sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Sociedade de controle


As transformações operadas nas duas últimas décadas, como resultado da aceleração dos fluxos de bens, ideias, serviços e pessoas, criaram novas realidades nacionais e transnacionais, assentes nas migrações e multiculturalismo, no desenvolvimento e globalização das tecnologias de comunicações e informações, no alargamento do comércio e respectivos mercados, e, consequentemente, na dependência e fragilização da soberania dos estados face a um novo espaço de interacção.

As denominadas “redes migratórias” informais surgem como uma realidade crescente, e assumem-se nos trilhos da clandestinidade, oriundas das mais diversas regiões, de modo cada vez mais organizado e estruturado. O fluxo de pessoas é subsequente ao desenvolvimento das tecnologias de comunicações e transportes, à alteração dos mecanismos de oferta e procura no mercado de trabalho face à maior ou menor qualificação dos migrantes.

Parece certo que os Estados se revelam incapazes de conter esses fluxos migratórios informais, num espaço transfronteiriço progressivamente lato e indefinido. Essa incapacidade poderá advir da falta de meios humanos e técnicos, do interesse instalado em determinados grupos ou organizações que protagonizam e incrementam as migrações clandestinas com a obtenção dos respectivos benefícios, e a quem os Estados poderão proteger no benefício político da aquisição de mão de obra não qualificada, para a eventual construção de obras públicas de projecção, ou ainda, da falta de vontade para se enfrentar uma realidade que é excessiva e desregulada desde a sua origem.

O défice de controlo externo dos Estados parece contrastar com a preocupação dos mesmos assegurarem o controlo interno das populações, com base na ameaça das minorias ilegais e desintegradas, para além das restantes minorias qualificadas que se encontrem em situação legal, e de todos nós que circulamos e convivemos em espaços potencialmente propícios ao desencadeamento de acções desviantes, cada vez mais vigiados, controlados, comprimidos na tensão de uma memória sempre futura. Pessoalmente, não tenho sentido uma perca nítida de liberdade ao acordar, mas reconheço que se deve tanto mais a uma fuga consciente e reprimida do que à realidade que me circunda.

O controlo individual justificado pela segurança colectiva é real, muito provavelmente necessário, por vezes legítimo. Contudo, o desejo de previsão do comportamento humano por parte da sociedade de controle, projectado na ameaça do imprevisível sobre a segurança e bem estar social, transporta-nos para um ambiente de tolerância zero, de vigilância total, de compressão de dados informativos que poderão ir até ao mais íntimo filamento carnal.

À semelhança de “Minority Report” de Steven Spielberg”, já somos sujeitos à leitura da íris para efeitos de controlo identificativo. Poderemos nada temer, mas a possibilidade de dissecação e correlação de dados numa grande memória actualizada e monitorizada à distância é, no mínimo, inquietante.

O poder repressivo e coercivo como reacção directa e consequente sobre acções que quebrem o regular funcionamento das normas sociais, deram lugar a um poder preventivo e discricionário, que actua no silêncio e sobriedade do controle permanente, antes da explosão do crime. Nesta óptica, na sociedade de controlo ou normativa, os indivíduos são vigiados e acompanhados desde o início da sua formação, no pulsar constante da sua existência, com o objectivo de prevenir e agir antes do desvio.

Restar-nos-ão, porventura, as intenções e os sentimentos que, tal como os fluxos migratórios informais, têm uma génese excessiva e desregulada, antecedem qualquer linguagem processada por medida, e permitem-nos dissimular a violência dos desejos escondidos. Porque somos pessoas que seguimos o espaço e o tempo com excepção, arrastamos os sentidos pela paisagem imiscuída de opacidade e tons, lascamos o universo à nossa medida, amamos, dependemos, consentimos, exasperamos, delinquímos, desviamo-nos para justificar-mos o acaso que somos, porque seremos sempre uma ameaça.

P.A.

Sem comentários: