sábado, 31 de dezembro de 2011

O ano terminou




O ano terminou nostálgico, confundível com outros anos que terminaram nostálgicos, numa linha temporal a segurar efemérides necessárias à continuidade interdependente dos seres. O ano terminou, entrevisto, inconclusivo, suspenso pela noção pessoal e calendarizada de um tempo sempre remediado nas circunstâncias espaciais. O ano terminou, impensado, esboçado num canto da folha, reservado a uma explicação posterior e mais pormenorizada, desta vez intemporal, modo pelo qual o começo e o fim se explicam. O ano terminou, doze meses mais que contribuíram para me fixar à terra, a marcha do tempo reforça-me as raízes terrenas, torna-me mais lento mas atento ao entrelaçar da linha, mais disponível para a relatividade dos factos, mais seguro da incerteza das coisas. O ano terminou com a explicação de que os anos não existem, com a evidência de que o tempo é uma materialização inacabada de um espaço particular, um facto de repetição instruído para seguir o sentido próprio de cada vontade, um desfile de partículas que se curvam no âmago de cada ser até que este se encontre num ponto único e desconhecido do espaço. O ano terminou, recolhido, impávido mas fracturante como uma pedra profunda, onde o silêncio se abate sem preconceito, onde os cães deixam de nos ladrar e o olhar dos outros desfoca-se da nossa presença para retomar tarefas pessoais e intermináveis.

P.A.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Assim seria



Seria ousado escrever assim sobre ti
Com palavras gastas como moeda de troca
Que compra vontades, alegrias, desgostos e ilusões.
Seria injusto descrever o nosso amor cúmplice que evitasse
Nuvens de sobressalto que o tempo excede.
Seria absurdo amar-te num poema estampado
Na razão clara e precipitada que fugisse do silêncio
Aprazível onde o nosso desejo se avulta.
Seria patético oferecer-te flores de amor ornamentado
Sem colher outros instantes mantidos na feição da memória.
Reservo por isso mudos os sentimentos de súbita traição,
Porque o nosso amor é feito de longos passos e verdade imensa.

Tudo seria inútil para além da presença do teu corpo
Como uma dança doce e serena que cela uma aliança.
Tudo seria insuficiente se não contivesse a verdade dos teus poros
Por onde o mundo sai numa espiral de ventos.
Tudo seria enjeitado sem a magia pura que se reparte
Pelo serpenteado das tuas mãos.
Tudo seria inexistente se não fosse o privilégio
Da tua beleza impensada, da aureola ígnea dos teus seios,
Do flamejar interior sem retrocesso que numa só vez
Abala de prazer a fusão do espírito. Tudo seria não sem o amor superior
De que serás comigo eterna.


P.A.


segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Pessoas e coisas



As pessoas são muitas
As coisas são poucas
Se cada pessoa sua coisa
Muitas são as pessoas das coisas
Se muitas coisas há ainda
De que poucos são
Muitas são as pessoas
Das coisas que não são
E se muitas coisas há também
De que ninguém são
Teremos Esperança
Que com elas alguns
Não farão com que essas coisas
Mais nunca serão.


P.A.

domingo, 27 de novembro de 2011

"Cão como nós"


“Não era um cão como os outros. Era um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós”.


“Cão como nós” - Manuel Alegre

Composição

Os animais



Gosto muito de observar os animais, fazem lembrar as pessoas, pessoas com patas. A minha avozinha que tinha pernas de aranha contava-me muitas histórias de animais. Às vezes vou ao jardim zoológico vê-los enjaulados, um dia perguntaram-me; - Sabes porque que é que estão presos? Porque são muito parecidos com as pessoas, depois a confusão era grande, muitos animais nos cafés, restaurantes, supermercados, parques infantis. - Percebes? Não percebi nada.
  Uma vez pedi um macaco ao pai Natal, mandou-me um aquário com um peixe.
  - Os tigres são maus? Quero um tigre.
  Amanhã vou brincar com o cão da Susana que é parecido com ela, só falta atender o telefone. A Susana adora cobrir-se de penas e encrespar o cabelo. A minha empregada tem um penteado parece um dinossauro. Fica danada, desata aos saltos atrás de mim. O sonho dela era ser pantera.
  Quando for grande vou comprar muitos animais, coloco-os numa jaula e fico a observa-los.

P.A.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Brotar da sombra





Sentia-se em baixo, deprimido. - É bom sinal, disse-lhe. Só deprime quem enfrenta a vida, quem foge dela vive na eterna ilusão de bem-estar.
  E eu a desabafar sobre a Europa.
  - Éramos o País da enxada e, de repente, passámos da enxada para o colete florescente e telemóvel na orelha. Não houve tempo, começou a cair dinheiro do céu sem limites antes de atingirmos a maturidade e responsabilidade necessárias.
  - Oh Sr. Paulo, nessa altura ainda não tinham acertado com a dose de metadona, passava os dias deitado a dormitar como um bezerro. Foram anos de paragens e recaídas. Com nove anos já fumava tabaco e bebia álcool. O meu pai levava-me com ele para as tabernas porque era o único dos irmãos que lhe amparava a bebedeira. Enquanto ele bebia vinho eu bebia uma mini com açúcar. O bem que sabia era tanto como o mal que fazia.
  - Uma pequena ferida, pensei. Ínfima perante o desnorte europeu, mundial, civilizacional. Uma vida concreta sem significado, sem rosto, esgrimida no vácuo súbito de uma ultrapassagem crepuscular. A inocência de uma criança entaipada nas mãos do progenitor, porque para ser pai muito lhe faltaria. O futuro hipotecado pela miséria espiritual acérrima sem retorno, o fatalismo mordaz de se nascer na opacidade e incompreensão do facto de se existir. O pai do outro era médico e também lhe ensinou que para se ser homem era preciso desde cedo aguentar o ardor arrepiante do álcool, crescer na amargura desfeita dos afectos e mais tarde desviar o olhar para o chão inseguro e fugidio. Uma prova que a formação académica nem sempre faz de nós pessoas melhores.
  Afinal que pessoa é esta que me fala sobre si, num gabinete frio, esconso, de paredes nuas, confrontado tão só com a sua história de vida, que ia cabendo naquele pequeno espaço, aos tropeções, exalando réstias de desconforto e revolta?
  - Uma sombra, pensei. Uma sombra a brotar no grande muro do edifício nacional, europeu, mundial. A vida toda como uma sombra entristecida num recanto, presa aos azares da morte, do álcool, do desvario. Uma sombra maior que nunca, agora que se exige tanto das competências pessoais, profissionais, educacionais, paternais, e outras mais que conheceremos quando por fim invadirem por completo o nosso tempo reservado a sermos simplesmente pessoas. Mas, por fim, uma sombra a tomar forma pelas palavras que nunca ou raramente havia dito e escutado. Uma sombra a desenhar-se por contraste ao já feito e instituído, a identificar-se timidamente por oposição à norma mas sem dela abdicar, a ganhar expressão para além da conversa que já deixou de ser importante.
  - Querem tramar-me Sr. Paulo. Só vou para a esquadra com notificação do Tribunal e advogado, porque eles querem encanar-me. O alumínio estava entre o caixote do lixo e o muro, escolhi as peças e atirei o resto para dentro.
  E eu a desabafar, cá dentro, lá fora.
  - Esta crise, mais que não seja, como diz o José Gil, levou-nos a reflectir sobre o nosso lugar no mundo, o nível de dependência a que estamos sujeitos. Deixámos definitivamente de viver cá dentro. Tomámos consciência de que estamos à mercê de todos os acontecimentos por esse mundo fora. Ser Português já não nos protege de coisa alguma, estamos abertos a todas as intempéries económicas, sociais e culturais. Deixámos de viver no espectro da incerteza para vivermos na certeza do imprevisto. E quanto mais assim é, maior a consciência das nossas particularidades, da nossa unicidade, da nossa identidade plasmada no grande edifício global.

P.A.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Eu acho



"Eu acho que choro para dentro como as grutas. Não se vê de fora. Tenho enorme pudor em chorar. A última vez que me lembro de chorar muito, foi numa passagem de ano e fechei-me na casa de banho para não me ver chorar. Para nem eu lá estar enquanto chorasse..."


António Lobo Antunes

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Caminhos da água



Viagem ao centro da terra pelos caminhos da água na pedra, séculos escondidos a esculpirem formas do inconsciente que se vão adequando à nossa descoberta.

A narrativa do silêncio que por dentro sufoca numa inconstância inovada, a chamar do fundo uma génese avulsa e esfriada de assalto, como uma garganta pejada de grumos vedados.

A história da união entre elementos dissolvidos em antros de carne recriada, a escorrer um sentido pregado de sentinela que celebra uma presença eterna.

P.A.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Desde hoje



Desde hoje que fiquei numa espera insana cravada numa fonte impensada, posto ao desinteresse das horas como um sentinela do vazio, a achar-me noutro lugar e não poder voltar, a olhar-me noutro eixo sem nexo, de queixo perplexo entre mãos desencontradas.

Desde hoje que fiquei longe no silêncio de uma entrada gratuita, e que sempre soube interdita a quem espera outra vida como uma viagem que não é coisa séria quando a luz não se altera.

Desde hoje que recordo momentos em que não vivo, figuras de quem se interrompeu a voz e com ela intenções perdidas numa galeria morta ao adejar da luz, um desfile lento e quebrado a carregar as últimas forças.

