segunda-feira, 20 de agosto de 2007

UM GRANDE PORTUGUÊS


Passados 11 anos, não posso deixar de manifestar inquietação a propósito daquilo que considero uma parca e injusta atenção dada à escrita de Virgílio Ferreira, antes e após a sua morte, para além de meros textos estudados fugidiamente durante o ensino secundário. Ao seu desaparecimento físico, não sei se por corolário fatalista dos grandes personagens, se por triste indiferença crítica, seguiu-se uma discrição estranha e amorfa, remetida para os tais textos soltos e perdidos no secundário, sem direito sequer a um debate televisivo, em horário nobre, pelo menos para alentar os espíritos mais adormecidos. Resta-me acreditar que a serenidade do seu desaparecimento físico esteja afinar de acordo com a profundidade da sua obra.
Ler Virgílio Ferreira é fazer uma pausa obrigatória na vida e retomá-la de modo mais essencial. Morreu um homem que escrevia a presença inefável e autêntica das coisas, a orientação profunda dos seres, o sentido último da existência. O homem que escrevia sobre a consciência de fundo e reflexiva que nos acompanha pela brevidade dos sentidos, recriando-a em movimentos primordiais como um sonho restabelecido. Li as suas páginas no limite do sentir um jogo presente e ausente de relações com o mundo, com uma ordem transcendente aflorada por simples gestos retocados e inflamados pelo espírito convergente. As suas páginas trespassam a matéria e revelam-nos uma existência intersticial balanceada no desequilíbrio latente de tudo pertencer a tudo. Desvendam-nos a transcendência como o acto de pensar e sentir, como um começo, um sentido gratuito que se percorre na desatenção dos corpos sem os deixar indiferentes. Libertam-nos dos caprichos pessoais e integram-nos num mundo de possibilidades estéticas, ontológicas e afectivas. Abrem-nos um caminho pelas sendas mais profundas do amor divino e encenado pela interpretação humana.

P.A.

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