procura manter a sua soberania sobre todo o território e defender-se adequadamente de qualquer ameaça, protegendo a sua população. Contudo, esta finalidade pode ser conseguida basicamente por duas vias. Por um lado, dispondo de um poder militar credível, dimensionado à geografia do País, ao seu produto interno bruto e às responsabilidades assumidas nas organizações que integra. A Suiça é apontada como um exemplo desta atitude, sendo para mais um Estado de neutralidade reconhecida internacionalmente. Por outro lado, estabelecendo alianças bilaterais com poderes amigos no sentido da cooperação e defesa mútua ou instituindo pactos multilaterais no seio de Organizações, que oferecem garantias de defesa e integridade territorial a todos os membros activos. Portugal é certamente um exemplo desta segunda via. Também neste domínio fica patente a necessária interdependência entre os Estados, que interagem num contexto internacional com diversos fins, seja a procura de um equilíbrio de forças, da protecção a determinado Estado ou território de interesse nacional, do compromisso de participação nas associações que integram ou a garantia da sua defesa em pontos estratégicos espalhados pelo mundo, mas certamente com uma preocupação essencial, a segurança e manutenção do seu próprio território, das suas populações e seu bem Estar. Neste contexto, o Estado também se apresenta como um poder dividido entre preocupações e interesses externos, os quais terão repercussões na segurança interna, que por sua vez lhe exige decisões e aplicação de medidas estratégicas adequadas à sua realidade particular como Estado soberano com uma identidade própria. Sobre esta divisão estratégica, que na prática, é sempre referente a uma realidade única e contínua de inúmeros centros interdependentes, o Estado, na perspectiva de António Marques Bessa, poderá manter-se como protagonista; “com o seu poder efectivo e a vontade dos seus dirigentes, apostados em alterar ou aproveitar a conjuntura mundial, conquistando, cedendo ou mantendo vantagens”. [8] Trata-se, no fundo, de analisar e decidir da melhor maneira no conjunto das diversas relações de força captadas ao longo do tempo. O Estado terá assim a última palavra, por exemplo, no estabelecimento das regras segundo as quais se instalam no seu território as empresas estrangeiras, ou sobre as condições em que entra em pactos e organizações internacionais. Contudo, este poder dependerá em muito da sua coesão interna e identidade nacional, como condição da sua autonomia decisória e soberana.

No jogo global das interdependências sentimos, no entanto, que muitos estados parecem acumular mais desvantagens do que vantagens, lutando contra si próprios na procura de segurança, justiça e bem-estar, ou seja, de verdadeira autonomia. Este quadro empobrecedor que se espalha ao longo dos anos pela cena internacional, devolve-nos uma triste imagem sobre a incapacidade de entendimento global por parte dos mais poderosos, que avançam numa atitude indiferente ao lado daqueles que estão a meio caminho de lado nenhum.

Há 12 anos o relatório das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD), apoiava a conclusão de que a globalização económica, longe de provocar uma mundial elevação do nível de vida, faz crescer as desigualdades tanto entre os países como dentro dos mesmos. O exemplo de África, cujas infra-estruturas deixadas pelas soberanias coloniais têm sido destruídas pelas guerras locais, caíram significativamente, e por todo o terceiro mundo as políticas de ajustamento estrutural do FMI e do Banco Mundial, são acompanhadas pelo alastramento da pobreza, na mesma África, América Latina, Caraíbas.[9]

Uma das questões que se tem colocado é saber se a globalização económica, inspirada pela elevada eficácia tecnocrática e competitiva, inviabiliza alternativas de racionalização e regulamentação dos mercados, para além dos mecanismos imediatos de avaliação custo/benefício, com vista a maximização do lucro.

A resposta tem sido configurada no protagonismo de milhares de organizações não governamentais, que se assumem no fluxo transnacional de bens e mais valias económicas, e que confirmam a incapacidade dos Estados intervirem na regulamentação da rede mundial.[10]

Mas se a incapacidade dos estados tem dependido em muito da sua incapacidade de olhar o outro, algo de essencial terá de ser corrigido no grande jogo global das relações internacionais, para que a sua imagem não persista o pesadelo que ensombra o próprio progresso.

P.A.


Bibliografia


Bessa, António Marques, “ O Olhar de Leviathan” – “ Uma Introdução à Política Externa dos Estados Modernos”, ISCSP, 2001

Casttles, Stephen, “ Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios” “ Dos Trabalhadores Convidados às Migrações Globais”, Fim de Século, 2005

Moreira, Adriano, “Teoria das Relações Internacionais”, Almedina, 5º Edição

Nye, Joseph, “ Compreender os conflitos internacionais” – “ Uma Introdução à Teoria e à História”, Gradiva, Maio de 2002

Santos, Loureiro, “ Segurança e Defesa na Viragem do Milénio”, “Reflexões sobre Estratégia II” Publicações Europa-América, Set. 2001




[1] Bessa, António Marques, “O olhar de Leviathan” – Uma Introdução à Política Externa dos Estados Modernos, ISCSP 2001, pág 77
[2] Ibid. Pág 77
[3] Nye, Joseph, “ Compreender os Conflitos Internacionais” – “ Uma Introdução à Teoria e à História”, Gradiva, Maio de 2002, pág. 226
[4] Ibid. Pág. 229
[5] Bessa, António Marques, “ O olhar de Leviathan” – “ Uma Introdução à Política Externa dos Estados Modernos”, ISCSP, 2001, pág. 101
[6] Santos, Loureiro, “ Segurança e Defesa na Viragem do Milénio”, “Reflexões sobre Estratégia II”, Publicações Europa-América, Set. 2001, pág. 115
[7] Casttles, Stephen, “ Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios” “ Dos Trabalhadores Convidados às Migrações Globais”, Fim de Século, 2005, pág. 78
[8] Ibid, pág. 79
[9] Moreira, Adriano “Teoria das Relações Internacionais”, Almedina, 5º Edição, Pág. 439
[10] Ibid, Pág. 439

terça-feira, 1 de abril de 2008

Antes das Palavras


A aula terminou infalível. Os apontamentos são a síntese da ideia principal do autor degenerada nas interpretações do professor e dos alunos. Não há questões, as cabeças debruçam-se nas últimas frases captadas para encherem folhas papagueadas e atiradas depois para dentro das pastas apressadas pelo rescaldo das ideias. Escrevi nada. Se algo houvesse que merecesse ser escrito seria o silêncio infiltrado da filosofia, o vazio de sentido emerso em bocados de realidade que se tentam nivelar, porque a razão das palavras é sempre um desequilíbrio a posteriori sedimentado em ideias feitas. A aula esteve distante, viemos tarde para os Deuses, heróis e ninfas numa couraça de conceitos que se estancam no espírito, autómatos das palavras sem o sangue que as configura, atulhámo-nos em signos e não em coisas como hóspedes da terra e da vida, a realidade avoluma-se em explicações compiladas pela obesidade académica ao invés de se alimentar de visões precipitadas por vales fecundos, de vontades activadas nas montanhas do silêncio rarefeito, de vivências desbravadas pelo torpor dos músculos e ligeireza do intelecto.


Intervalo para o cigarro e algumas considerações antes de outra aula. São muitos os livros, os autores, tempo que se gastou a não ler mas a rememorar artefactos e interpretações avulsas que tentam arrancar o autor do seu silêncio primeiro. O mundo sempre já aqui a gastar-se em palavras que são alienações redundantes do hábito de ser, sinais de outras coisas que se apresentam ao espírito balbuciadas pela dúvida essencial, pelo acaso terreno, pela impressão.
Outra aula distante, de repente embarco no discurso, ouço as palavras do professor como uma percussão afagada entre o passado e o possível que desencadeia um conforto de estarmos a viver em simultâneo. O autor escreveu muito, pensou demais, reconcilio-me com seu pensamento entranhado nos nossos dias como o frenesim de comunicação num átrio de gente sem se perceber uma só voz, estranho ruído propagado em rascunho à procura de um sentido, de um mote para nos encontrarmos. São cegos e mudos os encargos do nosso fundamento, abandonados a um cavar lento de causas invertidas até ao centro da terra como crianças que seguram um brinquedo ao contrário. As palavras levam-nos a atenção de ser, desalegram-nos, desentristece-nos, vestem-nos de razões gastas que emolduram o acaso. Basta o silêncio para nos soltar o mais íntimo filamento carnal de interacção com o outro e percebermos uma causa. Antes das palavras estamos nós que também somos uma linguagem permanente que se move com excepção por órgãos, músculos e ossos, a emergir no exterior como ondas de calor, a arrastar a essência pela paisagem imiscuída de opacidade e tons, sem nome, lascada na imperfeição muda que se compensa, só para justificarmos o acaso que somos.

P.A.