Desde hoje que o passado se dispõe ao acaso sem interesse ou vontade, contra um fundo escurecido de lágrimas e sorrisos e enorme lassidão, um lugar deixado vazio de onde fujo num amplo paradoxo de marcas sumidas.

Desde hoje que a poeira se ergue no olhar cerrado em volta de uma pedra, o coração estancado numa ausência ignorada, o fantasma das horas no desenlace do tempo, a simples razão porque existo entre um passado suposto e um homem visto.

P.A.

domingo, 2 de outubro de 2011

Crescer



Há lugares que se intrometem para sempre na nossa história, entre ideias e desígnios, como que a retomar uma sequência que, subtilmente, vai explicando a origem das coisas. Há lugares de infância que se estendem sem fronteiras, inconstantes e atrevidos, a lembrar florestas e pinhais percorridos à revelia do tempo, mas assentes num antes, num durante e num depois, necessários à formação do ser. Há lugares que perduram mesmo quando já foram ocupados pelo frenesim e esgotamento progressivo da modernidade. Perduram como uma amostra por decifrar num tempo agora comprimido por tudo em simultâneo. Aquelas árvores ficaram e as que não ficaram criaram raízes mentais para além da existência física, que foram crescendo e amadurecendo naturalmente pela necessidade de uma ordem cronológica. Do terraço de casa sinto que deve haver tempo para nascer, crescer, viver, guerrear, amar e morrer. E que a ausência de uma sequência funcional, mesmo que flexível, remete-nos para a ilusão de que a vida é uma suspensão eterna ancorada num presente frenético e alienado da história. Das árvores construímos fortes e castelos e lembro-me que havia uma especial a que chamávamos o avião, um pinheiro bravo, esguio, de onde lançávamos pinhas como bombas sem retorno. O Filipe era o dono do machado e convinha tê-lo como amigo. Mais velho, alto e robusto, tão depressa amanhava um molho de canas e troncos como tudo destruía sem prévio aviso, entre amuos e rancores imberbes. Os pais não interferiam a não ser no azar de escoriações e curativos que faziam parte do corpo a irromper pelas sendas do poder. Do terraço da casa identifico as grandes incursões pelo mato à procura do inimigo que, pacientemente, era preciso encontrar, iludir, de quem se impunha a retirada para depois voltarmos mais apetrechados. Do terraço da casa vivo com dor uma história incontornável num tempo preciso e concreto. A dor afinal advém de hérnias discais e artroses que me atrofiam o corpo e a mente em espasmos ofuscantes e tempestivos, mas que não deixam de ser marcas de uma tal sequência vivida.

P.A.

sábado, 17 de setembro de 2011

Ser gato






Deixem-me sem ruído
Que o andar lento
Passe por trás esquecido
Do meu ser atento


Atento na plenitude
E serenidade desta luz
Pardo gesto de virtude
Que esta leveza seduz


Estará descontraída
Ou minha alma túrgida?
Se é sonho não sei
Pelo sono a soltei.


Irá leve como um sopro
Minha alma em outro?
Talvez viagem no expresso
Alma outra sem regresso.


Minha alma tem esta forma
Sem forma que a torna
Num ser feliz de bom trato
Porque eu quero ser gato

P.A.

Visão




A rua é abstracta
Numa imagem surgida
De solidão que empata
Uma visão despida.

O caminho é recriado
No pensamento visto
Por muros esgotado
Onde só insisto.

Última data de uma só vida
Gravada em cifras tumulares,
Começo de uma visão perdida
De corpo e espírito similares.

P.A.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tenho que voltar



“A praia das maçãs de novo, a casa dos meus pais de novo. Todos os anos prometo a mim mesmo
- Foi o último e ignoro, sinceramente, o que me faz voltar. Saudades de quê?...

…O que me fará voltar? Julgo que volto pelos meus irmãos. Por um certo melro no pinhal. Pelo cheiro das ondas. Pela tal criatura de que sou filho ou neto e a quem, esse sim, devo o que sou. Para que o ar da praia lhe dê boas cores…

…Agora, que o meu pai já não está, vejo-o a ler sob uma copa. Vejo a minha mãe a ler. Oiço o melro. Ainda se tira a mesa de pingue-pongue da garagem. O Pedro acende um charuto. Os olhos azuis do Miguel, os mais azuis de todos nós. As nuvens de Sintra. Eu a pedalar na tomadia, É curioso: custa-me ir embora. …”

António Lobo Antunes



Digo que é o último ano,
Mas o cheiro do mar cheio de infinito,
O espectro das casas de uma beleza abandonada,
recordam-me prazeres prolongados e eu tenho que voltar…

Digo que já não gosto,
Mas a alegria outrora semeada
Sobre desencantos adiados,
As arribas projectadas numa visão indefinida de névoas,
Rasgam o impossível do amor e eu tenho que voltar…

