sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Espero e sinto





Espero e sinto o desapego
Do tempo, tudo o que sobra
De valor sem lei ou segredo
Numa jornada que não se cobra.
Espero e sinto o latejar
Da luz no peito rechaçada
Como a liberdade que conduz
A existência despojada.
Espero e sinto uma viagem
Sem rasto, impressão latente
De que a vontade me prende
Como um lastro a esta terra
Evidente, última estada
Antes da partida desafortunada


P.A.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O imperfeito jihadista









Aquele que morre para matar
É contrário ao que vive para morrer,
Permanece em estado de raiva e
Ignorância sem compreender
O interior do mar de mudança
Que edifica a crença num Deus
Vivo e Pluralista.
Aquele que morre para matar
Estagna na moral da culpa
E do castigo, voz empedernida
Nas margens erróneas de lama
A gritar toda as proibições divinas,
Dever exterior ao centro, morto por dentro,
Atrás de cortinas envergonhadas
E cegas que combinam o fatalismo
E a obediência de um acto falhado.
Aquele que morre para matar
Luta pela verdade falível
Das palavras cravadas no muro
Intangível do medo e discórdia,
Entre fiel e infiel, mau e bom,
Luz e trevas, guerra e paz.
Aquele que morre para matar
Foi contaminado pelo maniqueísmo
Imperdoável de outro mundo,
De uma verdade absoluta inexistente,
Em oposição à vida sempre renovada.
Aquele que morre para matar
Poderá nem venerar qualquer Deus
Porque a sua anomia espiritual,
Paralisia intelectual e desespero
De intenções, não lhe permitem
Sequer viver essa experiência.



P.A.






sábado, 3 de janeiro de 2015

Prefiro o silêncio






Não digas nada, prefiro o silêncio
Que se constrói pelo inicio das ideias,
Que é um modo insuspeito de gostar.
Prefiro o grande vazio dos espaços,
O sangue que corre pelas veias,
As pedras soltas, os tons imponderáveis
Do mar e o espírito em estilhaços
Que são motivos para não falar.
Mantém-te quieta, prefiro o desejo
Adormecido do teu corpo indeciso,
Que é um modo preciso de escutar.
Prefiro a visão regrada das formas,
O prazer que escorre pelo sorriso,
As mãos leves, o cheiro da pele que
Fica no ar e o anjo em que te tornas,
Que são sinais para ficar.
Vê e abraça-me, prefiro o calor
Eficaz de um gesto profundo,
Que é o modo ínfimo de encontrar.
Prefiro a avidez perdida da respiração,
A fusão secreta do acto fecundo,
Os seios etéreos e a voracidade das coxas
Para apertarem este rio de paixão,
Que são a eterna ambição de amar.



P.A.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Morte matinal





Fui ao funeral e compreendi todos os desencontros,
O avesso das relações, a incoerência do raciocínio,
Das regras e convenções, vírgulas e pontos.
Os dias que passaram tão depressa como o transito,
À velocidade da loucura entre frases feitas que tardam
Em soltar-se do silêncio das paredes mundanas,
Vozes insanas que se propagam no tempo para unir
Extremos obtusos, como sons difusos no latir de cães
À procura de comida, que é esta a morte sentida
No fim do espectáculo, fechado num receptáculo
Onde se reúnem todas as provas de vida,
Numa presença fora de horas, em que o frio
Gelado foi a causa do coração parado.


P.A.

domingo, 30 de novembro de 2014

O que importa...





Importa respirar lenta e profundamente,
Observar da janela qualquer coisa vã
Ou reparar em pormenores simplesmente,
Sorrir e calçar os sapatos pela manhã.
Sentir a beleza distraída
Que se reparte pela paisagem,
Entre a luz solta e reflectida
Nos teus cabelos de passagem.
Importa falar com um amigo
Sobre qualquer assunto banal,
Depois partilhar contigo
Esta conversa sem manual.
Importa acariciar o cão malhado
Mesmo aqui sentado ao meu lado,
Passear, ler, escrever o que se gosta
Sobre esta pequena amostra.
Importa não esquecer o mar
Tantas vezes alterado e cinzento,
O começo onde temos que voltar
Sempre que surge este sentimento
De tudo estar quase a acabar.
Importa olhar o que me rodeia,
Comer algo que dê prazer e
Beber o vinho da última ceia,
Fechar os olhos e escolher
Um desejo que se perca no escuro,
Entregando a sorte ao futuro
Como tudo o que se leva para sempre
Ao bater a porta abaixo do chão,
Porque o que realmente importa
É amar a vida sem razão.


P.A.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Porque é Domingo





Lembro-me dos Domingos nas arribas,
Pescadores quietos contra a névoa de espuma,
Aves a penderem de muralhas antigas,
O mar de sabores, a serra e a bruma.
Os velhos a darem longos passeios sozinhos
Antes de desaparecerem pela boca dos vizinhos,
Que contam a morte à esquina em tom de sina.
Os pais ainda vivos a aconselharem prudência,
Aos Domingos, todos juntos, a lembrar defuntos
Da morada ao lado, que deixaram a vida na condição
Do bem e do mal, que é a nossa causa final.
Eu a lembrar-lhes que a guerra é eterna
E a morte injusta, que a casa é o nosso umbigo
E que tudo o que tenho trago comigo.
Eu a lembrar-lhes todos aqueles
A quem o ódio e as balas atiraram
Para valas comuns, sem idade e memória,
Que só o sangue dos Balcãs ficará na história,
Porque é Domingo e estamos na Praia das Maçãs.


P.A.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Em tom menor





Em tom menor subsiste a moléstia.
O sono ataca. A moleza instala-se.
A indolência eterniza-se.
O cansaço, o tédio, a preguiça,
O langor do mundo, já sem dor,
No canto da sala, sem fala, pálido,
Seminu, fastidioso, por vezes rancoroso.
O peso do corpo contra o chão, indefeso,
Reduzido à palma da mão,
Preso ao torpor da alma,
A abater-se para o interior,
Paciente obtuso, lugar confuso,
Voz infundada, obra inacabada,
Desgosto profundo, amor rotundo,
Paz obscura, tudo para o fundo.



P.A.