Digo que será noutro local,
Mas o equivoco dos tons da terra,
O contraste de rostos e convicções,
A intenção das ondas criadas à margem de qualquer saber comum,
Assinalam-me o enclave dos dias e eu tenho que voltar…

Digo que vou partir,
Mas os muros e bancos de pedra construídos na memória sepulcral,
O horizonte que arrefece pelo entardecer do corpo alheio,
Recuperam-me da incerteza das marés
E eu tenho que ficar…

P.A.

sábado, 9 de julho de 2011

Por alma de quem? Por exemplo


Por alma de quem? Por exemplo, é que eu o conheço? Será do Hotel, de onde saiu mais cedo e eu tive que roer a pena até ao osso? Que injustiça. Não matei, não violei, só porque…o que é que diz aí? É tudo mentira, escrevem o que lhes apetece só para apresentarem serviço. Ficou o cheiro da lixívia a desinfectar o chão e as paredes dos corredores sombreados pela espera quase impossível, o som do rádio que nunca vi na Barbearia, a imitar as vozes e as músicas lá de fora, onde se deixou a vida pendente para se poder ajustar a culpa aos factos. Por alma de quem? Por exemplo, é que aquele maluco se atirou do Castelo de S. Jorge cá para baixo? Ou aquele que se passeava nu na rua com uma tesoura de cortar frangos? É verdade que em algum momento somos todos vítimas das circunstâncias, mas que podemos fazer com estes tarados que insistem em renunciar ao mundo? E, já agora, com aqueles em que as conversas, os mitos e preconceitos se repetem sem fim? Uma ladainha pegada à pele que anula a resistência ao desvio. Por alma de quem? Por exemplo, é que o meu padrasto agora não trabalha e está taberneiro como os outros? Ele não bebe muito, o problema dele é que come pouco. Não faz mal a ninguém, depois de beber uns púcaros deita-se e pronto, o melhor é não dizer-lhe nada. Por alma de quem? Por exemplo, é que me conta que nasceu na linda Cidade de Lourenço Marques e que este País nunca lhe deu nada? Nasceu em berço de ouro, o pai deslocava-se de avião em África, nunca entrou num tribunal e mais tarde teve que ir visitar o filho à prisão. As lágrimas turvam-lhe a voz. Angola e África do Sul eram inesgotáveis. Há quarenta anos África do Sul esboçou a intenção de produzir garrafas de Coca-Cola com cápsulas em ouro, os Americanos tremeram. São histórias que, de súbito, se arrancam no desdobrar da entrevista e validam uma presença concreta, que vai para além da pessoa em confronto abstracto com os trâmites legais. Desabafos escorreitos que nos aproximam da compreensão abrangente e informal sobre as relações com o mundo, que se constroem nas fronteiras cinzentas entre a lei e o pulsar da vida. Por alma de quem? Por exemplo, é que levam um homem para a esquadra sem papéis, batem, insultam, depois mandam-no embora e dizem-lhe para se queixar a quem quiser? Isto revolta, a minha vontade é chegar ao pé daqueles que me acusaram e fazer-lhes o dobro, já que tenho uma vida de merda cá fora o melhor é…diga-me só uma coisa, quando é que isto termina? E por alma de quem? Por exemplo…
P.A.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Do mar


“- A tua mãe nunca ouviu este som.
- Que som?
- O som do mar. Quando eu era pequeno havia uma estação de rádio que transmitia sons do mar, ondas gigantes. Aqueles sons assustavam-me.
- Porque o assustavam?
- O fundo do mar assustava-me, com todas as coisas que vivem lá em baixo…”


Do filme “Biutiful”, de Alejandro González Iñárritu



Não é do mar que trata o filme, a não ser do seu lado mórbido, quando pequenas vagas estendem clandestinamente os corpos de trabalhadores chineses ao longo da praia. Famílias inteiras anexadas à vida num armazém de uma fábrica, à espera da morte silenciosa que, durante uma noite, o gás dos aquecimentos manhosos viria a firmar na palidez dos rostos com olhos serrados e boca semiaberta. Não é do mar que trata o filme, a não ser do mar intersticial que escorre moribundo pelos bairros pobres da cidade, engrossando modos enviesados de sobrevivência, tão comuns em aglomerados de pessoas. Não é do mar que trata o filme, a não ser do mar incontornável de emoções, cujo grau de salinidade, se adensa regressivamente até ao caos sentimental. Não é do mar que trata o filme, a não ser de um mar de vida que se esconde nas margens do esquecimento, atolado nas razões do vício, numa sofreguidão natural de amargura e restos. Não é do mar que trata o filme, a não ser de um mar de intimidade que se aprofunda em cada cena, resgatando-nos do medo constante de sermos pessoas e enfrentarmos a nossa causa mais sombria.

Não é do mar que trata o filme, mas é do mar que poderá vir a força necessária à expiração de toda a ingratidão e infâmia. É do mar que poderá vir a explicação final e inquestionável sobre a condição humana, até à última gota, num acto de derradeira regeneração a que se reservam as almas renegadas. É, por fim, do mar que fica a luz que nos conduz à esperança do eterno repouso.

P.A.

sábado, 25 de junho de 2011

Homenagem



Bastaria ter escrito isto para ser homenageado...


"Eleanor Rigby,
Quando eu morrer, eu não quero nem choro e nem vela
Quero uma fita amarela,
Gravada com o nome dela
Eleanor Rigby,
Quando eu morrer, eu não quero nem choro e nem vela
Quero uma fita amarela,
Gravada com o nome dela

Se existe alma,
Se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse em meu caixão

Não quero flores, nem coroas com espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho"


Noel Rosa

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sobre um filme


“A visita da banda” é um daqueles filmes que interrompe a sucessão frenética de imagens cinéfilas criadas em antecipação ao prazer imediato e consumista, tão conforme à passividade contemplativa dos nossos espíritos actuais. Apesar de filmar uma banda da Polícia Egípcia perdida numa qualquer povoação no deserto Israelita, é o silêncio que domina a interacção dos personagens, porque é no silêncio dos gestos e olhares que se revela a profundidade das intenções, dos desejos, dos sonhos, dos compromissos. Embora perdidos numa frustração expectante perante a impotência de poderem honrar os seus compromissos, tocar numa cerimónia de iniciação, os músicos estão lá, alinhados pelo espírito de missão. O fardamento composto e limpo, confere-lhes legitimidade. Os instrumentos vão-se exibindo tímida e pacientemente, como os personagens, criando raízes sentimentais nos interlocutores. A música está sempre presente mesmo quando não está, escuta-se no silêncio da espera, na imobilidade dos corpos, na certeza de uma presença sem propósito mas consciente de um dever maior. O Chefe da banda, um general de aspecto sisudo e firme, não de severidade mas de consumação sábia do tempo, é a encarnação da serenidade, do respeito, da dignidade por uma causa essencial que não se esbate com a monotonia cromática do deserto. “A visita da banda” é um filme em que cada um de nós se reencontra num pequeno grande universo de relações interpessoais. É um aproveitamento eficaz e sustentável das circunstâncias de se estar perdido sem se estar, porque nada pode demover-nos, uma vez na vida que seja, da missão que nos é conferida superiormente sem pressas, a de sermos fieis e determinados perante aquilo em que acreditamos.
 
P.A.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Ser e Ter (Parte II)


Devo informar que escrevi este texto há quase duas décadas, como diria um amigo, “Quando o mundo ainda era feliz!” Não quero com isto dizer que consegui antever sabiamente qualquer conjectura de crise global mas, tão somente dizer que, desde há muito, sinto que a nossa razão de ser não se pode reduzir à procura incessante de ter.

E agora? Depois de restarem poucas dúvidas de que criámos uma sociedade do ter, como enfrentaremos a possibilidade de termos cada vez menos? Alheámo-nos do ser para vivermos naquilo que os outros nos vêem viver pelo ter. Tivemos sentido pelas coisas que exibimos prostradas nos olhares dos outros em ensaios cinéfilos e quotidianos. O ter foi deixando de ser, afastando-se cada vez mais da sua natureza. Os bens materiais circundaram-nos facilmente provocando necessidades artificiais que prolongaram a nossa insuficiência de ser. Pouco ou nada conhecemos deles senão a sua presença confortável e retribuída, que usámos e abusámos, decifrada no prazer mediado e escoado de nós como uma secreção lenta e oculta que anseia um desejo possuído. Nada nos pertenceu verdadeiramente. Vestimos, andámos, habitámos matérias-primas de todos os cantos do mundo, trabalhadas à medida do nosso prazer e compensação. Alheámo-nos da origem das coisas, das vidas gastas em tempo manufacturado ou programado em máquinas estranhas que só por acaso observámos. Exibimos bens matérias raros e de valor quantitativo elevado para compensarmos a ameaça do mundo que nunca compreendemos, a ameaça do outro, da solidão, do insucesso, da morte. Ter não é poder mas iludir a insuficiência de se ser. Admito que o ter, por vezes, seja sermos na relação com o mundo quando criamos qualquer coisa. Também o nosso corpo é ser pelo ter que lhe vem de fora ao restaurá-lo com alimentos, luz ou água, da entropia natural que culminará na morte. Aí o ter mistura-se com o ser porque lhe é próprio, é um ter sendo. Deste modo, o ter autêntico é um ter primordial, próprio de quem lhe dissecou as causas e origens. Para sermos o relógio que temos é preciso desmontar-lhe a causa e a origem e recria-lo na ignorância do tempo. Para sermos o automóvel que temos é preciso sabermos construi-lo pelas leis da física e da mecânica. Para sermos não bastará termos passivamente, é preciso partilharmos o esforço dos que morreram a pensar o que temos. Será por isso necessário, talvez, estarmos mais perto e reconhecidos pelo silêncio e mistério da nossa estada, porque no ser não há vida desencontrada nem caminhos perdidos. Mais atentos à singularidade e plenitude de cada coisa, sublimar a sua presença e as suas forças perscrutar. Será necessário, talvez, encostar a bicicleta e respirar pela abertura do ser, que embora escura e incerta, é mais verdadeira.

P.A.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Sem começo nem fim


Há momentos em que tudo nos ocorre na mente, em simultâneo, numa espécie de catarse involuntária como uma manta de retalhos, tão pessoal quanto intransmissível, uma experiência de imagens configurada pelo sujeito que as vive sem limites. Eis o corpo numa singularidade absoluta e interna, apenas preso ao essencial por fora. Uma escada sem começo nem fim pelos arrumos da memória. É deste modo que o som do violoncelo emerge com gravidade, arrancado das entranhas adormecidas ao longo do tempo, disposto a recordar, sem pressas, entre a resignação e a esperança.

– Cuida de ti meu filho, olha que está hoje um na igreja com 47 anos, foi qualquer coisa de coração, conheço bem a mãe mas não tenho coragem de lá ir.
- Oh mãe, mas…o som do violoncelo, ao fim da tarde, a imiscuir-se por entre o voo rasante dos pombos e uma chávena de café quente.
- Os exames estão bem, contava-me a arguida. - Estão bem como? Se já não tenho um peito e tenho caroços no outro. Nem me tocou.
– Oh Doutora! Não tenho piolhos nem pulgas, pode tocar-me…bruxaria! Bruxa é ela, pensei eu sem lhe dizer. Na sala de espera mais um arguido, frio de sentimentos mas cordial. Até os criminosos mais criminosos têm uma certa ética, como o som do violoncelo a aprofundar o ser na fronteira entre a vida e a falta dela que é preciso respeitar no limite.
– Fui preso muito cedo, ainda não consigo enfrentar a sociedade. A prisão atrofiou-me, também me fiz um homem, senhor, sabe, um homem.
– Sim, disse eu, a pensar que talvez não soubesse coisa alguma. A pensar que aos quatro anos passava as tardes à janela na rua do Arco do Carvalhão, ao colo da minha avó, a ver os autocarros passarem. A felicidade contava-se lá em baixo à passagem dos verdes de dois andares, a uma distância da janela que me fazia sentir o rei da Avenida. Um dia, a meio da noite, os autocarros pararam para a minha bisavó ser arrastada para uma ambulância sem explicação. Não imaginava que os mais velhos pudessem cair sem forças numa encenação muda e sombria, para mais não voltarem, a meio da noite, de uma carrinha branca de sirene intermitente e silenciosa.

Onde me leva a escada? Ao Jorge, na altura do Liceu, conhecido pelo sapo. Quase não falava, esfregava as mãos e mostrava um leve sorriso sarcástico. Disse-lhe que não estava a perceber nada da aula de físico-química.
– Conheces Camel? Perguntou-me antes de tudo. Pensei que já conhecia o suficiente para me desembaraçar nestes primeiros encontros, mas, Camel?, tabaco?
– Conheces o álbum “Mirage” ?, perguntou-me enquanto enterrava a cabeça na camisola de lã vermelha imune a todas as ameaças, até às que se propagavam pela voz da professora ao final da tarde, já noite, alimentadas pelas lâmpadas florescentes de tom amarelado como o cansaço de Inverno. Abanei a cabeça na minha timidez ansiosa.
- Percebes isto? Insisti eu. Mas ele mais não disse. Ficou a olhar-me como um verdadeiro batráquio à espera de uma eventual presa, de sorriso sarcástico, cabeça enterrada nos ombros, agora a esfregar as mãos veementemente. Onde estás Jorge? Talvez escondido no mato dos anos 80, agora com as mãos atrás das costas a deixar escapar, de quando em vez, um leve sorriso sarcástico. Acabei de recordar uma vez mais Camel, o álbum “Mirage”, não me esqueci de ti, não precisavas de dizer mais nada, o álbum fala por si, o que é que interessava a matéria de físico-química? O importante era saber se eu, colega forçado de carteira, recém-chegado por motivos de transferência administrativa, conhecia Camel ou era como os outros camelos.

P.A.


domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Oriente nada de novo


A propósito da actual crise no Egipto impõe-se questionarmo-nos sobre que alicerces se edificará a nova ordem político-social. E porquê? Porque estamos perante uma sociedade que é também massivamente representadora de um vasto universo religioso. O precursor dos actuais movimentos islamistas (incluindo movimentos radicais e activistas) surgiu no Egipto, nos anos 30, por parte de um professor primário, Hassan al-Banna. Surgiu num contexto de crise nacional dado a subjugação da monarquia egípcia ao poder colonial Inglês. O movimento fundado por al-Banna, a “Irmandade Muçulmana” baseava-se num programa de reformas sociais, económicas e políticas. Os poderes coloniais eram acusados de serem os responsáveis pelo declínio do País. Nos anos 40, os elementos deste movimento já haviam criado células secretas e tinham infiltrado diversas instituições públicas (1)


Numa primeira abordagem aos conceitos de instabilidade versus estabilidade cultural e identificativa aplicados às sociedades ocidentais e Islamismo, poderíamos enquadrar o dinamismo e a crise de valores do ocidente no primeiro conceito, a hierarquia e o absolutismo político-religioso do Islamismo, no segundo conceito. Contudo, sabemos que a história do Islão mostra a irrupção periódica de manifestações de ressurgimento religioso como resposta a situações de crise interna. No decurso dos séculos XVIII e XIX, com particular realce para o reinado Persa de Nasir al-Din, o clero shiita era tido como protector do povo, sendo que os sucessivos governos eram vistos como corruptos e ímpios. A corrupção e a ineficácia de Nasir al-Din aliadas à sua política permissiva de abrir a Pérsia à exploração económica estrangeira, nomeadamente, o direito exclusivo atribuído à Companhia Inglesa de produzir, vender e exportar o tabaco, provocaram ondas de agitação social que se transformariam em revoltas abertas. Estas revoltas, organizadas e lideradas pelos ulama ( lideres religiosos ) incitaram a população a juntar-se-lhes com o propósito de verem preservada a dignidade do Islão face à crescente influência estrangeira.(2)

Igualmente, durante o século XIX, a sociedade perso-iraniana foi fortemente pressionada por duas potências europeias, a Russia e a Grã-Bretanha. A expansão económica e mercantil destas potências e a sua fácil penetração pelo domínio militar da região, geradora de apetências, como o petróleo, terá sido possível por: o enfraquecimento do poder central, através da perca de soberania na organização estratégica e militar na defesa do território, decomposição da sociedade Persa num mosaico de estados autónomos, com destaque para as minorias étnicas e religiosas, o crescente poder dos ulama, assente na teoria de que o governo deveria ser preconizado pelos lideres religiosos.(3)


As raízes da crise no mundo muçulmano, situam-se assim no século XIX, com a colonização dos Estados muçulmanos, e na penetração económica e política pelas potências coloniais ocidentais. A instabilidade cultural das sociedades muçulmanas poderá, para além disso, reflectir a crise existente entre um sistema não apenas espritual-religioso, mas também ideológico, que permitiu o deslocamento do campo teológico para o sócio-político. Este, contudo, não tem conseguido impor-se na coerência, consistência e dominância de actuação, tal como o código de crenças e leis de inspiração divina sharia, que serviu o mundo muçulmano desde o século VII. Essa tentativa de providenciar uma ideologia funcional que justifique o esforço de construção do Estado-nação, de desenvolvimento económico e participação social, tem falhado. Depois do domínio colonial às mãos dos Europeus, o mundo muçulmano assistiu à sucessão de uma panóplia de regimes e ideologias que se mostraram inaptos, corruptos e repressivos.

As sociedades islâmicas, quer por motivos externos, quer internos, têm sido afectadas por crises que reflectem, por um lado, a falta de soberania de estado, pela incapacidade de resistir ao longo do tempo ao domínio das potências coloniais. Por outro, a incapacidade desse mesmo Estado se assumir numa estrutura governativa coerente, capaz de integrar o poder religioso, na definição do seu papel conciliador da sociedade. Estes factores, fornecem assim, um campo favorável à emergências dos movimentos fundamentalistas religiosos, como alternativa de viabilidade unificadora da Umma ( comunidade dos crentes em Alá ), à incoerência e instabilidade política. O processo de separação versus conciliação das vertentes política e religiosa tem sido um factor de instabilidade que reflecte a possível transição das sociedades muçulmanas, face a um mundo ocidental que, desde o período colonial, representa para aquelas um mundo ameaçador, dominador e manipulador, nutrindo, em simultâneo, sentimentos de receio e subjugação, mas também de inveja e atracção.

“É igualmente verdade que as correntes reformistas tentaram adaptar os princípios islâmicos tradicionais ao mundo moderno, e neste esforço, enfatizaram os elementos participativos e potencialmente democráticos do Islão. Salientaram os conceitos de shura (consulta, o equivalente funcional da regra de debate parlamentar), ijma (consenso da comunidade) e ijtihad (reinterpretação de certas áreas das leis islâmicas de forma a apoiar noções de democracia parlamentar, eleições representativas e reforma religiosa). Contudo, sem conseguirem adoptar o liberalismo enquanto indiferença face à religião. A mudança é mais significativa no domínio da organização política do que no campo dos valores sociais e religiosos” (4)

Teremos assim uma verdadeira mudança politico-social ou, com o actual ressurgimento da “Irmandade Muçulmana”, e de acordo com o passado, uma tentativa de substituir uma autocracia por uma teocracia?
P.A.


(1) Pinto, Mª. Do Céu de Pinho Ferreira, “Infiéis na Terra do Islão”: Os Estados Unidos, o Médio Oriente e o Islão, Fundação Calouste Gulbenkian p. 30

(2) Costa, Hélder Santos "Da Pérsia Moderna ao Irão de Palhavi", ISCSP p. 71-73


(3) Pinto, Mª Do Céu Pinho Ferreira, "Infieis na Terra do Islão" : Os Estados Unidos, o Médio Oriente e o Islão, Fundação Calouste Gulbenkian p. 39-40


(4) Ibid p. 95-97

domingo, 16 de janeiro de 2011

Outra rotina



Uma atmosfera suburbana, um rosto resignado a contornar esquinas, ecos de tábuas contra o solo, o vento sem regras a remover desperdícios deixados nos passeios por incúria ditada desde o berço, gente pendente em portas e janelas sem assunto ou motivo porque a vida decide-se à tona dos deveres e compromissos, é feita de acidentes e azares do destino, ocorre sem paradeiro por entre intenções averbadas à força das circunstâncias. Estaciono o carro ao acaso junto do contentor do lixo grafitado, a ocupar parte da estrada, também ele desalinhado da vida com rodas a apontar para todas as direcções. Aí assaltam-me todas as ideias de um bairro social. Imagens e sons que se me vão mostrando numa película involuntária e sobreposta, desenrolada a partir do inconsciente, sem esforço, ao sabor do vento, do odor a cannabis e dejectos caninos, dos berros dos miúdos e batida do funaná. É dia de semana mas poderia ser fim-de-semana porque a ocupação útil do tempo decorre do desperdício das horas. A manhã começou irritada com o trânsito, a lentidão do miúdo, o corte nos salários, o novo acordo ortográfico, a rotina que me espera, paciente, a observar-me encostada ao muro da estrada a confirmar a fatalidade dos dias. A rotina não dá tréguas, discreta mas sempre a seguir-nos os passos à distância, umas vezes de aspecto carrancudo, outras vezes com um leve sorriso nos lábios como que a dizer-nos; aguenta-te que não há alternativa. Mas de repente a rotina minimiza-se na consciência, dentro do carro estacionado junto ao contentor do lixo no bairro social. Agora sou eu a observa-la, não a mesma que há poucas horas me tolhia o corpo. Esta rotina não quer saber da outra rotina, desconfia dela, segue pela margem enfiada num capuz, reconhece-a como se reconhece outra religião mas não a olha nos olhos, baixa a cabeça e recolhe-se em murmúrios de um vão de escada. Esta rotina adoece no bafio de uma cama num quarto escuro, resguarda-se do álcool e maus-tratos do marido de quem fugiu em desespero com dois filhos pequenos. E mais não diz para esconder segredos que não podem ser falados senão por código. Nunca se sabe e nunca se esquece. Esta rotina vive de papéis amarfanhados sobre o rendimento social de inserção e baixas médicas indeterminadas, exibidos aos técnicos sociais na mesa de cozinha, com a outra mão a afastar a peça de louça para o canto. Esta rotina deambula pelo bairro sem trabalho, os braços cruzam-se numa esquina à espera que alguém pergunte se queres ganhar dinheiro, como? pouco importa. Esta rotina de más companhias desdobra-se em visitas solidárias à prisão, à boleia de sacos de plástico e metade do dinheiro para a gasolina do carro do vizinho, de cujo filho nem se sabe porque lá está. Esta rotina tem um primo que é advogado e já safou algumas vezes, uma tia empregada num hipermercado que dá bons conselhos, uma mãe que tudo sofre e não desiste. Esta rotina por vezes assemelha-se à outra, aquela que mora ali mesmo ao lado, que há poucas horas me empurrava para fora de casa e me obrigava a enfrentar a vida disposta em peças de louça ao canto da mesa, enganadoras, descoloradas do seu sentido original, pirosas, desleixadas, desprezíveis. Esta rotina é mais livre e irresponsável, deita-se tarde e acorda atónita a fixar o vazio branco ao fundo da parede. Esta rotina conseguirá um pedaço de terra como as outras, uma campa ou uma lápide talvez, flores com certeza, não se podem negar a quem nunca falou e nunca esqueceu. Acho que agora estão a preferir ir para o forno, desembaraçam-se das cinzas e pronto, voltamos à rotina.

P.A.